domingo, agosto 14, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 07



OS DESBRAVADORES

Capítulo 07

Calfilho




VII







O “Rosamar” ia vencendo lentamente a distância que o separava do seu destino.
No dia seguinte, pela madrugada, aportaram em Paracuru, porto maior que Taíba, mas também sem atracadouro direto naquela época. Navio ao largo, nova demorada descarga e carregamento de mercadorias, quase sempre as mesmas: frutas e produtos tropicais eram carregados, algumas máquinas, utensílios e roupas da moda eram descarregadas. Além, é claro, como sempre, as revistas e jornais do Sul do país.
Faustino e Maria Teresa, após o café da manhã, decidiram ir a terra, para uma mudança de ambiente. Embarcaram num dos pequenos botes que faziam o trajeto navio/porto/navio, levando e trazendo as mercadorias. Pedro os acompanhou, bem como João, Firmino e Raimundo, que iriam fazer algumas compras para a expedição, se ali encontrassem o que necessitavam: redes, capas para chuva, lampiões, óleo repelente contra os mosquitos. Apesar de terem levado muita coisa quando embarcaram em Fortaleza, ainda faltavam alguns itens específicos para uma temporada na selva fechada.
Enquanto Pedro e seus auxiliares iam em busca das mercadorias e para uma parada em alguma tendinha para uns goles de cachaça, Faustino e Maria Teresa, de braços dados, davam uma volta pela cidade. Ele, alto, porte esbelto, metido elegantemente dentro de um terno de linho branco, botas de cano alto até os joelhos, chapéu panamá na cabeça, contrastava com a figura da mulher, miudinha, trajando um vestido com bainha cobrindo-lhe os tornozelos, sapato de salto baixo, guarda-sol sobre a cabeça.
Felizmente, ela já se recuperara das crises de vômito dos primeiros dias de viagem e agora estava novamente alegre, feliz, sorrindo a todo o momento.
O mesmo não se podia dizer de Raimundo, cabra macho escolhido por Pedro para acompanhar a expedição e que até aquele dia ainda não parara de vomitar. Fora a terra, acompanhando Pedro e os outros, para ver se, mudando de ares, pisando um pouco em terra firme, conseguia fazer cessar o enjôo. O caboclo estava com a cara verde, pálido, quase não conseguia ficar em pé.
Pedro dele debochava:
– É isso aí, Raimundo, o grande homem que você é? Aquele que se gabava de não ter medo de briga, que enfrentava qualquer um que te aporrinhasse?
– Pára com isso, Pedro – retrucou Raimundo. – Não tá vendo que foi essa porcaria de navio que me fez ficar assim? Homem eu sei enfrentar na ponta da minha peixeira, mas esse negócio de mar não é comigo não.
Pedro, João e Firmino riram gostosamente. Rodaram a cidade, procuraram nas lojas e vendas, mas só conseguiram comprar pouca coisa da mercadoria de que necessitavam. A cidade era muito pobre, quase não tinha nada. Almoçaram num botequim vagabundo e ali ficaram tomando aguardente. Pedro sabia a hora de parar, era só dar tempo para que Faustino, que fora almoçar com Maria Teresa no melhor local do vilarejo, mandasse chamá-los.
O capitão Jeremias havia indicado a pequena pensão do português Rodrigo para que Faustino almoçasse com a mulher.
– Bom dia – cumprimentou Faustino, dando a mão ao português. – O capitão Jeremias me indicou a sua casa como o melhor lugar para se comer aqui em Paracuru. Estamos viajando no navio dele, o “Rosamar”, eu e minha senhora – disse, apontando para Maria Teresa.
Rodrigo abriu um largo sorriso, apertando a mão de Faustino.
– Ora, pois, pois, meu caro amigo – disse. – É um prazer recebê-lo aqui no meu humilde estabelecimento. E o capitão Jeremias, não veio almoçar com os senhores?
– Não – respondeu Faustino. – Ele disse que tem muita coisa a fazer no navio, que ficou ancorado ao largo. Mandou lhe dar um abraço e suas recomendações.
– Por favor, vamos sentar, fiquem à vontade – retrucou Rodrigo, puxando uma cadeira e fazendo uma mesura para Maria Teresa.
Depois que Faustino e a mulher se acomodaram numa das mesas do salão, que já tinha outras ocupadas com pessoas do local, Rodrigo veio com uma garrafa de aguardente nas mãos, servindo uma dose para Faustino.
– Essa cachaça é daqui da região, meu senhor – disse, com o sotaque lusitano bem carregado. – Que tal, gostou?
Rodrigo deixou o líquido espalhar-se pelo interior da boca, estalando a língua depois que o engoliu.
– Muito boa, “seu” Rodrigo. Mas, eu vou querer uma cerveja depois, por favor.
– E a senhora, madame – perguntou o português, dirigindo-se a Maria Teresa. – Bebe o quê?
– Um refresco de caju, por favor – respondeu ela.
– Bem, hoje temos um cabrito refogado e leitão assado. O que vão preferir? – indagou Rodrigo.
– É, o capitão Jeremias tinha razão. Os seus pratos são mesmo de dar água na boca. Acho que vou experimentar os dois, o cabrito e o leitão, um pouco de cada coisa, se isso não lhe causar transtorno. Mas, para minha mulher, por favor, alguma coisa mais leve, por favor. Talvez uma saladinha e ela experimenta o cabrito.
– Pois não, meu caro senhor. Aguardem só um pouquinho.
Enquanto Faustino e Maria Teresa comiam vagarosamente, saboreando a deliciosa culinária local, o cabrito e o leitão bem temperados, cozidos e assados no ponto certo, Pedro, João, Firmino e Raimundo continuavam bebendo aguardente na tendinha ali próxima.
Lá pelas duas da tarde, Pedro chamou os outros para buscarem as mercadorias que haviam encomendado uma lojinha ali perto. Raimundo, que não estava conseguindo beber nada devido às crises de vômito, logo levantou-se para acompanhar Pedro. João disse para Pedro:
– Pedro, vai na frente que eu e o Firmino já vamos já. Deixa a gente beber mais umas doses, porque no navio a gente não consegue nada.
Pedro hesitou por alguns instantes, mas, reconhecendo que a viagem de navio estava entediando os homens, acabou concordando.
– Está bem, mas não demorem. Vocês sabem que o “seu” Faustino não gosta de atrasos, nem de bebedeiras. A loja é aquela onde a gente fez a encomenda, é perto daqui, vê se no máximo em uma hora vocês estão lá.
Saíram os dois, deixando João e Firmino no interior da tendinha.
Faustino, depois de saborear o cabrito, dividindo-o com Maria Teresa, começou a atacar o leitão. Bem assado, o courinho crocante, ainda fumegando, a carne tenra e macia, o limão despejado generosamente em cima dela, a farofa, o arroz quentinho e molhado, a batata frita como acompanhamentos. A gordura empapava-lhe o bigode negro e alguns respingos caiam-lhe sobre a camisa impecavelmente limpa, já que o paletó do terno estava dependurado nas costas da cadeira.
Pediu mais uma cerveja ao português. Este, voltando com a garrafa nas mãos, despejou-a no copo de Faustino e perguntou:
– E, então, meu amigo, gostou da comida? Procurei fazer o melhor...
Faustino, ainda lambendo os beiços, respondeu, passando o guardanapo nos lábios e no bigode:
– Excelente, “seu” Rodrigo, excelente... prato dos deuses... parabéns. Pena que eu não posso ficar mais tempo por aqui, se não...
– Se não o quê? – perguntou Rodrigo, com um sorriso malicioso nos lábios.
– Se não, eu queria experimentar aquela carne seca que está lá pendurada no balcão com jerimum e farinha... Pena que a gente vai embora, não é, Teresa?
Ela concordou com um gesto de cabeça, esboçando um pequeno sorriso ante a satisfação do marido.
Às quatro da tarde, Faustino tomou a cerveja saideira, com Rodrigo fazendo-lhe companhia. Pagou a despesa, acendeu um cigarro de palha e desceu os dois lances de escada do restaurante do português. Maria Teresa ao seu lado, segurando-lhe o braço. Foram caminhando vagarosamente em direção ao porto improvisado, aonde o bote viria buscá-los para levá-los de volta ao “Rosamar”.
Faustino, um pouco cansado e já meio bebido, sentou-se num pequeno banco de madeira.
– Gostou, Teresa? – perguntou, afrouxando as botas e o colarinho da camisa. – Pelo menos a gente saiu daquela rotina do navio. Fiquei satisfeito que você melhorou, comeu alguma coisa.
Deixou os pés cansados respirarem um pouco nas águas tépidas do mar em frente a eles. A água salgada molhava a bainha da calça de linho, agora arriada até os tornozelos, depois que ele retirou dos pés as botas de cano alto.
Já eram quase cinco da tarde, um dos barqueiros que fazia o transporte para o “Rosamar” veio avisá-lo:
– “Seu” Faustino, esse vai ser o último barco para o navio. Vamos agora?
Olhou para o barqueiro, os olhos cheios de sono. Perguntou:
– Aqueles homens que vieram comigo, já voltaram para o navio?
– Não, não senhor. Ainda devem estar por aí...
Faustino praguejou baixinho:
– Filhos da puta, onde foi que se meteram?
– Quer que eu vá atrás deles? – perguntou o barqueiro.
– Não, pode deixar, vamos esperar mais uns quinze minutos – retrucou Faustino.
Com efeito, uns dez minutos depois chegavam Pedro e Raimundo. Faustino foi logo esbravejando:
– Porra Pedro, onde é que vocês estavam? O navio já vai sair, a gente tá atrasado...
Pedro baixou os olhos. Respondeu, meio sem graça:
– Porra patrão, a gente tá procurando o João e o Firmino. Num sabemo onde eles se meteram...
– Filhos da puta... – repetiu Faustino. – Onde é que vocês deixaram eles?
– Na tendinha, patrão. Eu e o Raimundo fomos apanhar as mercadorias que a gente encomendou e eles ficaram de encontrar a gente lá. Mas, não apareceram – respondeu Pedro, visivelmente aborrecido. – Mas, eu pego eles... – murmurou baixinho.
– Vamos voltar lá na tendinha, vai ver que aqueles putos se meteram em confusão – disse Faustino. Virando-se para Raimundo, disse: – Raimundo, você fica aqui com dona Maria Teresa até a gente voltar, ouviu?
O caboclo assentiu com a cabeça. Faustino e Pedro deixaram o embarcadouro a passos largos, Faustino já botando os bofes para fora.
Chegando na tendinha, perguntaram ao dono se sabia dos dois. O homem, meio sem graça e já um pouco temeroso da atitude de Faustino, já falando alto e soltando palavrões, respondeu, com voz baixa:
– Eles tomaram mais algumas cachaças depois que o moço aqui foi embora – respondeu, apontando para Pedro. – Depois, me perguntaram onde podiam arranjar algumas mulheres.
Hesitou um pouco antes de continuar. Faustino gritou:
– Anda, homem, desembucha logo. Onde é que eles foram?
O homem acabou dizendo:
– Eu indiquei a eles o puteiro da Marli, que fica logo aqui perto.
– Filhos da puta... – mais uma vez repetiu Faustino.
Saíram da tendinha, pegaram uma pequena rua atrás, depois dobraram mais umas duas, seguindo as instruções recebidas. Chegaram numa rua onde só havia casas de pau a pique, teto de folha de bananeira.
– Onde é o puteiro da Marli? – perguntou Faustino a uma mulher que lavava roupa numa bacia de madeira.
– Ali na frente – apontou ela, com olhar curioso. – Mas, acho que ela está ocupada agora – concluiu, continuando a esfregar a roupa com as mãos.
Chegando na porta do barraco, Faustino foi logo entrando. João estava emborcado no chão, roncando ruidosamente. Pedro abriu uma cortina que separava um cômodo do outro. Lá estava Firmino em cima de uma velha gorda, desdentada, gemendo a plenos pulmões.
Pedro arrancou-o violentamente de cima da mulher, dando-lhe dois tapas no rosto. Faustino chegou logo em seguida, tirou o cinto da calça e começou a espancar o caboclo nu, ainda com a piroca dura.
– Seu filho da puta sem-vergonha... Tu queria foder com a minha expedição, não é, seu puto? – Eu bem que te avisei, Pedro, eu já estava de olho nesse puto desde a vez passada...
Firmino levava as mãos ao rosto, procurando evitar os golpes com o cinto. Faustino esbravejava, bufava, gritava:
– Tu queria me fazer perder o navio, não é? Jogar todo o meu dinheiro fora... Pois agora, vocês dois vão para Fortaleza a pé...
Virou-se, colocou o cinto novamente no cós da calça, chamou Pedro:
– Vamos, Pedro, vamos embora. Esses putos vão aprender andando...
Pedro ainda pensou em interferir, pedir uma segunda oportunidade para os dois. Mas, vendo o estado de exaltação de Faustino, desistiu, saindo do barraco atrás do patrão. João continuava deitado no chão, sonhando talvez com a boa trepada que dera na velha gorda...


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