OS DESBRAVADORES
Capítulo 07
Calfilho
VII
O “Rosamar” ia vencendo lentamente a distância que o
separava do seu destino.
No dia seguinte, pela madrugada, aportaram em
Paracuru, porto maior que Taíba, mas também sem atracadouro direto naquela
época. Navio ao largo, nova demorada descarga e carregamento de mercadorias,
quase sempre as mesmas: frutas e produtos tropicais eram carregados, algumas
máquinas, utensílios e roupas da moda eram descarregadas. Além, é claro, como
sempre, as revistas e jornais do Sul do país.
Faustino e Maria Teresa, após o café da manhã,
decidiram ir a terra, para uma mudança de ambiente. Embarcaram num dos pequenos
botes que faziam o trajeto navio/porto/navio, levando e trazendo as
mercadorias. Pedro os acompanhou, bem como João, Firmino e Raimundo, que iriam
fazer algumas compras para a expedição, se ali encontrassem o que necessitavam:
redes, capas para chuva, lampiões, óleo repelente contra os mosquitos. Apesar
de terem levado muita coisa quando embarcaram em Fortaleza, ainda faltavam
alguns itens específicos para uma temporada na selva fechada.
Enquanto Pedro e seus auxiliares iam em busca das
mercadorias e para uma parada em alguma tendinha para uns goles de cachaça,
Faustino e Maria Teresa, de braços dados, davam uma volta pela cidade. Ele,
alto, porte esbelto, metido elegantemente dentro de um terno de linho branco,
botas de cano alto até os joelhos, chapéu panamá na cabeça, contrastava com a
figura da mulher, miudinha, trajando um vestido com bainha cobrindo-lhe os
tornozelos, sapato de salto baixo, guarda-sol sobre a cabeça.
Felizmente, ela já se recuperara das crises de vômito
dos primeiros dias de viagem e agora estava novamente alegre, feliz, sorrindo a
todo o momento.
O mesmo não se podia dizer de Raimundo, cabra macho
escolhido por Pedro para acompanhar a expedição e que até aquele dia ainda não
parara de vomitar. Fora a terra, acompanhando Pedro e os outros, para ver se,
mudando de ares, pisando um pouco em terra firme, conseguia fazer cessar o
enjôo. O caboclo estava com a cara verde, pálido, quase não conseguia ficar em
pé.
Pedro dele debochava:
– É isso aí, Raimundo, o grande homem que você é?
Aquele que se gabava de não ter medo de briga, que enfrentava qualquer um que
te aporrinhasse?
– Pára com isso, Pedro – retrucou Raimundo. – Não tá
vendo que foi essa porcaria de navio que me fez ficar assim? Homem eu sei
enfrentar na ponta da minha peixeira, mas esse negócio de mar não é comigo não.
Pedro, João e Firmino riram gostosamente. Rodaram a
cidade, procuraram nas lojas e vendas, mas só conseguiram comprar pouca coisa
da mercadoria de que necessitavam. A cidade era muito pobre, quase não tinha
nada. Almoçaram num botequim vagabundo e ali ficaram tomando aguardente. Pedro
sabia a hora de parar, era só dar tempo para que Faustino, que fora almoçar com
Maria Teresa no melhor local do vilarejo, mandasse chamá-los.
O capitão Jeremias havia indicado a pequena pensão do
português Rodrigo para que Faustino almoçasse com a mulher.
– Bom dia – cumprimentou Faustino, dando a mão ao
português. – O capitão Jeremias me indicou a sua casa como o melhor lugar para
se comer aqui em Paracuru. Estamos viajando no navio dele, o “Rosamar”, eu e
minha senhora – disse, apontando para Maria Teresa.
Rodrigo abriu um largo sorriso, apertando a mão de
Faustino.
– Ora, pois, pois, meu caro amigo – disse. – É um
prazer recebê-lo aqui no meu humilde estabelecimento. E o capitão Jeremias, não
veio almoçar com os senhores?
– Não – respondeu Faustino. – Ele disse que tem muita
coisa a fazer no navio, que ficou ancorado ao largo. Mandou lhe dar um abraço e
suas recomendações.
– Por favor, vamos sentar, fiquem à vontade – retrucou
Rodrigo, puxando uma cadeira e fazendo uma mesura para Maria Teresa.
Depois que Faustino e a mulher se acomodaram numa das
mesas do salão, que já tinha outras ocupadas com pessoas do local, Rodrigo veio
com uma garrafa de aguardente nas mãos, servindo uma dose para Faustino.
– Essa cachaça é daqui da região, meu senhor – disse,
com o sotaque lusitano bem carregado. – Que tal, gostou?
Rodrigo deixou o líquido espalhar-se pelo interior da
boca, estalando a língua depois que o engoliu.
– Muito boa, “seu” Rodrigo. Mas, eu vou querer uma
cerveja depois, por favor.
– E a senhora, madame – perguntou o português,
dirigindo-se a Maria Teresa. – Bebe o quê?
– Um refresco de caju, por favor – respondeu ela.
– Bem, hoje temos um cabrito refogado e leitão assado.
O que vão preferir? – indagou Rodrigo.
– É, o capitão Jeremias tinha razão. Os seus pratos
são mesmo de dar água na boca. Acho que vou experimentar os dois, o cabrito e o
leitão, um pouco de cada coisa, se isso não lhe causar transtorno. Mas, para
minha mulher, por favor, alguma coisa mais leve, por favor. Talvez uma
saladinha e ela experimenta o cabrito.
– Pois não, meu caro senhor. Aguardem só um pouquinho.
Enquanto Faustino e Maria Teresa comiam vagarosamente,
saboreando a deliciosa culinária local, o cabrito e o leitão bem temperados,
cozidos e assados no ponto certo, Pedro, João, Firmino e Raimundo continuavam
bebendo aguardente na tendinha ali próxima.
Lá pelas duas da tarde, Pedro chamou os outros para
buscarem as mercadorias que haviam encomendado uma lojinha ali perto. Raimundo,
que não estava conseguindo beber nada devido às crises de vômito, logo
levantou-se para acompanhar Pedro. João disse para Pedro:
– Pedro, vai na frente que eu e o Firmino já vamos já.
Deixa a gente beber mais umas doses, porque no navio a gente não consegue nada.
Pedro hesitou por alguns instantes, mas, reconhecendo
que a viagem de navio estava entediando os homens, acabou concordando.
– Está bem, mas não demorem. Vocês sabem que o “seu”
Faustino não gosta de atrasos, nem de bebedeiras. A loja é aquela onde a gente
fez a encomenda, é perto daqui, vê se no máximo em uma hora vocês estão lá.
Saíram os dois, deixando João e Firmino no interior da
tendinha.
Faustino, depois de saborear o cabrito, dividindo-o
com Maria Teresa, começou a atacar o leitão. Bem assado, o courinho crocante,
ainda fumegando, a carne tenra e macia, o limão despejado generosamente em cima
dela, a farofa, o arroz quentinho e molhado, a batata frita como
acompanhamentos. A gordura empapava-lhe o bigode negro e alguns respingos
caiam-lhe sobre a camisa impecavelmente limpa, já que o paletó do terno estava
dependurado nas costas da cadeira.
Pediu mais uma cerveja ao português. Este, voltando
com a garrafa nas mãos, despejou-a no copo de Faustino e perguntou:
– E, então, meu amigo, gostou da comida? Procurei
fazer o melhor...
Faustino, ainda lambendo os beiços, respondeu,
passando o guardanapo nos lábios e no bigode:
– Excelente, “seu” Rodrigo, excelente... prato dos
deuses... parabéns. Pena que eu não posso ficar mais tempo por aqui, se não...
– Se não o quê? – perguntou Rodrigo, com um sorriso
malicioso nos lábios.
– Se não, eu queria experimentar aquela carne seca que
está lá pendurada no balcão com jerimum e farinha... Pena que a gente vai
embora, não é, Teresa?
Ela concordou com um gesto de cabeça, esboçando um
pequeno sorriso ante a satisfação do marido.
Às quatro da tarde, Faustino tomou a cerveja saideira,
com Rodrigo fazendo-lhe companhia. Pagou a despesa, acendeu um cigarro de palha
e desceu os dois lances de escada do restaurante do português. Maria Teresa ao
seu lado, segurando-lhe o braço. Foram caminhando vagarosamente em direção ao
porto improvisado, aonde o bote viria buscá-los para levá-los de volta ao
“Rosamar”.
Faustino, um pouco cansado e já meio bebido, sentou-se
num pequeno banco de madeira.
– Gostou, Teresa? – perguntou, afrouxando as botas e o
colarinho da camisa. – Pelo menos a gente saiu daquela rotina do navio. Fiquei
satisfeito que você melhorou, comeu alguma coisa.
Deixou os pés cansados respirarem um pouco nas águas
tépidas do mar em frente a eles. A água salgada molhava a bainha da calça de
linho, agora arriada até os tornozelos, depois que ele retirou dos pés as botas
de cano alto.
Já eram quase cinco da tarde, um dos barqueiros que
fazia o transporte para o “Rosamar” veio avisá-lo:
– “Seu” Faustino, esse vai ser o último barco para o
navio. Vamos agora?
Olhou para o barqueiro, os olhos cheios de sono.
Perguntou:
– Aqueles homens que vieram comigo, já voltaram para o
navio?
– Não, não senhor. Ainda devem estar por aí...
Faustino praguejou baixinho:
– Filhos da puta, onde foi que se meteram?
– Quer que eu vá atrás deles? – perguntou o barqueiro.
– Não, pode deixar, vamos esperar mais uns quinze
minutos – retrucou Faustino.
Com efeito, uns dez minutos depois chegavam Pedro e
Raimundo. Faustino foi logo esbravejando:
– Porra Pedro, onde é que vocês estavam? O navio já
vai sair, a gente tá atrasado...
Pedro baixou os olhos. Respondeu, meio sem graça:
– Porra patrão, a gente tá procurando o João e o
Firmino. Num sabemo onde eles se meteram...
– Filhos da puta... – repetiu Faustino. – Onde é que
vocês deixaram eles?
– Na tendinha, patrão. Eu e o Raimundo fomos apanhar
as mercadorias que a gente encomendou e eles ficaram de encontrar a gente lá.
Mas, não apareceram – respondeu Pedro, visivelmente aborrecido. – Mas, eu pego
eles... – murmurou baixinho.
– Vamos voltar lá na tendinha, vai ver que aqueles
putos se meteram em confusão – disse Faustino. Virando-se para Raimundo, disse:
– Raimundo, você fica aqui com dona Maria Teresa até a gente voltar, ouviu?
O caboclo assentiu com a cabeça. Faustino e Pedro
deixaram o embarcadouro a passos largos, Faustino já botando os bofes para
fora.
Chegando na tendinha, perguntaram ao dono se sabia dos
dois. O homem, meio sem graça e já um pouco temeroso da atitude de Faustino, já
falando alto e soltando palavrões, respondeu, com voz baixa:
– Eles tomaram mais algumas cachaças depois que o moço
aqui foi embora – respondeu, apontando para Pedro. – Depois, me perguntaram
onde podiam arranjar algumas mulheres.
Hesitou um pouco antes de continuar. Faustino gritou:
– Anda, homem, desembucha logo. Onde é que eles foram?
O homem acabou dizendo:
– Eu indiquei a eles o puteiro da Marli, que fica logo
aqui perto.
– Filhos da puta... – mais uma vez repetiu Faustino.
Saíram da tendinha, pegaram uma pequena rua atrás,
depois dobraram mais umas duas, seguindo as instruções recebidas. Chegaram numa
rua onde só havia casas de pau a pique, teto de folha de bananeira.
– Onde é o puteiro da Marli? – perguntou Faustino a
uma mulher que lavava roupa numa bacia de madeira.
– Ali na frente – apontou ela, com olhar curioso. –
Mas, acho que ela está ocupada agora – concluiu, continuando a esfregar a roupa
com as mãos.
Chegando na porta do barraco, Faustino foi logo
entrando. João estava emborcado no chão, roncando ruidosamente. Pedro abriu uma
cortina que separava um cômodo do outro. Lá estava Firmino em cima de uma velha
gorda, desdentada, gemendo a plenos pulmões.
Pedro arrancou-o violentamente de cima da mulher,
dando-lhe dois tapas no rosto. Faustino chegou logo em seguida, tirou o cinto
da calça e começou a espancar o caboclo nu, ainda com a piroca dura.
– Seu filho da puta sem-vergonha... Tu queria foder
com a minha expedição, não é, seu puto? – Eu bem que te avisei, Pedro, eu já
estava de olho nesse puto desde a vez passada...
Firmino levava as mãos ao rosto, procurando evitar os
golpes com o cinto. Faustino esbravejava, bufava, gritava:
– Tu queria me fazer perder o navio, não é? Jogar todo
o meu dinheiro fora... Pois agora, vocês dois vão para Fortaleza a pé...
Virou-se, colocou o cinto novamente no cós da calça,
chamou Pedro:
– Vamos, Pedro, vamos embora. Esses putos vão aprender
andando...
Pedro ainda pensou em interferir, pedir uma segunda
oportunidade para os dois. Mas, vendo o estado de exaltação de Faustino,
desistiu, saindo do barraco atrás do patrão. João continuava deitado no chão,
sonhando talvez com a boa trepada que dera na velha gorda...
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