OS DESBRAVADORES
INTRODUÇÃO, APRESENTAÇÃO E CAPÍTULO 01
Calfilho
Seguindo sugestão de alguns amigos e do "Clube de Autores", ao qual sou filiado, decidi publicar aqui alguns capítulos de um dos livros que tive a ousadia de tentar escrever depois da minha aposentadoria, ocorrida em julho de 1990.
Meus amigos mais próximos sabem que, depois do meu adeus à vida profissional, para não ficar em completa ociosidade, aproveitei para fazer duas coisas que sempre sonhei realizar e que, só agora, com a total disponibilidade do meu tempo, pude conseguir fazer: viajar para a Europa e colocar no papel algumas das ideias que mantinha guardadas na mente, retratando umas, minha experiência de vida, e outras, apenas, simples divagações da minha mente.
Acabei conseguindo escrever seis pequenos livros que mandei publicar em edições limitadas, tendo apenas a intenção de distribuí-los entre meus familiares e amigos.
Em um deles, aquele em que tento retratar a experiência por mim vivida durante os sete anos em que estudei no Liceu Nilo Peçanha de Niterói, dirige-se em especial aos alunos que tiveram o privilégio de estudar naquele magnífico colégio na década de 50 do século passado.
Em outro procuro retratar a experiência que tive ao ir trabalhar numa pequena cidade do interior do Estado (que tanto me cativou) e mostrar a diferença existente entre a vida e o anonimato de uma grande metrópole e o dia a dia pacato e sem maiores preocupações de uma pequena cidade interiorana.
Em mais outro procurei mostrar o tamanho da angústia e ansiedade com que se defronta um homem de bem ao ver-se enredado nas teias do sistema policial, judiciário e jornalístico ao cometer um delito apenas eventual em sua trajetória de vida.
Reuni alguns contos que escrevi desde 1965 até os dias de hoje, numa pequena coletânea que intitulei "DA VIDA... REFLEXÕES", nome por mim escolhido para algumas publicações que coloquei na revista da AABB-Cantagalo, a partir de 1965.
Em um, aquele de que gosto mais, deixei minha imaginação flutuar no tempo e no espaço, tentando contar a história de um advogado carioca do final do século XXI, que sofre com os pesadelos (ou sonhos?) de uma vida pretérita, localizada na época da Revolução Francesa.
Finalmente, neste que vou tentar aqui publicar neste blog em capítulos, vou contar um pouco da história dos meus avôs, o paterno (que não conheci) e o materno (que faleceu no mesmo dia em que eu completava 12 anos de idade), e que foram, em meu entendimento, dois autênticos "desbravadores" deste nosso imenso Brasil. Como digo na apresentação do livro, somente alguns trechos correspondem inteiramente à realidade, tendo em vista o nenhum (quanto ao meu avô paterno) ou muito pouco (meu avô materno) contato que tive com os dois. Dei asas à imaginação e deixei no papel uma história que tenta, o máximo possível, aproximar-se da realidade.
Espero que tenham paciência e tentem ler até o fim a narrativa. Agradeceria muito a opinião dos amigos, que certamente valorizariam as modestas linhas colocadas no papel.
Carlos Augusto Lopes Filho
OS DESBRAVADORES
2006
Registrado sob número 545.243, LIVRO 1.038, Folhas 14
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Esta publicação não pode ser reproduzida ou
transmitida,
no todo ou em parte, sem autorização prévia e escrita
do
autor.
Capa e Diagramação
Jefferson Braga
(www.desenhador.com.br).
Para
Fausto Augusto Lopes e Raphael Blanco Filho,
meus avôs,
in memoriam
APRESENTAÇÃO
Quando me veio a idéia de escrever este livro, que não
passa de mera reunião de alguns relatos que a mim chegaram através dos tempos,
pensei apenas em fazer um tímido retrato daquilo que ouvira comentar sobre meus
avôs, o paterno e o materno. Era uma lembrança aqui, outra ali, numa conversa
perdida entre meu pai e minha mãe, meros episódios esporádicos, sem uma
história que tivesse começo ou fim. Através desses poucos relatos familiares,
ouvidos principalmente de minha mãe, meu tio e minha avó maternos e apenas alguns episódios pela boca de meu pai, pouca coisa soube sobre a vida que levaram meus
dois avôs. Meu pai, prematuramente nos deixou, não me dando a oportunidade de com ele conversar sobre seu
pai, meu avô paterno, o qual, infelizmente, não conheci pessoalmente.
Mesmo tendo convivido até meus doze anos de idade com
meu avô materno, que faleceu justamente na data em que completava eu aquela
idade, poucas vezes conversei com ele pessoalmente sobre sua juventude, sua
vinda para o Brasil, seu casamento com minha avó, o nascimento de meu tio e
minha mãe, sua luta como imigrante para firmar-se no Brasil, o desbravamento de
terras ainda desconhecidas do Brasil, tão hostis naquelas segunda e terceira
décadas do século XX.
Mas, pesquisando um pouco sobre a vida naquela época,
sobre os aventureiros que fizeram o progresso e a consolidação da Amazônia e
das regiões do Sudeste e Sul do Brasil, a imaginação encarregou-se do resto.
São temas realmente fascinantes... O mais curioso é que, apenas duas gerações
após, quase nada se sabe ou se guardou daquela época da história brasileira.
Parece que o passado ficou totalmente sepultado, que o ritmo alucinante da vida
moderna, com suas invenções naquela época inimagináveis, fizessem-nos esquecer
por completo de nossas origens, nossa história, tão ricas em passagens
realmente deslumbrantes. Só de pensar como passados apenas pouco mais de
oitenta anos, nada sabemos realmente sobre aquilo tudo que aconteceu, na
verdade é motivo de reflexão. Dá-nos a impressão de que fomos atirados no mundo
de hoje sem termos tido passado, que nada existiu antes de nós... Como se
tivéssemos caído do céu e aqui aportamos, para que fizéssemos nós próprios, o
nosso destino... O que, a nosso ver, é muito triste.
Por isso, apesar de não ter vivenciado pessoalmente
toda a intensidade daquele período, e ter tido muita pouca informação histórica
sobre ele, não resisti em escrever estas linhas, mesmo que possam elas não
corresponder inteiramente à verdade dos fatos. Daí porque, antecipadamente,
peço minhas escusas se alguma referência histórica ou geográfica não
corresponder exatamente à realidade, se algum local ou fato mencionado no livro
não estiver exatamente de acordo com sua situação, denominação ou veracidade
segundo o que existia ou aconteceu naquela época. Principalmente, em relação
aos fatos passados na Amazônia, às tribos, língua e costumes indígenas, tão
distantes da realidade do autor, nascido e criado no Rio de Janeiro e em Niterói.
Esta é uma obra de ficção e, apesar de baseada em
personagens reais, as circunstâncias em que os fatos realmente ocorreram não
correspondem necessariamente à verdade dos mesmos. Quase todas são fruto da
nossa imaginação.
A finalidade maior da obra é prestar uma homenagem a
dois homens que, por sua coragem, destemor e espírito aventureiro, ajudaram a
construir este nosso Brasil, desbravando-o quando ele era ainda um gigante
adormecido, quando ele era ainda tão primitivo, tão rude, consolidando-o como
nação, mas sem esquecer de plantar a semente de suas famílias para as futuras
gerações.
Se o gigante conseguiu acordar, tenho minhas
dúvidas...
O AUTOR.
PRIMEIRA PARTE
A AMAZÔNIA...
I
A velha barca resfolegava, cansada de tantas viagens
de ida e volta, naquelas águas nem sempre tão tranquilas do Amazonas...
Ainda bem que, naquela manhã de 19 de julho de 1916,
estavam elas relativamente calmas.
Já estavam quase chegando ao destino, uma área de
terras na margem esquerda de um igarapé, um dos inúmeros pequenos filetes
d’água afluentes do grande rio.
Tanto Faustino, como Morais, os dois conversando em
pé, junto ao timão da gaiola, já não conseguiam mais esconder a ansiedade.
Aquela era a terceira vez que Faustino vinha ao grande
estado do Norte brasileiro, obedecendo àquele espírito aventureiro que o
empurrava para aquelas paragens tão inóspitas, tão desconhecidas do interior do
país.
Gostava
daquilo, o sangue fervia-lhe mais fortemente nas veias e artérias, sentia que
estava abrindo outros caminhos, o prazer de enfrentar o desconhecido.
Fortaleza, mais uma vez, ficara para trás...
Desta vez trouxera a mulher, a responsabilidade e os
cuidados seriam outros, e ainda por cima ela estava grávida. Tinha sérias
dúvidas sobre se ela suportaria tudo aquilo, a mata, os insetos, a vida
totalmente diferente daquela a que estava acostumada em Fortaleza. Mas, não
podia deixá-la sozinha na hora em que mais dele precisava. Preferiu esquecer o
oferecimento nada sincero das irmãs, solteironas e interesseiras, quando
disseram que Teresa poderia ficar com elas, que tomariam conta dela.
A época era a do fim do ciclo da borracha, já em curso
a fase do declínio rápido.
Aventureiros enriqueceram da noite para o dia com a
extração e exportação do ouro viscoso, extraído dos seringais amazonenses.
Fortunas eram construídas rapidamente. Umas se consolidavam, outras se
dissipavam, num piscar de olhos. Aquele período lembrava muito a febre do ouro,
ocorrida no oeste dos Estados Unidos da América do Norte, no século anterior.
As margens do rio-mar ficaram coalhadas de pequenos
acampamentos de colonos, exploradores das seringueiras. Alguns desses
aglomerados de gente transformaram-se em pequenos povoados, mais tarde em cidades
de médio e grande porte.
Manaus, a capital do grande Estado, sofreu toda a
influência daquele ciclo de riqueza e luxo, dinheiro rolando a vontade. Foram
importados mármore de Carrara, lustres de cristal de várias partes da Europa, a
cidade foi contaminada com toda aquela influência de fora, tornando-se uma ilha
de prosperidade e riqueza no meio daquela selva de pobreza e miséria.
Faustino fora um daqueles desbravadores, tendo ido
tentar a sorte na Amazônia em 1909.
Aquela fora a primeira vez. Devido ao seu grau de
instrução, foi contratado como capataz de uma grande empresa com ramificações
no exterior.
Ainda sem
qualquer experiência, logo que conseguiu juntar algum dinheiro em seis meses de
trabalho duro, largou o seringal.
Voltou para sua Fortaleza natal, onde moravam seus
pais e irmãs. Tinha, na época, vinte e três anos de idade. Ainda solteiro,
gastou em pouco tempo, em farras e mesas de jogo, o pouco dinheiro que havia
acumulado naquela sua primeira passagem pela selva amazônica.
Ficou pouco tempo sossegado. A comichão pela busca da
aventura voltou a coçar-lhe com intensidade o corpo. Ainda tentou trabalhar num
serviço burocrático que seu pai, “seu” Almeida, português conceituado na
cidade, arranjou- lhe na Prefeitura de Fortaleza. Ficou pouco tempo, menos de
três meses. Não suportava aquela rotina diária de um trabalho sem interesse,
sem atrativo, sem risco, tudo certinho todos os dias, nada de novo acontecendo.
Tentou auxiliar o pai como gerente de um dos vários
armazéns de sua propriedade que o mesmo tinha espalhado naquela pequena
Fortaleza do início da segunda década do século XX. Também não dera certo.
Ficar atrás de um balcão vendendo mercadorias, aguentar reclamações de
fregueses, negociar preços com fornecedores, positivamente não eram coisas que
faziam o seu gênero.
Logo discutiu com freguesas exigentes, despediu
empregados negligentes, chegava tarde ao local de trabalho, quando não faltava.
Nascido e criado na capital cearense, conhecia praticamente todos os habitantes
da cidade, principalmente os da redondeza da Praça José de Alencar, onde ficava
o casarão de dois andares da família. Depois de concluir o curso ginasial, como
não havia faculdade na região, parou de estudar. Farrista inveterado, era
figurinha fácil de ser encontrada nos bares, cabarés e bordéis da cidade. Tinha
grande atração por uma mesa de jogo e ali perdia e ganhava a mesada ou o pouco
dinheiro que conseguia arrumar em seus empregos eventuais.
Alto, porte atlético, magro mas robusto, bigode fino
sobre os lábios, elegante, sempre bem vestido, era um partido disputado pelas
mocinhas casadoiras da cidade. Mas, apesar de frequentar os locais badalados da
sociedade local, indo a festas e bailes tradicionais promovidos pela
aristocracia da capital cearense, não era muito bem visto pelos pais e mães das
possíveis noivas em potencial, dada sua fama de mulherengo, farrista, jogador e
boêmio.
Mas, seu porte altivo, até mesmo as histórias nem
sempre elogiosas que cercavam sua pessoa, faziam aumentar os rumores sobre sua
má fama e a atmosfera de mistério que o cercava, sendo um atrativo a mais para
as jovens que suspiravam ao vê-lo chegar em casa com o dia já amanhecendo,
pernas cambaleando, às vezes uma canção sonora nos lábios, fazendo-lhes uma
mesura respeitosa que elas retribuíam com um sorriso escondido nos lábios para
que a mãe severa não percebesse.
Tudo nele cheirava a ousadia, aventura, envolvendo sua
enigmática figura numa aura de segredo, de desconhecido, tudo o que era
necessário para atrair jovens e inocentes corações femininos.
Faustino, entretanto, não queria ficar preso a
ninguém. Pelo menos, naquela época, antes de definir o que fazer de sua vida,
consolidar uma situação financeira estável, tornar-se independente do pai.
Flertava com uma aqui, outra ali, às vezes duas ou três ao mesmo tempo, mas
pulava fora quando o flerte ameaçava tornar-se mais sério, caminhando para um
compromisso irreversível. Naquela época, estava na situação em que não tinha
eira nem beira, era apenas um bon vivant que ainda dependia da mesada do
pai para tomar uma cerveja, sentar numa mesa de jogo.
Assim, depois de largar a gerência de um dos armazéns
do “seu” Almeida, ficou à toa por algum tempo.
Conversava com Madeira, antigo colega de infância e
atual companheiro de boemia, sentados em frente a uma mesa de botequim, tampo
de mármore e pé de ferro, na Praça do Ferreira:
– É, Madeira, acho que vou voltar p’ra lá. O futuro
está na Amazônia, está na borracha.
– Não sei não, Faustino. Acho tudo muito nebuloso,
muito incerto, o risco é muito grande – retrucou Madeira. – O lucro é grande,
não resta dúvida, mas tudo tem que dar certinho, nada pode sair errado.
O calor era sufocante, nem uma brisa movimentava o ar
abafado, naquele fim de tarde tipicamente nordestino.
Fortaleza, em 1911, limitava-se ao espaço hoje ocupado
pela Praça do Ferreira, à outra praça adjacente, a José de Alencar e, mais
atrás, a Praça da Lagoinha, onde ia dar a atual rua Tristão Gonçalves. A região
das praias, em especial Iracema, era constituída de simples povoados de
pescadores, com suas cabanas toscas e rústicas, ainda sem a construção de casas
de alvenaria.
Os navios que chegavam do sul, da capital Rio de
Janeiro, de Santos, Recife ou Salvador, quando ali aportavam, tinham que ficar
ancorados ao largo, descendo os passageiros em pequenos botes a remo que
alcançavam o precário cais da cidade. Assim também acontecia com os poucos
pequenos vapores que vinham de Belém ou São Luís.
A iluminação elétrica, ainda incipiente, só chegava
aos postes das ruas e a alguns prédios do governo, atingindo, quando muito,
poucas residências particulares, daqueles considerados os moradores mais
importantes e ricos da cidade. Para a grande maioria da população, a luz ainda
era fornecida pelos lampiões a querosene. A eletricidade, com a luz
incandescente, era artigo de luxo, funcionando muito mal, com quedas frequentes
e longos períodos em que se tinha que recorrer às velhas lamparinas.
As ruas, na sua grande maioria, ainda sem calçamento.
Somente algumas que compunham o centro da cidade eram revestidas de paralelepípedos.
Não havia rede de esgotos e a água que se bebia era retirada de poços nos
fundos das casas.
A vida das pessoas era calma, tranquila, sem pressa ou
atropelos. Parecia que viviam numa cidade do interior. Quase todo mundo se
conhecia, as notícias do Rio ou de São Paulo ali só chegavam quase uma semana
após os fatos terem ocorrido. As transmissões de rádio, ainda no início de sua
implantação, eram muito fracas, cheia de chiados, quase não se entendia nada do
que o locutor dizia.
– Mas, eu volto pra lá, pode estar certo disso –
retrucou Faustino, sorvendo com prazer mais um gole da sua cerveja bem gelada.
– Já estou vendo uma empresa que está indo para lá, parece ser gente séria. Já
conversei com eles, estão interessados em mim por causa da minha experiência
anterior, estamos apenas discutindo quanto eles vão me pagar.
– Mas, você tem certeza de que é isso mesmo que você
quer? – perguntou Madeira. – Sei lá, largar o conforto daqui de Fortaleza, sua
família, seus amigos. Mal ou bem aqui você tem uma boa posição social, é
respeitado, conhece todo mundo.
– Mas, o que eu posso esperar da vida ficando por
aqui, Madeira? – rebateu Faustino. – A
mesma rotina de sempre, essa vida sem perspectiva, sem futuro? Lá, pelo menos,
estou em busca do desconhecido, de uma coisa nova, e posso ficar rico de uma
hora para outra.
– Não sei não – disse Madeira, depois de um momento de
silêncio, balançando a cabeça e bebendo um gole de seu copo. – Já ouvi comentários de que os ingleses
contrabandearam sementes da seringueira para suas colônias na Ásia. Aí, o preço
da borracha vai despencar. Só espero que você não se arrependa.
Faustino, alguns meses depois, já em 1912, embarcara
novamente para a Amazônia.
Lá ficou por mais de um ano, só voltando para
Fortaleza porque contraiu malária e precisava de tratamento em um local com
maiores recursos.
Como da outra vez, voltara cheio de dinheiro no bolso.
Agora, entretanto, mais velho e mais ajuizado e, talvez com um pouco de medo da
morte, abatido que ficou com a doença, investiu parte do dinheiro na compra de
alguns prédios em volta da Praça José de Alencar.
Depois de curado, finalmente decidiu-se: começou a
namorar Maria Teresa, moça da sociedade local, a quem conhecera através de uma
de suas irmãs, a Cotinha.
A moça, realmente, era muito bonita. Morena clara,
cabelos negros caindo-lhe pelas costas em duas compridas tranças bem cuidadas,
lindos olhos verdes bem claros, cintilantes, que brilhavam tão intensamente
como um raio de sol, sorriso inocente
nos lábios. Tinha dezoito anos recém completados e, desde pequena, olhava
Faustino com admiração, mesmo ouvindo as histórias que sobre ele contavam, de
aventuras e boemia.
Costumava visitar Cotinha, de quem era colega de
colégio, no sobrado da José de Alencar, sendo apresentada a Faustino numa das
vezes em que ali fora. Convalescia ele da malária e conversava com a irmã,
sentados nos sofás do imenso salão.
Ela ficou nervosa, baixou os olhos, quando ele
apertou-lhe a mão direita, enrubescendo visivelmente.
– Muito prazer – disse, com voz trêmula.
Ele fitou-a fixamente, com um sorriso zombeteiro nos
lábios ante o visível embaraço da menina.
– Igualmente – respondeu, sem soltar a mão de Maria
Teresa, que agora tinha o rosto vermelho como um tomate maduro.
Ela sentou-se numa cadeira e ficou em silêncio durante
todo o tempo em que Faustino continuava o relato de suas aventuras para a irmã.
– Pois é, a Amazônia é muito linda, ali você só ouve o
cantar dos pássaros, os gritos dos macacos pulando alegremente de árvore em
árvore, o barulho do enorme rio deslizando velozmente em direção ao oceano. É
verde para todo o lado que você olha, mata cerrada, você se sente pequeno,
insignificante ante a imensidão de tudo, da altura das árvores que quase chegam
a esconder o céu, da grandiosidade do rio, cuja outra margem às vezes você não
consegue enxergar.
Cotinha, que já ouvira aquele relato outras vezes,
fingia prestar atenção no que o irmão falava, mais com medo dele do que por
interesse. Maria Teresa não, fascinada com a empolgação de Faustino,
imaginava-se naquele cenário da selva misteriosa.
Ela voltou várias vezes ao casarão com o pretexto de
fazer algum dever escolar com Cotinha, mas, na verdade querendo ouvir as
histórias que Faustino não se cansava de contar. Com a sequência das visitas,
Cotinha acabava se retirando, deixando os dois sozinhos. Faustino, então,
aproveitava para continuar seus relatos sobre a Amazônia, ficando a jovem a
ouvi-lo embevecida por mais de três, quatro horas.
As visitas passaram a ser diárias e, quando Faustino
melhorou, podendo locomover-se normalmente, passou a sair com a menina,
levando-a a uma festinha aqui, um guaraná ali, ou fins de tardes passados num
banco da praça. Cotinha ia junto, a pretexto de acompanhar a amiga e, mesmo
porque Faustino ainda estava bastante indeciso sobre se começava ou não a ter
um relacionamento mais sério com Maria Teresa.
A princípio, apesar de sentir uma certa atração pela
moça, relutou bastante em começar o namoro. Achava cedo para ficar preso a
alguém, ainda mais que não tirava da cabeça o projeto de voltar para a
Amazônia, agora formando o seu próprio grupo de trabalho, sendo o patrão e não
um mero empregado.
Outra vez, como fazia habitualmente, encontrava-se na
mesa de um bar, tomando uma cerveja em companhia do amigo Madeira. Este
perguntou, com um certo tom de ironia na voz:
– Quer dizer então que conseguiram te fisgar,
Faustino?
Ficou um pouco sem graça, pois não esperava aquela
pergunta. Depois de um momento de silêncio, respondeu com outra pergunta:
– Então, você já sabe? Quem te contou?
– Ora, ora – retrucou Madeira, sem tirar o sorriso
irônico dos lábios. – Parece até que você não sabe que está em Fortaleza. Aqui
não há necessidade de jornal. As notícias correm mais rápido de boca em boca
antes de serem impressas.
Faustino ainda continuava um pouco desconcertado.
Olhando para Madeira, comentou:
– Bem, já que caiu na boca do povo, é verdade sim.
Bebeu um gole de cerveja e tentou justificar-se:
– Andei pensando muito depois de pegar aquela malária
lá na selva. "Ô xente", pensei que ia
morrer. Foram noites e mais noites de febre, eu suando como um leitão,
delirando, sem saber o que dizia. Na verdade, fiquei com medo de partir para
outra. Por isso, decidi agora me prender mais às coisas e às pessoas, não quero
morrer sozinho, sem ninguém ao meu lado. Olha, foi a primeira vez na vida que
tive essa sensação. Sei lá, um misto de pavor, de pânico, de impotência, sem
saber o que fazer. Se não fossem a velha índia que cuidou de mim lá e o dono da
gaiola lá de Belém, eu acho que teria morrido. Muito chá, muita erva, foi o que
me salvou. Acho que acabei viciado com tanto quinino – disse, sorrindo.
Madeira perguntou, divertido:
– Mas, por que a Maria Teresa? Ela não é muito novinha
para você? Pensei que quando você decidisse se amarrar fosse com a Jacinta, que
é bem mais velha e por quem você tinha uma certa queda.
Faustino respondeu:
– Não, eu não tinha mais nada com a Jacinta. Foi um
namoro gostoso enquanto durou. Ela não é mulher para mim, nossos temperamentos
são muitos diferentes. Só pensa em futilidades, em coisas artificiais. Já com a
Maria Teresa é diferente. Ela não é de falar muito, gosta de me ouvir,
compartilha dos meus gostos, inclusive pela Amazônia. Acho que ela iria para lá
comigo sem pestanejar. Além disso, ela é um doce de menina, tão terna, tão
carinhosa... – concluiu, olhando para o céu, com ar de sonhador.
– Quem te viu, quem te vê... – continuou debochando
Madeira.
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