quarta-feira, junho 27, 2007

ORGULHO

O R G U L H O





Luís espantou-se ao acender o cigarro, vendo como suas mãos tremiam. Amassou com força o palito de fósforo, levantando-se em seguida. Foi até a janela e olhou para o céu, assistindo o despertar de um novo dia... Colocou a cabeça entre as mãos, correndo os dedos pelos cabelos em desalinho. Por que nascera, meu Deus? Por que vivia? Por que o mundo era tão cruel, tão ruim? Não, não - duas pequenas lágrimas principiaram a desabrochar em seus olhos - aquilo tudo era sonho mau, não podia ser realidade... Shirley estava bem, deveria estar em casa àquela hora, dormindo um sono tranqüilo. E ele não estava em nenhum hospital, aquilo tudo não passava de um pesadelo...
Abriram a porta e ele voltou à realidade. Era a enfermeira carregando uma bandeja.
Olhou-a interrogativamente. Perguntou baixinho, a voz trêmula, embargada pela emoção:
- E então?
- Nada ainda. O doutor vai operar agora...
Voltou a olhar para fora, para o céu escuro, mas coalhado de estrelas... Shirley, Shirley, por que você fora tão criança? Por que não deixou de lado seu orgulho bobo, sua vontade infantil de aparecer?
Mas, por que supunha ele aquilo? Talvez, na realidade, ela nunca o tivesse amado de verdade... Talvez o considerasse mais um de seus amigos, diferente dos outros, quem sabe, mas apenas mais um com quem quisesse se divertir, brincar um pouco com ele, com seus sentimentos...
Mas, ele a amara tanto, amava-a ainda loucamente... Brigaram, separaram-se, porque ela pôs à prova sua dignidade, seu caráter de homem honesto, um pouco crescido demais em mentalidade para sujeitar-se aos seus caprichos e aos daquela turminha de idéias curtas que a acompanhava.
Ela que, junto de seu grupo, aparentava tanta confiança em si mesma, que era a atirada, a de coragem, a "avançada", como se julgava, perto dele era uma criancinha frágil, desamparada, que sentia falta de proteção, do verdadeiro amor...
Rememorava os fatos... Lembrou-se de como a conhecera... Saíra cedo naquele dia para fazer uma reportagem na Zona Sul. Já era quase uma da tarde e ele estava morto de fome, após haver andado por toda a manhã. Entrou num daqueles restaurantes tipo popular, lanchonete, melhor dizendo, que começavam a proliferar em Copacabana e onde podia fazer uma refeição ligeira. Sentou-se numa mesa de canto e, enquanto esperava ser atendido, rabiscava algumas notas num papel. O local estava movimentado, com vários grupinhos espalhados pelas mesas, rindo e conversando alegremente enquanto faziam um lanche. Continuava a escrever, quando uma bolinha de papel, batendo-lhe no rosto e caindo dentro de seu copo de chope, respingou o líquido.em seu terno, fazendo com que ele levantasse o olhar... Numa mesa em frente à sua, um grupo de sete, três moças e quatro rapazes, riram de sua reação de surpresa...
Luís os encarou firmemente, de cara amarrada. Os componentes da outra mesa ficaram um pouco sem graça, menos uma moça que continuava a rir gostosamente. Disse, olhando para os seus companheiros e apontando para ele, em tom de deboche:
- Tadinho dele, sujou o terninho... Mamãe vai zangar quando ele chegar em casa...
Os outros, mais encorajados, riram da observação da menina. Zombavam dele agora...
Luís levantou-se com calma, encarando-a com os olhos gelados.
Chegando em frente a ela, que permanecia sentada, puxou-a violentamente pelo braço, arrastando-a com rapidez para o fundo do bar. Os outros, colhidos pelo imprevisto de sua reação, permaneceram em seus lugares. Apertando fortemente o braço da menina, Luís disse-lhe, em tom ríspido:
- Tome cuidado, neném. Veja com quem você brinca. Um dia desses você pode se dar mal...
Ela, já refeita da surpresa, tentou desvencilhar-se:
- Solte meu braço, seu... seu "fresco".
Luís vibrou-lhe uma bofetada, a mão aberta estalando no rosto da garota.
Um dos companheiros dela veio correndo da mesa. Luís, empurrando-o para o lado, encarou-o firmemente.
- Que é que você quer, garoto? Vê lá se quer se machucar...
O outro, bem mais fraco que ele, parou. A moça disse:
- Deixa p'ra lá, André. Pode deixar que eu resolvo...
O rapaz olhou Luís de lado, depois voltou para a sua mesa. Virando-se para a moça, Luís reparou que de sua boca escorria um filete de sangue. Puxou seu lenço do bolso traseiro da calça, passando-lhe o mesmo, num gesto displicente.
- Toma. Limpa a boca...
Ela apanhou o lenço, passando-o pelos lábios intumescidos.
- Doeu... - disse, num meio sorriso.
Olhava-o maliciosamente, dois olhinhos verdes, ariscos, que não paravam de brilhar.
Ele apanhou o lenço de volta e, vendo que os lábios dela ainda permaneciam inchados, puxou-a pelo braço, dizendo com frieza:
- Venha cá. Vamos dar um jeito nisso.
Conduziu-a ao lavatório e, após molhar o lenço, passou-o com cuidado, levemente, pelos lábios da menina, fazendo pressão com a ponta dos dedos, a fim de estancar o sangue.
Ela continuava com os olhos grudados nos dele, como em transe. Apertou-lhe o pulso da mão que segurava o lenço, dando um gritinho de dor.
- Ai, cuidado. Não aperta tanto, você acaba quebrando o meu dente... - disse, com voz melosa.
Ela sorria maravilhosamente. E ele, não sabia o motivo, estava um pouco perturbado.
Aqueles olhos verdes em cima dele mexiam com seu interior. Retirou o lenço, olhou para a ferida com olhar de entendido.
- Acho que agora está melhor... Abriu a torneira e deixou a água correr sobre o lenço. Torceu-o, enrolou-o em papel higiênico e colocou-o de volta no bolso. Ela, ainda encarando-o com um sorriso zombeteiro,perguntou:
- Qual é o seu nome?
- Luís - respondeu secamente.
- Você não quer se sentar com a gente?
- Não, obrigado - respondeu ele, em frente ao espelho, passando o pente no cabelo. - Já pedi na minha mesa.
- Então... eu posso sentar com você?
Luís virou-se para ela e sentiu, então, toda a força de seu olhar. Ela permanecia fitando-o fixamente, dentro dos olhos, sem pestanejar. Em outra ocasião, ele teria respondido que não... Era meio metido a machão, não gostava de paparicar mulher. Mas, ela tinha algo que o atraía, não sabia o que era... Talvez fossem os olhos verdes, talvez sua pele bem moreninha, de um bronzeado cor de cobre. Poderia ser ainda o cabelo curtinho, franja na testa, ou mesmo o corpo certinho, sem sobrar nem faltar coisa alguma. Ou, quem sabe, aquele sorriso encantador,um pouco ingênuo, um pouco debochado...
Respondeu, quase sem refletir:
- Tudo bem, se você quiser. Mas, não vou demorar muito. Tenho várias coisas p'ra fazer.
Ela tomou-lhe o braço e dirigiram-se para a mesa dele. Seus companheiros da mesa ao lado nem pareceram notar que ela estava com ele, continuando a conversar.
Seu nome era Shirley. Filha de papai rico estudava por esporte, mas sua profissão era gozar a vida. Passava a maior parte dos seus dias nos bares, discotecas, inferninhos, praia, clube, etc... Bebia, dançava, fumava, freqüentava os motéis da Barra, também começando a aparecer no início daqueles anos 60... Papai liberal financiava tudo.
Ele almoçava rapidamente, tinha que fazer uma entrevista dali a meia hora. Ela continuava falando sem parar. Seu linguajar era um festival de gírias, uma língua difícil de entender.
- E é só essa a sua vida? Você não pensa em fazer nada de útil? - perguntou ele, enquanto mastigava um pedaço de carne.
Ela o encarou com uma expressão divertida. Respondeu, assumindo uma pose de filósofa de lanchonete:
- E, o que você considera ser útil? Viver sob as regras dessa sociedade falsa, cheia de hipocrisia, que se esconde sob uma capa de moral artificial, quando no fundo são todos podres? Que criam seus filhos sem amor, sem carinho, sem dar-lhes nenhuma orientação? Pensam apenas neles próprios, em sua posição social, nas festas e recepções a que comparecem por dever social e onde o prato do dia é falar da vida alheia... Não, meu bem, prefiro o meu mundinho, que pode ser pequeno, considerado desregrado, mas que, ao menos, é sincero, livre, onde se tem a impressão de ser alguém. Não um autômato cumprindo ordens, relegado a um segundo plano, mas alguém que vive, que respira e que também tem o direito de pensar, de falar, de ter idéias próprias...
Falava como se desabafasse, não conseguindo disfarçar um tom de revolta em sua voz.
Luís sentia-se intimamente entediado. Já vira aquele filme diversas vezes antes: menininhas filhinhas do papai, cheias de dinheiro, revoltadas contra a sociedade, com raiva do mundo... "É que nunca tiveram que lutar pela vida, nunca passaram dificuldades, tudo sempre foi fácil para elas...". E ainda se faziam de vítimas.
Luís levantou os olhos. Perguntou, sério:
- Você tem problemas em casa, não tem?
Ela sorriu, um pouco sem graça. Pensou um pouco antes de responder:
- Eu não. O que me interessa é o dinheiro deles. Eles que vivam como entenderem, pouco me importa. Desde que não me falte o "tutu"...
Luís decidiu dar uma de moralista, um pouco cinicamente:
- E você não pensa em casar, ter filhos, sua casa? Não pense que vai ser jovem a vida inteira... Um dia você envelhece e vai chegar à realidade de que não foi e nunca conseguirá ser ninguém...
- Eu sou alguém - ela o interrompeu, de forma um pouco brusca. - Pelo menos, p'ra quem me interessa ser. - Apontou para seus companheiros, na mesa ao lado: - Pergunte a eles...
Luís levantou-se e disse-lhe, encerrando a conversa:
- É o que você pensa. Espera que o tempo passa e você vai ver se eles ainda estarão do teu lado.
- Mas, como você é careta - retrucou ela, sorrindo. - Fala igualzinho ao meu pai...
Ele a olhou de cima a baixo, sem nada dizer. Após pagar a conta, virou-se para ela, despedindo-se:
- Bem, vou andando. Infelizmente - sorriu pela primeira vez - tenho que ganhar a vida...
Já ia embora, quando subitamente, não sabe a razão, virou-se outra vez para ela e perguntou:
- Quando é que eu te vejo de novo?
Ela, com um sorriso maroto nos lábios, levantando-se:
- Qualquer dia desses. Depois das dez da noite, estou sempre por aqui.


* * *


Os dias se passaram. Luís, após o dia normal de trabalho, terminava a noite com Shirley e seus amigos. Iam a festas, bebericavam nos bares, faziam programas de violão até altas horas da madrugada, sucedendo-se os dias numa agitação contínua. Luís, cada vez mais, sentia-se prender a Shirley. As tardes, agora, em vez de trabalhar, passava-as com ela, passeando de mãos dadas pela cidade, apreciando seus recantos pitorescos. Era a única oportunidade em que podia estar a sós com ela, pois as noites, Shirley fazia questão de passá-las em companhia de sua turma.
Os companheiros de fé da menina eram duas moças, Rose e Gilda, dois efeminados, Juju e Ricardo, Vítor, o namorado de Gilda e André, o boa vida. Esse era o único pobre da turma, vivendo encostado no dinheiro dos outros. O "parasita", como eles o chamavam. Ele, com cinismo, aceitava com prazer aquele título. Todos, entretanto, gostavam muito dele. Era esse o mundo maravilhoso de Shirley. Seis imbecis, com pouco mais ou menos 20 anos de idade, considerando-se os donos do mundo. Luís não os suportava, Mas, queria estar junto dela, não lhe bastavam apenas as tardes em que ficavam sós. Por isso, reunia-se a eles todas as noites, agüentando, entediado, as conversas que dali nasciam.
Junto ao seu grupo, ela era autoconfiante, dominava suas emoções, fazendo-se de superior, de dominadora do ambiente. Perto dele, entretanto, quando estavam os dois sozinhos, ela parecia mais frágil, mais insegura, parecendo necessitar de alguém que a protegesse. Não era tão atirada, tão convencida, deixando que ele tomasse todas as decisões. Fazia questão, no entanto, de.não admitir sentimentalismos. Gostava de demonstrar, sempre que possível, que vivia somente na realidade, encarando-a crua e friamente, sem fantasias...
Lembrava-se de uma dessas suas demonstrações contra o sentimentalismo... Certa tarde, passeando os dois pela Nossa Senhora de Copacabana, o pôr-do-sol chegando, um fotógrafo de rua, aproveitando a pose dos dois abraçados, andando distraidamente, a cabeça dela apoiada no ombro dele, bateu a chapa. Ela pareceu aborrecer-se com aquilo, e, quando o fotógrafo lhe entregou o papel do estúdio para que apanhasse o retrato posteriormente, ela o amassou com desprezo, fazendo o seguinte comentário e assumindo aquele ar de filósofa, mais uma vez:
- Retratos... P'ra que isso? Eles não espelham a alma, só a aparência. Tenho nojo dessas emoções baratas...
Luís nada disse. Aliás, prometera a si mesmo, desde que começara a sair com ela, a respeitar-lhe a opinião, mesmo que com ela não concordasse. E ela era terna, carinhosa, alegre, uma verdadeira criança em seus braços. Talvez mimada demais, mas nada mais que uma criança.
Adorava pregar-lhe peças, divertia-se com suas reações um tanto ou quanto sérias, chamava-o de ultrapassado, de velho, a ele, que tinha apenas 25 anos. Tinha quase certeza de que ela já começava a amá-lo. Quando a beijava, percebia que ela sentia prazer verdadeiro, fechando os lindos olhinhos e enfiando a língua, nervosa e sem controle, dentro de sua boca... Ela estremecia todinha, entregando-se àquele momento de carinho... Nas madrugadas passadas nos motéis, da Lapa ou da Barra, eram as poucas ocasiões em que ela se traía, deixando transparecer uma pontinha de emoção...
Durou sete meses aquela quase lua-de-mel. O rompimento veio de modo fútil. Mas, a decisão que tomou foi a correta. Não poderia submeter-se a caprichos idiotas e estragar seu futuro, ir contra seus princípios...
Foi num daqueles fins-de-noite, quando já bastante excitados pela bebida, estavam na rua os oito. Ricardo, um dos efeminados, teve a idéia luminosa. Disse, cheio de afetação:
- Vamos fazer alguma coisa diferente hoje? Essa rotina tá me cansando...
Os outros o olharam, curiosos. Shirley, a cabeça apoiada no ombro de Luís, perguntou:
- Que é que vai ser?
- Que tal roubar um carro? Vai ser um barato, vocês vão ver - respondeu a bicha, desmunhecando.
- Juju, que é que você acha? - perguntou Shirley, a princípio desinteressada.
A outra bicha, entusiasmada:
- Legal, ótima idéia. Quem é que vai fazer a ligação direta?
Os outros concordaram. Luís disse:
- Bem, eu vou embora. Se vocês querem fazer merda, não contem comigo...
Ricardo o encarou, fazendo-se de ofendido
- Que foi que houve, grande homem? Tá com medo? Eu acho que você é quem devia fazer a ligação...
Luís deu-lhe as costas, dizendo:
- Sai p'ra lá, palhaço. - Virou-se para Shirley, puxando-a pelo braço: - Vamos embora, Shirley.
Ela separou-se dele, largando do seu braço. Disse calmamente:
- Não, eu fico com eles. Se você é covarde, nós não somos. Vai dormir cedo, benzinho. Lugar de criança é na cama...
Luís ficou chocado com a reação da menina. A raiva tomou conta dele, fazendo-o ficar vermelho como um camarão. Controlou-se, entretanto. Disse-lhe baixo, com voz rouca:
- Está bem, faz o que você quiser. Você é dona da sua vontade, sabe de tudo. Mas, depois, quando se arrepender, não vem chorar no meu ombro...
Afastou-se, deixando-os rindo dele.

* * *

Não mais a viu por uns dois meses. Afastou-se completamente dos lugares onde poderia encontrá-la e ao seu grupo. Voltou ao ritmo normal de trabalho, produzindo agora mais que nunca, na esperança de, com as horas do dia cheias, conseguir esquecê-la. Em vão... Ela não saía de seu pensamento. Dormia e acordava com sua figura na mente. Por várias vezes, pensou em procurá-la, abraçá-la e beijá-la loucamente, dizendo-lhe o quanto a amava... Acabava resistindo à tentação. Tinha que lhe mostrar que era mais forte e que aquele não era o caminho a seguir na vida. Viver cercada de parasitas, de gente vazia...
Viu-a uma vez, quando fazia uma reportagem à noite, numa Delegacia de Polícia da Zona Sul... O camburão chegou, trazendo-a e à sua turminha de babacas. Todos alcoolizados.
Quando o viu, ela pareceu ter um choque. Controlou-se, fingindo não o reconhecer, virando o rosto com desprezo. Seus colegas, ao vê-lo, embriagados, comentaram, em tom de deboche:
- Olha ali o fujão. Tem ido cedo p'ra caminha, babaca?
Ele nada respondeu. Ficara perturbado ao vê-la naquele estado. Completamente bêbada, transtornada, fora de si, numa Delegacia de Polícia...
O Delegado mandou recolhê-los. Depois que saíram, perguntou a Luís:
- São seus conhecidos?
- Sim, conheço eles. O que é que fizeram?
- Nada de sério. Bebedeira, arruaça num bar...
- Se o senhor quiser, eu me responsabilizo por eles. Pode soltá-los...
Depois de um tremendo esporro do Delegado, foram mandados embora. Menos Shirley... Ao saber que Luís intercedera por eles, recusou-se a sair. Preferiu ficar detida...
Disse ao Delegado, com desprezo e insolência:
- Por favor, avise meus pais. Eles vêm me soltar. Não preciso que nenhum babaca faça nada por mim...
E dormiu na cadeia...

* * *

Alguns meses mais tarde, ao sair da redação do jornal, foi abordado por André, que o fez parar.
- Como é que vai?
Luís fitou-o de alto a baixo. Respondeu, um pouco aborrecido:
- Tudo bem. Alguma novidade?
André estava alegre. Sorria muito, mostrando os dentes, naquele cinismo que o caracterizava.
- Novidade? Nenhuma... Por que você sumiu?
Luís voltou a olhá-lo de cima a baixo, procurando adivinhar porque ele fora procurá-lo, já que, evidentemente, aquele encontro não era casual. Respondeu secamente:
- Você deve saber melhor que eu...
André sorriu novamente. Bateu-lhe no ombro, num gesto amistoso.
- Deixa isso p'ra lá, meu amigo. Aquilo realmente foi uma besteira, mas já passou.
- Olhe, Rose vai dar uma festa na casa dela, no sábado. Por que você não aparece? Só p'ra bater um papo com o pessoal...
Luís ficou em silêncio por um instante. Depois, respondeu, procurando demonstrar indiferença:
- Vamos ver. Vou pensar...
Estava doido para perguntar por Shirley, mas se conteve...

* * *

Na noite de sábado, em seu velho Austin, rodava a esmo por Ipanema, que naquele janeiro de 1960 era bem diferente do que é atualmente. Menos edifícios, mais casas, inclusive na beira da praia, hoje praticamente inexistentes. Menos gente nas ruas, movimento tranqüilo das pessoas, sem o corre-corre dos dias de hoje; uns saíam da sessão de cinema, na Praça Nossa Senhora da Paz; outros tomavam um sorvetinho, aproveitando a brisa gostosa que vinha da praia.
Luís pensava se decidia ir ou não à casa de Rose. Será se "ela" estaria lá? Deveria estar. Tinha quase certeza de que havia sido ela quem mandou André procurá-lo com aquela conversa mole.
Depois de rodar muito, indeciso, resolveu ir. Deu a volta por trás da casa e estacionou o carro. Ficou dentro dele por algum tempo. Começou a chover forte. Fora do carro, via o céu sendo riscado a todo instante por um sem-número de relâmpagos. Acendeu um cigarro, ligou o rádio e ficou olhando para a casa. Então a viu. Em pé, junto a uma janela do sobrado, lá estava ela. Aquela silhueta tão familiar realçava-se na moldura da janela, cada vez que o céu se iluminava. Esperava-o, tinha certeza. Espiava a todo instante para ver se ele vinha, pensou... Ela,.entretanto, não o vira, nem sabia que ele a observava. Permanecia ali, em pé, qual um espectro noturno, olhando para a rua, em seu posto de vigília.
Acabado o cigarro, ajeitou melhor a gravata, penteou-se frente ao retrovisor, fechou as janelas do carro e saiu.
Entrou na casa. André, já meio "tocado", recebeu-o de copo na mão. Sorria, como sempre...
- Quer dizer que você se dignou a se misturar com a plebe... Venha, vamos entrar...
Luís cumprimentou-o friamente, estendendo-lhe a mão com indiferença. Shirley, que já devia tê-lo visto entrar, dançava agarradinha com um rapaz. Ao vê-lo no salão, apertou-se mais ainda ao par, fingindo não havê-lo notado.
A luz do recinto era tênue, a vitrola tocava em seu volume máximo um long-play de Ray Coniff, todos já pareciam um pouco alegres demais. Rose, ao vê-lo, veio bamboleando, toda risonha.
- Luís, que agradável surpresa. Como foi bom você ter vindo, Temos tanta coisa p'ra te dizer. E, a gente te deve mil desculpas pelo modo como te tratamos...
Tomou-lhe o braço e o levou até uma janela. Ali, ficaram conversando, olhando para fora, para a chuva que caía, copiosa, respingando forte nos vidros e nas poças formadas no chão.
Chuva de verão... Vinha e ia logo embora... Só para refrescar...
Rose, falando muito pelo efeito da bebida, achegou-se mais a Luís, apertando seu corpo contra o dele. Disse-lhe, em voz baixa:
- Olhe, não ligue p'ro que eu estou fazendo. Mas, é que eu quero dar uma lição na Shirley. Ela jurou que você não vinha, que isso pouco lhe importava, você sabe como ela é... No entanto, não dançou com ninguém antes que você chegasse, ficando grudada naquela janela, bebendo como um gambá, espreitando se você vinha ou não... E. agora, se agarra com qualquer um, só p'ra te fazer ciúmes...
Fez uma pausa. Luís deixava-a falar.
- Ela te ama, Luís... Mas, não quer dar o braço a torcer. Quer que você se humilhe a ela, fique de joelhos, para, então, se sentindo a dominadora, aí se entregar ao amor de vocês dois... - Mas, eu sei que você não vai entrar no jogo dela, por isso me deixa te ajudar, já que vocês parecem duas crianças. Daqui a pouco você me beija escandalosamente, aqui mesmo, na frente de todo o mundo, e vamos ver qual será a reação dela... Ou te dá um bom tapa na cara ou cai chorando nos teus braços...
Ele achou aquilo tudo muito estranho. Não sabia se o que ela dizia era sincero, ou se não passava do efeito do porre em que ela se encontrava... Ou, talvez, mais um de seus caprichos, fazer ciuminho na amiga de farra... Deixou-se levar, curioso...
- Tá legal, disse sorrindo. Mas, não pense que faço isso por ela. Ela não me interessa mais. Faço por você...
Rose sorriu maliciosamente. Disse, com ironia:
- Pode deixar que eu acredito...
Continuavam de costas para o salão. Daí a três minutos, os dois já abraçados, Rose puxou o braço dele.
- Agora, Luís, está perto. Vire-se e me beije.
Luís virou-se para o pessoal que dançava e deu de cara com Shirley, ali, pertinho dele.
Seus olhares se cruzaram, e ela, vendo que ele a olhava fixamente, agarrou-se mais ao seu par, beijando-o no rosto..Luís, puxando Rose para junto de seu peito, deu uma sonora gargalhada e beijou-a na boca, com sofreguidão. Reparou que Shirley, a dois passos dele, pareceu ficar surpresa, depois a raiva fuzilou-lhe os olhos. Abandonou seu par no salão e saiu dali correndo, o belo vestido branco esvoaçando no ar...
Luís empurrou Rose para o lado e atravessou com dificuldade aquela multidão de gente dançando. Não a via mais. Ela saíra do salão... Transpôs a porta de entrada da casa e a viu entrar, muito nervosa, num Volks azul. Gritou:
- Shirley... Shirley, me espera. Quero falar com você...
Ela ligou o carro e se afastou velozmente, batendo de leve, ao arrancar, em outro automóvel estacionado. Luís correu para o Austin e o ligou, nervoso. Suava frio, as mãos tremiam... Engrenou a primeira e saiu atrás dela. As luzes traseiras do fusca brilhavam na frente, a uns cem metros de distância... O velocímetro do Austin já estava em 90, ela parecia cada vez se distanciar mais... Pisou o acelerador até o fim. O velho carro parecia que ia desintegrar-se, tal o esforço que fazia... 95, 100... E ela, cada vez mais longe. Ainda bem que, àquela hora, quase duas da madrugada, o tráfego era fraco. O Volks, já em Copacabana, cantou os pneus ao dobrar na Av. Atlântica (que ainda não havia sido duplicada). Ela sabia que ele o seguia... Copacabana foi-se num instante. Atravessaram o Túnel Novo, entrando em Botafogo. No morro da Viúva, ao fazer a curva, parecia que os carros iriam parar no mar... Entraram nas pistas do Aterro do Flamengo. Então, com mais velocidade, aproveitando a falta total de movimento, aconteceu...
Luís viu de longe o Volks bater num dos postes de iluminação, rodar em volta de si mesmo por toda a extensão da pista, capotar três vezes, ficando de rodas para o ar...
Dirigiu-se para o local rapidamente. Ali, saltou correndo do Austin e, entre aquele monte de ferro amassado que sobrou do fusca, do cheiro de gasolina e de borracha de pneus queimada, divisou, estendido no chão, ao lado do carro, o corpo inanimado de Shirley. O rosto, uma máscara de sangue. Sua perna direita deixava à mostra a tíbia fraturada... O braço, também o direito, quebrado, pendia inerte... Sua cabeça parecia rachada, com o sangue correndo em abundância por uma fresta aberta... O cabelo, empapado de sangue, caía-lhe no rosto... Ajeitou-a com cuidado... Os lindos olhinhos verdes permaneciam fechados, como se ela dormisse. Num gesto de torpor momentâneo, beijou-lhe os lábios molhados de sangue. Voltando à realidade, colocou-a nos braços, ajeitando-a com cuidado no banco traseiro do Austin. Dali, quase voou para o hospital.

* * *

Desde as três da manhã estava naquela sala de espera... E nada, nenhuma notícia...
A enfermeira dissera que iriam operar. Meu Deus, ela tinha que ficar boa. Viveria só para ela.
Compreendia, então, o quanto a amava.
Tinha o corpo cansado. A noite em claro fazia, agora, sentir seus efeitos. A cabeça começava a doer-lhe, um torpor tomava conta de si. Os pulmões lhe ardiam, castigados pela fumaça ininterrupta dos cigarros consumidos. Sentia uma sensação de vácuo no estômago, sem ter fome nem sede... As pálpebras tornavam-se pesadas, sentia dificuldade em manter os olhos abertos..Virou-se, ao ouvir abrirem a porta. Era o médico. Estava ainda de avental, e um gorro branco encimava-lhe a fronte. Tinha a fisionomia cansada, mas os traços de seu rosto eram duros, firmes, dando-lhe uma expressão de austeridade.
Luís caminhou para ele, ansioso. Hesitou no meio do caminho, parou... O médico olhou-o de cima a baixo, examinando-o num só relance.
- Foi o senhor quem trouxe a moça?
- Sim, fui eu - respondeu gaguejando. - E, então, doutor, como é que ela está?
O médico olhou para ele. Depois, disse, em tom rápido, com uma certa aspereza na voz:
- Infelizmente, ela faleceu na mesa de operações...
Luís sentiu-se estremecer. Fez um grande esforço para controlar-se, mas suas mãos tremiam nervosamente. Apertou-as com força, uma contra a outra. Procurou dizer alguma coisa, perguntar algo... Nada. Ficou em silêncio.
Depois de algum tempo, passada a paralisia causada pelo choque da notícia, perguntou, com voz sumida:
- Ela... ela disse alguma coisa?
- Não, ela não saiu do "coma".
O médico, tirando um pequeno saco plástico do bolso do avental, passou-o a Luís.
- Tome, isto estava com ela. Devia gostar muito do senhor, pois trazia isto por dentro do soutien, junto ao seio esquerdo. Era sua esposa?
Luís apanhou o saco plástico. Como um autômato. Viu que havia alguma coisa em seu interior. Abriu-o e, ao ver o que era, estremeceu fortemente, suas mãos quase perdendo a sensibilidade. Não, não... não podia ser verdade. Aquilo... A fotografia que tiraram juntos em Copacabana. Então, ela não tinha jogado fora o papel do estúdio... Apenas o amassara, guardando-o consigo... E, depois, apanhara o retrato. Guardava-o junto do coração. Lá estava ela, sorrindo maravilhosamente, a cabeça apoiada em seu ombro, os lindos olhinhos verdes faiscando qual duas estrelas no firmamento...
Seus olhos começaram a se encher de água. Afastou-se em passadas rápidas, deixando o médico no meio da sala... Dirigiu-se ao banheiro. Lá, encostou a cabeça na parede, dando vazão à dor que lhe dilacerava a alma. Chorava, soluçando, mordendo os lábios com raiva... Se um homem não costuma chorar, naquele momento ele era uma exceção à regra...

* * *

Meia hora depois, estava em Copacabana, na Av. Atlântica. Andava pelo calçadão, do lado da praia. O sol apontava, majestoso, no horizonte ao longe, refletindo seus primeiros raios sobre o morro do Leme e o Pão de Açúcar, ao fundo. Os pombos, em bando, esvoaçavam em busca de comida. Cinco e quarenta. A praia ainda estava deserta. Apanhou o retrato do bolso do paletó. Deu-lhe uma última olhada, depois o rasgou em pedacinhos, atirando-os para o ar, atrás de si. Deu-lhes as costas e afastou-se vagarosamente, cabeça baixa, mãos no bolso, gravata frouxa no pescoço, paletó nas costas....A brisa que soprava naquela manhã, que prometia ser de uma luminosidade maravilhosa, levantava no ar, afastando para longe e distribuindo-os pela areia, pela calçada e pela rua, os pequenos fragmentos da fotografia rasgada...

* * *

ENCURRALADO

E N C U R R A L A D O


CALF


Rabecão despertou assustado... Seus ouvidos, já acostumados a perceber o menor ruído, alertaram-no dos movimentos que faziam fora da casa. Levantou-se silenciosamente, arrastando-se pelo chão até a janela. Com cuidado, correu com os olhos as cercanias do local em que se encontrava. Lá estavam eles, mexendo-se com cautela, fechando o cerco em volta da choupana, fazendo o possível para que ele não os ouvisse, pois esperavam pegá-lo desprevenido.
Tinha de ser assim, porque só em pensar em enfrentá-lo frente a frente, tremiam de medo.
Covardes... Mais de vinte homens, todos armados até os dentes, e tremiam... tremiam diante dele... Arrastou-se até a outra janela e, dali, viu que eles também já se deslocavam por aquele lado.
Cercado... Sentou-se calmamente no meio do compartimento (a casa só possuía aquele) e começou a enrolar um cigarro. Acendeu-o, enquanto seu cérebro trabalhava febrilmente, com uma rapidez espantosa. Eliminava mentalmente os modos que imaginava em poder fugir dali... Dessa vez, parecia que estava "frito". Mas, se o levassem, seria somente morto... Sabia muito bem, mesmo que se entregasse, eles o matariam, não lhe dariam a mínima chance... Desde que fugira da penitenciária, há três anos trás, já acabara com dois deles, e, morte de polícia tem que ser paga com a vida... Esse era o lema deles... Para aquelas mentalidades ignorantes e vingativas, só a morte do criminoso saciaria a sede da sua "justiça"...
A erva começava a fazer efeito. Sua mente tornava-se turva, enevoada, o grau de excitação de seu organismo aumentava rapidamente. Estava tenso, músculos e sentidos prontos a reagir ao primeiro estímulo exterior. Puxou outra tragada profunda: seus olhos ficaram mais vermelhos, ardiam mais... Permanecia num silêncio absoluto. Esgueirou-se lentamente até junto de sua cama. Levantou o colchão de crina e apanhou os dois "45". Conferiu suas cargas e os enfiou por dentro da calça. Arrastou-se de novo até a janela. Viu que conversavam agora em voz baixa, acertando os últimos detalhes para o ataque. Respeitavam-no, e, por isso, queriam ter certeza de que não teria a menor possibilidade de reação. Só então investiriam...
Sentou-se no chão, encostando-se na parede e estirando as pernas para a frente. Relembrava, a poucos instantes do fim que se aproximava, o que fora sua vida... Moleque criado na favela, o pai morto quando ele ainda não tinha dois anos de idade; a mãe, passando a semana toda fora, trabalhando em casa de família, na Zona Sul. Viveu sua infância jogado aqui e ali, aprendendo a ter que se "virar" por si próprio para sobreviver. Assim, com 13 anos já roubava e, aos 14, estava internado numa casa de recuperação de menores... Bem, chamavam-na de recuperação, mas foi ali onde verdadeiramente aprendeu todas as artimanhas e truques do crime..Ali, foi espancado pelos "inspetores de disciplina", foi enrabado por um dos rapazes mais velhos, seguro por outros dois... Depois, matou os três... Mentes jovens já impregnadas de revolta, de ódio. Revoltados até pelo simples fato de terem nascido. O que poderia esperar daquela promiscuidade? As portas do crime lhe foram abertas. Logo reconheceu que ninguém de fora lhe estenderia a mão, aquele é que era o seu mundo, teria que se acostumar com ele... Mas, aquela convivência maléfica, talvez, é que acabou por perdê-lo... Fugindo dali, continuou a assaltar, passando a ser conhecido como um dos terrores das favelas... Aos 17 anos, já tinha cinco mortes nas costas... Daí em diante, sua vida foi uma sucessão de prisões e fugas. Aos 23, já inteiramente constituída sua forma humana, era um tremendo "crioulão" de quase dois metros de altura, forte como um touro. Sempre roubando, matando quem quer que lhe ousasse barrar os passos. Brigas por dinheiro, brigas por mulheres, brigas com a polícia... Matando sempre, agora friamente, sem qualquer emoção...
A sociedade tinha que bani-lo de seu convívio. Ela, que se preocupou tanto com sua infância, procurando encaminhá-lo para o estudo, dando-lhe uma vida decente, longe daquele morro infecto. Aquela mesma sociedade que sempre se preocupou com a pobreza, com a miséria, com o menor desamparado. Sentia nojo de todos eles... Tinham mais é que morrer...
Sempre fora um pária. Nascera marginalizado, vivera marginalizado e morreria como marginal... Escorraçado pelo mundo que lhe negou o direito de viver honestamente, apenas porque nasceu pobre...
Já agora, decorridos três anos de sua última fuga, era considerado o "inimigo público nº 1", sucessor de "Mineirinho", "Lucio Flávio", "Fernando C. O." e outros tantos que, antes dele, atemorizaram a cidade, a polícia, a sociedade... As famílias, quando sabiam que ele estava por perto, tremiam de medo, fechavam portas e janelas, refugiavam-se em suas casas. Seu nome era notícia obrigatória das primeiras páginas dos jornais. A perseguição sobre ele estava implacável.
A polícia vasculhava noite e dia todas as favelas, todos os morros da região. Sempre escapara por pouco, fugindo milagrosamente no último momento.
E, em suas escaramuças com a polícia, liquidara dois deles. Por isso, sabia que não lhe dariam a menor chance.
Vivera esses últimos meses se escondendo, fugindo, cada dia em um lugar diferente.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles o apanhariam. Mas, lutaria até o fim, não ia deixar barato não. Já vira a morte de perto várias vezes, acostumando-se a tê-la ao seu lado.
Nisso, a porta da frente foi empurrada violentamente, uma rajada de metralhadora varreu o recinto. Rabecão levantou-se de um só salto, colando-se à parede, junto à porta. O silêncio que se fez não deixava perceber nem o ruído da respiração de quem ali estava. A noite, escura como o breu, nada deixava ver no interior da casa.
Após aqueles momentos de tensão absoluta, quem estava lá fora gritou alto:
- Venham. Ou ele já fugiu ou eu acabei com o bicho. Tá tudo quieto por aqui...
O sujeito acendeu uma lanterna, iluminando o compartimento através da porta aberta.
Foi avançando lentamente. Rabecão coseu-se mais à parede, parando de respirar. Tirou a arma da cintura, já engatilhada, e apontou-a para a porta.
O outro avançava com cuidado. Primeiro, apareceu a ponta de sua metralhadora, feroz, ameaçadora. Depois, seu perfil vislumbrou-se junto à porta. Parou por um instante.
Levantou o cano da arma e gritou:
- Rabecão, você tá aí dentro? Sai de mãos p'ra cima...
O bandido deu um salto para frente. Voltando-se rapidamente, o outro disparou a metralhadora. Acertou apenas a parede, pois Rabecão deu-lhe dois tiros no peito. O camarada deu um grito e caiu pesadamente de cara no chão, no lugar da porta aberta..Aquilo, então, transformou-se num inferno.
Lá fora, parecia que estavam em guerra, visando um único alvo: a choupana. O compartimento foi varrido por balas de todas as armas possíveis de imaginar. Só faltou mesmo canhão...
Rabecão sentiu que fora atingido, jogando-se rapidamente ao chão. De seu ombro direito, quase junto ao pescoço, o sangue jorrava em abundância. Arrastou-se até a janela e, dali, passou a revidar. Os homens lá fora gritavam como doidos, histéricos:
- Vamos, acabem logo com esse miserável...
A dor em seu ombro era terrível. Perdia sangue cada vez mais. Sentia-se fraco, já meio tonto, as forças deixando-lhe o corpo. Era o fim que se aproximava. Sentou-se no chão, parando de responder aos tiros. Encostou-se na parede, estirando mais uma vez as pernas.
Procurou a "erva" em seu bolso e começou a enrolar um cigarro. Talvez fosse seu último. Depois de pronto, acendeu-o e puxou profundamente uma tragada. O efeito foi instantâneo. Seu corpo entrou numa espécie de dormência, fazendo-o esquecer a dor insuportável que sentia. O sangue, entretanto, continuava a esguichar. Já começava a se sentir fora daquilo tudo. Seu pensamento voltava à infância, à favela onde fora criado...
Lá fora, vendo que ele parara de atirar, também pararam. Após um silêncio de mais ou menos dois minutos, gritaram:
- Rabecão, sai de mãos p'ra cima, que não vamos te fazer nada. Você será julgado com justiça, eu te prometo...
Era o Delegado Silva Dantas quem falava. Ele, que já prendera Rabecão várias vezes anteriormente, que já o espancara e humilhara. Homem violento, frio, adorava matar bandidos em nome da lei. Rabecão pensava: "A única diferença entre ele e eu é que ele estudou e eu não... No fundo, os dois somos matadores..."
"Justiça... Conhecia bem a justiça deles". Suava abundantemente. Sua camisa, aberta no peito, estava colada ao corpo, empapada de sangue. O suor escorria-lhe pela testa, pela face, pelo pescoço. Seus olhos lacrimejavam pela ação do "fuminho"...
Num último esforço, sentindo-se quase desfalecer, levantou-se de súbito, as duas "45" nas mãos, e saiu porta afora. Tropeçou no cadáver à sua frente, reequilibrou-se... Do lado de fora, em pé, vomitou fogo por seus revólveres, gritando e chorando como um possesso:
- Venham, seus putos, cambada de covardes... Venham me apanhar se forem homens... Venham... Venham...
As balas choveram sobre ele. Seu rosto contraiu-se no último gesto de dor, o corpo virando uma peneira, os buracos esguichando sangue em todas as direções... Tremeu um pouco e caiu pesadamente. Caiu para a frente, a cara enterrando-se no solo úmido...
No dia seguinte, os jornais estampavam na primeira página a fotografia do Delegado Silva Dantas, vitorioso, transformado em herói, metralhadora na mão, ao lado do cadáver do bandido, sua presa afinal conseguida caçar.
As manchetes estampavam, em letras garrafais:
"ELIMINADO RABECÃO.
A sociedade já pode respirar tranqüila "
A justiça, mais uma vez, se fizera...

segunda-feira, junho 25, 2007

SONHO DE UM ANJO



SONHO DE UM ANJO

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Lílian acordou cedo naquela manhã. Era seu primeiro dia de aula. Ansiava por voltar à escola. Desejava rever suas colegas, conversar com elas sobre os passeios que fizera durante as férias, assistir Da. Célia dar a primeira aula daquele ano... Já estava na terceira série primária e era uma das primeiras da turma. Tomou seu banho e, ajudada pela mamãe, vestiu o uniforme novo, ainda passadinho, como viera da loja.
Ajeitou com cuidado a fita branca nos cabelos dourados, mirando-se demoradamente em frente ao espelho, numa atitude de prematura vaidade feminina...
Tinha oito anos e a vida, para ela, começava a desabrochar, na ânsia de aproveitar todos os seus minutos, na agitação contínua de estudar, cuidar de suas bonecas, brincar de roda e de pique. Mas, o que ainda mais gostava era ficar, horas a fio junto da mamãe, antes de chegar a hora de dormir, ouvindo-a ler para ela as histórias dos livros de fada... Adorava as aventuras de Branca de Neve em luta com a Bruxa-Madrasta, de ouvir como Chapeuzinho Vermelho e a Vovó enganavam o Lobo-Mau e, como Peter Pan e Sininho venciam o Capitão Gancho... Ria gostosamente, torcia por seus heróis, ficava apreensiva e nervosa quando as coisas não iam bem para eles, chorava...
Gritaram seu nome da rua:
– Lílian, anda logo... Já tá na hora...
Correu até a janela, e de lá respondeu:
– Já tou descendo... Um minutinho só...
Apanhou sua mala com o material escolar, deu-se uma última olhadela frente ao espelho e desceu correndo as escadas. Na porta, deu um beijo na mamãe, que lhe fez as recomendações costumeiras: cuidado ao atravessar as ruas, não correr muito, voltar logo p’ra casa, não conversar com estranhos, etc...etc...
Na rua, ainda voltou-se para dar um adeus à sua mãe, que a observava, em pé, junto à porta. Deu o braço à Silvinha, sua colega, e lá foram as duas juntas, saltitando alegremente pela calçada...
No colégio, o reencontro com as amigas, depois das longas férias, tomou-lhe todo o tempo disponível antes que tocasse a campainha que as fazia entrar em forma, a fim de se dirigirem para as respectivas salas de aula. Assim mesmo, já na fila, ainda comentava, rindo alegremente e falando alto, como aproveitara suas férias.
Mariazinha viajara de carro com o pai e a mãe; Sônia fora à praia todos os dias; Judith andou p’ra chuchu de barco à vela...
Dª Célia entrou na sala... Cumprimentou alegremente as meninas, tendo nos lábios o sorriso amigo e jovial, uma de suas mais marcantes características. Lílian a adorava... Não só pela maneira agradável e fácil de assimilar com que transmitia suas aulas, mas, principalmente, por sua extrema bondade... Conversava com as alunas após o horário, ouvia seus problemas e dificuldades no aprendizado escolar e da vida, tinha sempre uma palavra de alento e carinho. Levava-as à sua casa, passeava com elas, programava excursões, enfim, estava integrada às suas vidas. Era mais que uma mestra no cumprimento do dever profissional: era uma amiga mais velha.
Ao terminar aquele dia de aula, que passou rapidamente por ser o primeiro após as férias, as alunas precipitaram-se sala afora, fazendo uma barulheira tremenda. Da. Célia, apanhando seus livros sobre a mesa, ao ver passar Lílian e Silvinha, chamou:
– Lílian, tenho uma boa notícia para você...
A menina olhou-a, surpresa. Depois, ficou esperando com ansiedade. Da. Célia disse-lhe, devagar:
– Sua professora de ginástica me disse hoje que você será a representante do colégio, em corrida e salto em distância, nos Jogos Intercolegiais.
Lílian quase caiu para trás. Ficou paralisada. Queria falar, entretanto as palavras não lhe transpunham os lábios. Atirou-se para a professora, abraçando-a fortemente. Da. Célia correspondeu ao gesto, abraçando-a também com ternura.
Disse:
– Eu sabia que você iria ficar feliz...
A menina, voltando a si de sua alegria, afastou-se da mestra e pediu-lhe desculpas pela demonstração de intimidade. Da. Célia apenas riu, felicitando-a mais uma vez.
Na rua, braço dado com Silvinha, Lílian ainda não acreditava no que ouvira.
Permanecia em silêncio, os olhos quase em lágrimas de tanta alegria. Era esse o seu sonho dourado. Por ele treinara dois anos a fio, durante as férias e o período escolar.
Representando a escola, quer correndo, quer saltando, teria mais uma oportunidade de dar vazão à imensa vitalidade que tinha dentro de si. Era uma criança que só se sentia bem quando em atividade...
* * *
Um barulho, vindo de fora da casa, despertou-a. Ainda sorria, com o sonho que tivera ainda bem vivo em sua mente... Com toda a ingenuidade dos seus oito anos, refletia agora sobre a vida...
Dez minutos depois, gritou:
– Mamãe!
Sua mãe logo apareceu. Abraçou-se à filha, beijou-a na face. Perguntou-lhe:
– O que é que o anjo da mamãe quer?
Lílian retrucou, ainda olhando o teto:
– Quero dar uma volta no jardim...
Sua mãe sorriu meigamente e começou a empurrar a cadeira de rodas...
* * *