terça-feira, julho 26, 2016

HISTORINHAS LICEÍSTAS 01...


HISTORINHAS LICEÍSTAS... 01

O FUTURO...

Calfilho



         Desciam a Amaral Peixoto naquele final de 1959. Mario, Celina, sua irmã Sonia, uma amiga muito próxima das duas chamada Carmen, e José Henrique, amigo comum e integrante da diretoria do Grêmio do Liceu.
              Haviam ficado muito próximos nos dois últimos anos, apesar de não estudarem na mesma série. Mario estava terminando o curso científico naquele ano e no mês de janeiro  seguinte, deveria estar fazendo o vestibular de medicina. Celina, Sonia, José Henrique e Carmen, também alunos do Liceu, estudavam em outras séries, abaixo da dele.
                 Ele já sentia há alguns dias a sensação de perda, um vazio dentro de si, à medida em que se aproximava o fim do ano letivo e  teria que deixar o colégio onde estudara os últimos sete anos, onde fizera muitos amigos e participara ativamente do reerguimento do Grêmio, ajudando a fazer dele um expoente nos esportes da vida estudantil da cidade.
                     Os quatro trajavam o uniforme de que tanto gostavam: calça ou saia azul marinho, camisa  ou blusa branca de manga curta, estrelas azuis nos ombros indicando a série em que estudavam, gravata azul displicentemente pendurada na gola aberta da camisa ou blusa, o escudo esmaltado azul com letras brancas LNP fixado no alto da mesma. Havia um outro escudo, o do colégio, bordado ou fixado por colchetes no ombro esquerdo da camisa ou blusa.
                Conversavam sobre o futuro, como seria a vida de cada um nos anos seguintes.
         Quando passavam pela esquina com a rua Barão do Amazonas, Mario comentou, voz um pouco embargada:
                -- Puxa, que pena a gente ter que se separar agora. Logo quando nos conhecemos melhor, ficamos tão amigos.
                   Ninguém disse nada.
                   Continuou:
                -- Mas, vocês tenham certeza, nossa amizade vai durar para sempre, nunca vamos esquecer uns dos outros. 
                   Celina então replicou:
                -- Infelizmente, não vai ser assim. Cada um vai seguir um caminho diferente, outras profissões, e talvez nunca mais nos vejamos. Tudo na vida é passageiro, nada dura para sempre.
            -- De jeito nenhum, nunca vou esquecer de vocês, desse tempo feliz que curtimos aqui no Liceu. Vocês vão sempre fazer parte da minha vida, vamos nos encontrar no futuro, não vamos deixar essa amizade tão bonita morrer assim -- replicou Mario
               -- Pode ser, mas acho isso um sonho teu. Todos nós vamos casar com pessoas diferentes, vamos seguir outras profissões, nossa vida vai mudar completamente, talvez até iremos morar em outras cidades e nunca mais nos veremos -- disse Celina, com um ar melancólico na voz.
                Sonia, José Henrique e Carmen permaneciam calados, nem um comentário saiu de suas bocas. Parece que todos compreendiam interiormente a tristeza daquele momento, preferindo ficar em silêncio.
                  Celina prosseguiu:
               -- Esta fase da nossa vida só vai servir para recordações no futuro -- disse melancolicamente.
              -- Deixa de ser dramática -- rebateu Mario. -- Ninguém sabe o que vai acontecer no futuro. Podemos até trabalhar os quatro juntos, num mesmo hospital, ou num escritório de advocacia, quem sabe? Acho que vamos trabalhar na mesma repartição, num órgão qualquer do governo. Quem sabe até algum de nós case com algum ou alguma liceísta? Você está muito amarga, Celina-- concluiu, com um sorriso amarelo nos lábios.
           Aquele era um momento de despedida. Estavam tensos, talvez até um pouco preocupados sobre como seria a entrada na vida adulta, a vida das responsabilidades. Não queriam perder aqueles dias e meses em que conviveram juntos, seja nos recreios do Liceu, em algum jogo disputado no colégio ou fora dele, em um baile no Regatas ou na casa de algum liceísta ou, talvez ainda, num ensaio ou desfile de 7 de setembro.
         José Henrique permaneceria no Liceu, onde pretendia concluir o curso científico. Mario esperava já estar na Faculdade de Medicina no ano seguinte. Celina, Sonia e Carmem iriam terminar o clássico no colégio Nilo Peçanha, no Largo do Barradas.
            Quando chegaram na esquina com a rua Visconde do Uruguai, despediram-se. Mario iria ficar por ali, pois morava perto, os outros iriam pegar o ônibus para o Barreto (lá moravam José Henrique e Carmen) e o Barro Vermelho, em São Gonçalo, onde Celina e Sonia residiam.
               A despedida foi emocionante. Quase todos deixaram rolar uma lágrima escondida no canto dos olhos. Naquele tempo ainda não havia o costume de trocarem beijinhos nos rostos, por isso, abraçaram-se fortemente.
              Viram-se ainda mais duas vezes. Nem todos.
             José Henrique ainda manteve contato com Mario depois que deixaram o Liceu. No início dos anos 60 participavam de um futebol na praia de Icaraí, no trecho entre a Presidente Backer e Lopes Trovão.
           As três meninas, Celina, Sonia e Carmem, em 1962, foram visitar Mario em sua residência, onde ofereceram-lhe um disco longplay de um famoso cantor brasileiro. 
              Na dedicatória escreveram: "Para o maninho Mario, com afeto das amigas de sempre Celina, Sonia e Carmen".
        Quinze anos depois daquela despedida do Liceu, Celina chegou a passar no local de trabalho de Mario. A recepcionista informou:
         -- Dr. Mario, tem uma senhora aqui que deseja vê-lo. Disse que é sua irmã.
            Mario nunca teve irmã de sangue. Mas, logo adivinhou quem era.
                 Respondeu:
                -- Pode mandar a Dra. Celina entrar.
              Ela entrou alegre, com aquele mesmo sorriso radiante iluminando-lhe o rosto. Conversaram bastante, mataram as saudades daqueles tempos de Liceu.
               Voltaram a não se ver por muito tempo.
             Somente em 2002, quando ele completou 60 anos de idade, marcou um almoço num restaurante do Rio, para comemorar a data. Conseguiu localizar José Henrique e pediu que ele tentasse localizar as "meninas".
            O contato foi conseguido e, no dia marcado, além de José Henrique e outros amigos seus mais próximos, uns da época do Liceu, outros atuais colegas de trabalho, lá apareceram Celina e Sonia. Todos com alguns quilos a mais, os homens já um pouco ou totalmente calvos.
           Conversaram todos animadamente, como se aqueles pouco mais de quarenta anos passados entre a despedida de 1959 e a data atual realmente não tivessem existido. Brincaram uns com os outros, rememoraram cenas passadas e, agora até chegaram a trocar beijinhos no rosto.
             Mario comentou com Celina, sentada ao seu lado:
            -- Eu não te disse que nós nunca iríamos nos separar, nunca iríamos esquecer uns dos outros?
         Ela apenas acenou afirmativamente com a cabeça. Olhar triste, vazio, como se estivesse procurando algo no passado distante...

segunda-feira, julho 25, 2016

ESCOLHAS NA VIDA...

       

ESCOLHAS NA VIDA...

Calfilho





           Acredito que a maioria de nós teve momentos na vida em que tivemos que tomar uma decisão sobre o caminho a seguir, e dessa decisão nosso futuro seguiu a trajetória de vida que tivemos.
              Livre arbítrio? Destino?
           O que seria de nossas vidas, nosso futuro na época e nosso atual presente, se tivéssemos escolhido uma das opções que a vida nos colocava em nossa frente? São aquelas encruzilhadas com que nos deparamos e nos perguntamos: sigo pela estrada da direita ou pela da esquerda?
          Já passei por várias dessas ocasiões e, acredito, muito de nós também passaram. E aí nos surge aquela indagação? Sou realmente dono do meu futuro? Até onde vai meu livre arbítrio, minha capacidade de escolher aquilo que seja o melhor para mim?
          Pretendo relatar aqui alguns desses episódios de escolhas na vida, acontecidos uns comigo mesmo, outros com alguns de meus amigos mais próximos. Em relação a alguns dos personagens não vou colocar seus nomes verdadeiros, pois talvez não desejem relembrar o passado, ou, quem sabe, talvez estejam arrependidos das decisões que tomaram... Minha intenção é apenas a de constatar até onde vai o nosso livre arbítrio e como o destino pode modificar algumas das decisões sobre nossas vidas...
         Uns não acreditam em destino, consideram que suas vidas foram exclusivamente decididas por eles próprios... Outros, ao contrário, entendem que tudo já estava predeterminado desde que nasceram, a vida que tiveram já estava traçada e nada do que fizessem poderia modificar o que já estava escrito...
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           Quando estávamos para terminar o curso ginasial no Liceu Nilo Peçanha, em Niterói, em 1956, vários dos meus colegas de turma, que comigo estudaram desde 1953, já haviam decidido que iriam tentar ingressar nas Forças Armadas: o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica. Não sei bem se essa decisão era deles mesmo (o que acho difícil, pois tínhamos acabado de completar 14 anos de idade) ou, o que é mais provável, de seus pais. Não resta dúvida que o ingresso nas Forças Armadas já praticamente garantiria o futuro dos jovens estudantes. Lizardo, que comigo estudara desde o primário, iria para a Marinha, assim como alguns outros. O Exército arrebanhou mais alguns liceístas e a Aeronáutica foi o caminho de outros. Mesmo tendo que estudar, daí em diante, em cidades distantes de Niterói, como Fortaleza, Barbacena ou Angra dos Reis.
            As meninas, em sua grande maioria, iriam para o Instituto de Educação, onde tornar-se-iam professoras primárias, então a carreira mais indicada para as moças da época.
             Lizardo bem que tentou convencer-me a ir com ele fazer o Colégio Naval, em Angra dos Reis. Além da nossa amizade anterior ao ingresso no Liceu, tínhamos sido atletas do Canto do Rio F.C., clube pelo qual disputáramos os Jogos Infantis, patrocinados pelo Jornal dos Sports. Mas, como o desejo do meu pai era que eu fosse médico como ele, desde que eu era pequeno, continuei no Liceu, assim como vários outros colegas que me acompanhavam desde o ingresso no colégio. Aí, haviam duas opções à nossa frente: cursar o científico (dirigido para aqueles que pretendiam seguir as carreiras chamadas exatas ou as biológicas, como engenharia, medicina ou odontologia, as principais) ou clássico (destinado aqueles que queriam cursar Direito ou Filosofia, principalmente). Naquele tempo, não existiam faculdades de história, geografia, fisioterapia, nutrição, administração, e tantas outras novas carreiras, como atualmente.
             Mas, sei de casos de colegas que foram para a Marinha ou o Exército e lá não se adaptaram, voltando a estudar no Liceu, no científico ou clássico.
             Eu, tenho certeza de que não me adaptaria à rigidez da vida militar, pois sempre fui um pouco indisciplinado, não gosto de obedecer ordens, sempre gostei de criar alguma coisa, de descobrir novos horizontes, não me vendo como um mero seguidor de determinações superiores.
           Bem, não esqueçamos que alguns anos depois, em 1964, eclodiu a "Redentora" no Brasil. Imagino como vários daqueles que comigo estudaram no Liceu, já então oficiais das Forças Armadas brasileiras, estariam desempenhando suas funções em atividades de repressão e tortura daqueles que consideravam "subversivos". Será que, intimamente, concordaram com aquilo tudo? Desconheço o drama de consciência por que passaram (acredito que a maioria realmente passou), pois perdi o contato com todos eles, só voltando a rever um ou dois mais de cinquenta anos depois... E, logicamente, nunca conversamos sobre aquele período negro da história do país...
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               Toninho foi o melhor amigo que tive na vida.
             Engraçado é que nós só estudamos na mesma sala um  ano, o quarto ginasial, em 1956. Já o conhecia dos "rachas" nas quadras do Liceu, dos três anos anteriores em que cursamos o ginasial, no turno da tarde. Apesar de estudarmos na mesma série, éramos de turmas diferentes. Eu, sempre nas primeiras turmas (a dos CDFS, como eram chamadas), ele em outras de alunos cujas notas não eram tão boas. Quando fomos para o turno da manhã, para o quarto ano ginasial, as turmas foram formadas por ordem alfabética, por isso ele foi parar na minha turma, já que eu continuava na primeira. Porque nossos nomes começavam por A (ele, Antonio) e C (eu, Carlos).
              Ele era o quarto de uma família de seis filhos. Criados pela mãe viúva, moravam num local humilde, num canto escondido do Fonseca. Quando terminamos o quarto ano ginasial, ele teve que ir trabalhar para ajudar em casa, indo estudar no turno da noite do Liceu.
             Jogava muito bem futebol, daí nossa amizade se fortaleceu, colega que era dos vários "rachas" que disputávamos nas quadras liceístas nos intervalos ou recreios. Atendendo convite de um outro aluno do Liceu, Robertinho Siri, fomos jogar futebol de salão num clube de Neves (São Gonçalo). Pegávamos o bonde nas Barcas todos os domingos para irmos para lá, para treinos ou jogos.
           Também o convidei para fazer parte do Canto do Rio, onde íamos treinar futebol de salão, assistir um cineminha às terças ou brincar o Carnaval.
          Depois que comecei a fazer parte da diretoria do Grêmio, logo o chamei para fazer parte do time de futebol de salão do colégio. Era o único do turno da noite que jogava no time. Depois vieram Dario e Berba. Todos os outros estudavam no turno da manhã.
             Por sua qualidade técnica, logo o coloquei no primeiro time do Liceu (eu era o técnico e jogava pelo segundo time). Toninho disputou várias partidas pelo colégio, acompanhando-nos nas excursões que fizemos ao Colégio Naval (Angra dos Reis), Mangaratiba e Cachoeiro do Itapemirim.
             Com dificuldade, terminou o científico no turno da noite. Não teve condições de pagar um cursinho pré vestibular para medicina, carreira que, muito vagamente, sonhava em seguir.
            Lembro-me perfeitamente que, uma vez, acho que em 1958, visitando-me no apartamento em que eu morava, na avenida Amaral Peixoto, conversávamos na grande sala do mesmo. 
              Toninho comentou:
         -- Puxa, Carlinhos, se eu também fizer medicina, nós podemos montar um consultório aqui. Você ficaria com a parte da janela e eu nessa outra parte.
             A sala era dividida ao meio por uma grande parede de tijolos de vidro.
               Respondi, já não muito entusiasmado com a ideia de fazer medicina, que era a carreira do meu pai e por sua insistência eu me preparava para isso, já que cursava o científico. 
                -- É, Toninho, pode ser, seria muito legal.
         Ele acabou cursando economia, mas nunca seguiu a profissão. Em janeiro de 1964 foi comigo e outros amigos a Campos, onde fizemos um concurso para admissão ao Banco do Brasil, na época considerado um grande emprego. Não foi aprovado e, mais tarde fez outro concurso para funcionário administrativo do antigo INPS, sendo aprovado.
           Aí talvez tenha entrado o destino na sua vida. Casou-se com uma médica, tiveram um filho, e, talvez sentindo-se em posição inferior a ela, por receber menos que a mulher e, quem sabe (ele nunca me confessou diretamente, isso é apenas dedução minha), talvez ouvindo em casa o que não desejava ouvir.  Depois que se separaram, ele já com mais de trinta anos, fez o vestibular para medicina, e, depois de formado e do segundo casamento, foi morar e trabalhar no interior de Minas.
         Nunca chegamos a ter nosso consultório conjunto, mas, se uma das coisas que mais me deu alegria na vida, foi comparecer à sua formatura como médico em Volta Redonda.
                                                
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            Sérgio entrou para o Liceu em 1958, para a minha turma do 2º. ano científico. Baixinho, voz fanhosa, foi logo querendo arranjar confusão com a gente, a maioria alunos que vinham juntos desde a 1ª. série do ginasial. Mas, depois de alguns dias, vendo que não adiantava querer brigar, acabou juntando-se aos demais alunos, principalmente, em relação a mim e a Irapuam.
         Tinha vários problemas familiares e só em nós dois encontrava um ouvido amigo para escutá-lo. Era obrigado a trabalhar à tarde numa loja do pai.
                  Às vezes, desabafava:
            -- Porra, estou doido para acabar o científico, fazer um concurso qualquer para sair daquela casa.
                Quando terminamos o científico, em 1959, perguntei-lhe:
                -- E aí, Serginho, vai fazer o quê da vida?
          -- Não sei -- respondeu-me. -- Vou ver se tem algum concurso aberto. Pode ser também que eu faça Faculdade de Agronomia, lá no km. 42, da Dutra. Pelo menos, fico morando lá.
             Acabou fazendo isso mesmo. Antes formou-se pelo CPOR, no Rio de Janeiro, pois estava morando com uma irmã, na Lagoa.
             Não fez agronomia e sim, veterinária. Mas, insatisfeito com a profissão, acabou fazendo vestibular para medicina.
        Viamo-nos mais espaçadamente. No início dos anos 60, ele costumava vir do Rio para jogar uma pelada com a turma da praia, composta, na sua maioria por ex-liceístas.
      Era dermatologista e, certa vez, acompanhou-me até o consultório de uma médica sua amiga, para extrair um quisto sebáceo que eu tinha nas costas.
          Muitos anos depois, fui ao aniversário de um de seus filhos, em Bonsucesso, local onde foi morar depois do casamento.
         Depois dele ter-se formado em medicina, encontrei-o algumas vezes no Rio, perto do Forum, local onde eu trabalhava. Ele também tinha um consultório ali perto.
               Para minha surpresa, nos anos 80, quando fui dar algumas aulas na Faculdade Estácio de Sá, encontrei-o na entrada. Abraçou-me efusivamente e disse:
        -- Porra, quem diria? Vi seu nome num cartaz daqui informando sobre suas aulas
               Perguntei, surpreso por vê-lo ali:
               -- E você, Serginho, o que está fazendo aqui?
         Respondeu-me com aquele sorriso maroto dos tempos de Liceu. Sua voz estridente continuava a mesma:
         -- Porra colega, estou fazendo Direito, já estou no 3º. semestre.
                -- O quê? Você não acabou medicina há pouco tempo?
        -- É, pra você ver. Quero alargar meus horizontes -- respondeu-me sorrindo.
         Serginho era assim. Vibrante, com muita garra, queria conhecer de tudo e sobre tudo. Sempre aquela sua mania de nunca se sentir inferior, de buscar a perfeição, de mostrar ao mundo o seu valor.
            Infelizmente, um câncer violento o levou do nosso convívio, com apenas 51 anos de idade.

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           Bem, eu que me preparava para fazer o vestibular de medicina, chegando a fazer um curso preparatório (o Pasteur), descobri, quando terminei o científico, que não era bem aquilo que desejava para o meu futuro.
               Aliás, para dizer a verdade, eu não sabia direito o que eu queria para o meu futuro. Estava fazendo o preparatório para medicina por influência do meu pai, que sonhava em me ver médico como ele. Apesar de ser pediatra, não clinicava, não tinha consultório, não trabalhava em hospital. Era mais voltado para o campo das pesquisas, tanto aqui no Brasil (chegou a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz), como no exterior (era membro do Centre International de l'Enfance, em Paris). Era médico do Ministério da Saúde, trabalhando no Instituto Fernandes Filgueiras, em Botafogo, e na Legião Brasileira de Assistência, no centro do Rio, próximo ao Aeroporto Santos Dumont.
          Fiquei todo o ano de 1960 cursando o Pasteur, ainda frequentando o Liceu (pois não queria abandonar o Grêmio, que tanto trabalho nos deu para reerguer), continuando a jogar futebol a semana inteira (campo, praia e salão), indo a muitas festinhas da comunidade liceísta e, finalmente, estudando muito menos do que deveria para passar no vestibular de medicina.
           Eu que, durante todo o curso ginasial, fui um aluno exemplar, sempre obtendo notas excelentes, relaxei muito com os estudos no científico. O Grêmio, as festinhas, o futebol, preenchiam todo o meu dia (e às vezes até as noites) do adolescente que queria aproveitar ao máximo aquela época da vida.
               No início de 1961, chegada a hora do vestibular, sabia que não tinha condições de passar para a Faculdade de Medicina. Para não dizer que não cursara nenhuma faculdade, fiz também o vestibular para Direito, considerado na época um dos mais fáceis em ser aprovado. Também não tinha nenhuma vocação para o Direito, ingressei na faculdade apenas para tentar obter um diploma qualquer, ter formação universitária. Isso talvez me pudesse ser útil no futuro.
              Meu pai não sabia de nada disso e quando dei-lhe a notícia de que tinha sido reprovado no vestibular para medicina, exibiu uma enorme decepção. Talvez tenha ficado mais decepcionado quando lhe disse:
             -- Mas, fui aprovado em Direito.
             Ele engoliu em seco a frustração e depois explodiu:
         -- Isso é faculdade de quem não quer nada, o que você espera conseguir da vida? Vai ser advogado?
          Realmente, esse era o conceito da Faculdade de Direito de Niterói. Ali ingressavam em cada vestibular mais de 200 candidatos, enquanto em medicina ou engenharia eram aprovados no máximo 50.  
            É claro que eu pretendia fazer um outro vestibular para medicina e, talvez se estudasse um pouco mais a sério, conseguiria ser aprovado. Mas, sabia que seria um mau médico. Não teria paciência para cumprir plantões em hospital, para ser acordado no meio de um sono para atender algum chamado urgente. Medicina é vocação, é sacrifício, é dedicação. Acho que não preencheria nenhum desses requisitos. Nunca gostei da rotina, da repetição. Sempre apreciei a liberdade, o improviso, de tentar fazer alguma coisa de novo, de diferente...
            Essa tenha sido, talvez, uma das principais encruzilhadas com que me deparei na vida: escolher qual a carreira a seguir.
           Imagino como seria, alguns anos depois, eu, de jaleco branco, estetoscópio no ouvido, dando uma consulta a um paciente... não, definitivamente, não combinaria comigo...

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            Naquela época de Liceu, vários colegas de turma ou mesmo de outras séries, namoravam algumas meninas da mesma sala de aula ou de outras turmas. Eram namoros tidos como sérios, definitivos. Os casais andavam de mãos dadas no recreio, deixavam o colégio abraçados, iam às festinhas sempre juntos. Todo mundo dizia que aqueles namoros acabariam em casamento.
           Na realidade, poucos acabaram casando, deixando para trás um passado de pequenos namoros e acabando por casar com pessoas muito diferentes.
           E, mesmo outros que namoraram anteriormente e acabaram casando, viram seus casamentos desmoronarem poucos anos depois. E, atentem bem: naquele tempo não havia ainda o divórcio e a mulher desquitada sempre era mal vista pela sociedade. Por isso, casamento era tido como sendo coisa para a vida toda.
        Alguns anos atrás, encontrando-me por acaso com um ex-colega de turma do Liceu, que comigo cursara desde o primeiro ano ginasial até o último do científico, comentamos sobre um namoro que ele tivera por mais de quatro anos com uma nossa colega de sala. Namoro que viera desde a terceira série do ginasial.
          Já não o via há muito tempo, talvez mais de 40 anos, havíamos perdido por completo o contato após deixarmos o Liceu. Quase não reconhecemos um ao outro.
         Sentados em frente a uma mesinha de um bar no centro da cidade, tendo um copo de whisky à nossa frente, perguntei-lhe:
        -- E você, Marcelo, casou mesmo com a Luiza? Estão felizes como naquela época de Liceu?
            Ele virou um gole do seu whisky antes de responder. Depois, disse:
               -- Nada, casei com a Marta, aquela menina que estudava umas duas séries mais novas que a gente, lembra? Acho que o Sergio, nosso colega, era apaixonado por ela.
              Puxei pela memória por algum tempo, tentando recordar-me sobre a Marta e sobre o interesse do Serginho nela. Apenas respondi:
            -- Lembro vagamente, Marcelo. Sei quem era a pessoa mas não consigo lembrar direito da fisionomia;
            -- Pois é, casamos logo depois que eu e a Luiza terminamos. Tivemos três filhos, hoje já são adultos.
          Puxou um retrato que trazia guardado numa carteira no bolso da calça.
           -- Aqui estão eles. Vê se você se lembra da Marta.
        No retrato estavam o Marcelo, a Marta, e os três filhos, ainda com cara de adolescentes.
        -- Agora sim, reconheço a Marta. Que bom que vocês casaram. Lembro sim, o Serginho tinha uma queda por ela.
             Devolvi-lhe o retrato. Ousei perguntar:
              -- E você e a Marta? Estão felizes?
            Ele pensou um pouco antes de responder. Virou outro gole da sua bebida. Respondeu, voz um pouco amargurada.
            -- Que nada. Já estivemos por nos separar umas duas ou três vezes. Só fiquei com ela esse tempo todo  por causa dos filhos. E, agora, acabei me acomodando, me acostumando. Nem vale mais a pena separar.
            Fiquei ouvindo em silêncio. Já estava bastante acostumado a ouvir os desabafos das pessoas, principalmente nos últimos tempos, quando os réus acabavam por confidenciar-me justificativas para os atos que praticaram.
             Marcelo continuou:
          -- Ah! se eu tivesse tido mais paciência com a Luiza. Nós combinávamos perfeitamente, parecia que um fora feito para o outro. Houve uma briguinha boba de namorados entre nós dois, fizemos birra, batemos o pé e acabamos terminando o namoro...
           -- Puxa, eu não sabia... para mim, vocês tinham casado um com o outro, davam-se tão bem.
             -- É a vida, meu caro... a gente pensa que tem o controle das situações e, de repente, tudo vai por água abaixo...
                Quem virou o whisky todo, de um só gole, fui eu..
           Alguns anos depois, recebi um telefonema de um antigo colega de turma do Liceu, convidando-me para um encontro que os alunos da nossa turma do científico  fariam para comemorar os nossos cinquenta anos de formatura.
                 Lá encontrei Marcelo, Marta, Luiza e seu marido...

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           Talvez a encruzilhada maior com que me defrontei na vida tenha ocorrido em outubro de 1964.
           Em agosto do ano anterior, 1963, havia perdido meu pai. Ele, com 46 anos; eu, com 21. Já cursava o terceiro ano de Direito. Não ligava muito para a faculdade que pouco ou quase nada exigia dos alunos. Bastava lá comparecer, assinar a lista de presença e no final do ano já estava aprovado para o ano seguinte. 
          Em janeiro de 1964 fiz dois concursos: um para assistente administrativo da Eletrobras, outro para escriturário do Banco do Brasil. 
            Fui aprovado nos dois. Aguardava a nomeação para alguns dias depois, talvez um mês, no máximo. Precisava trabalhar, ganhar meu próprio dinheiro, até ajudar um pouco em casa, pois as pensões deixadas por meu pai não eram grande coisa.
      Veio fevereiro, chegou março, nada de me chamarem. Estranhei, porque para o concurso da Eletrobras eu fui um dos dois únicos candidatos a ser aprovado. Para o Banco do Brasil, fui classificado em 12º. lugar.
               Então o destino aprontou.
           Em 31 de março veio a Redentora, por isso suspenderam todas as nomeações em concursos públicos. Queriam fazer um exame profundo sobre a vida dos candidatos aprovados, saber se tinham ou não qualquer posição ideológica que fosse contrária à do governo revolucionário.
          Então, somente no início de outubro, a Eletrobras me chamou. Tomei posse no dia 5 daquele mês, no escritório da estatal, que ficava no Rio de Janeiro, esquina de Presidente Vargas com Rio Branco. O salário era razoável, o horário era integral, das 9 da manhã às 5 da tarde, com intervalo para almoço.
            Só que, lá pelo dia 17 do mesmo mês, recebi um telegrama do Banco do Brasil, convocando-me para tomar posse imediatamente. Dirigi-me até a agência central do Banco, na rua 1º. de março, no centro do Rio, perto de onde eu já trabalhava. Lá me informaram que eu fora designado para trabalhar na agência de Cantagalo, no interior do Estado do Rio de Janeiro.
              Meditei bastante. 
           Os salários eram equivalentes (a Eletrobras até pagava um pouco mais). O Banco do Brasil era tido como instituição sólida, um emprego para toda a vida. O expediente seria de meio dia às seis da tarde. Quanto a Eletrobras, então empresa recém criada, não sabia nada da sua solidez. Poderia fechar da noite para o dia, ainda mais naquela época de regime de exceção do Brasil. Por outro lado, na Eletrobras eu continuaria morando em Niterói, junto de minha mãe e meus irmãos menores, que talvez precisassem de minha presença após a morte de meu pai. Em Cantagalo, cidade que ficava a quase três horas de Niterói, teria que passar a semana lá, afastando-me de minha família.
             Depois de muito pensar, acabei pedindo exoneração da Eletrobras e tomei posse como escriturário do Banco do Brasil, em Cantagalo.
                  Lá, já estavam vários outros funcionários, originários de outras cidades, que haviam formado uma "república". Convidaram-me a dela fazer parte, mas quando me contaram sobre as regras estabelecidas, não aceitei e acabei alugando uma pequena casa em Cordeiro, cidade distante apenas a 8 kilômetros de Cantagalo. Preferia minha independência, não suportaria ter que ficar arrumando cama todo dia, fazer a faxina uma vez por semana, que eram algumas das regras da república. "Na minha bagunça mando eu ", foi o que pensei na época.
             Com poucos dias de Cantagalo, vi que minha vida seria bem diferente daquela a que estava acostumado em Niterói. Nada de praia; futebol (de salão) apenas de vez em quando; festinhas todas as semanas, nem pensar. A cidade era calma, tranquila, bem diferente da agitação a que me habituara em Niterói.
                Saía de Cordeiro para trabalhar por volta das 11 horas e 15 minutos. Tinha um pequeno ônibus, bem antigo, que ligava as duas cidades, em viagens que duravam entre 15 a 20 minutos.
              Trabalhava a tarde toda e, por volta das 18 e 30 voltava para Cordeiro.
              Ficava com as manhãs e as noites livres, sem ter o que fazer.
                Já estava então terminando o 4º. ano da faculdade. Não passava pela minha cabeça, até ali, exercer alguma atividade no ramo do Direito. A profissão me parecia algo muito distante para mim. Era um pouco tímido, retraído, não me via jamais fazendo um discurso, falando em público. Como já disse anteriormente, a faculdade apenas me proporcionaria ter o título de bacharel, formar-me em alguma coisa. Nunca exercer a profissão de advogado, que acreditava ser privativa de quem possuísse uma boa oratória, um bom poder de convencimento, que conhecesse profundamente o emaranhado de leis, que, exigisse, enfim, um estudo profundo sobre a matéria.
              Depois que me entrosei com os demais funcionários do banco, principalmente aqueles que trabalhavam no meu setor, a CREAI, soube que um deles era advogado não militante e tinha um irmão que era o escrivão de um dos dois cartórios da cidade. Seu nome é Leopoldo, que, mais tarde, tornou-se um dos meus melhores amigos.
            Apenas por curiosidade, perguntei a Leopoldo se ele poderia falar com seu irmão, Cesar, para que eu pudesse ficar examinando alguns processos no cartório dele, para saber como eram. Na parte da manhã, quando eu estava livre.
            Leopoldo apresentou-me ao irmão, que me convidou a visitar o cartório na manhã seguinte.
              --Fique à vontade, o cartório está à sua disposição -- disse-me
             Aí, a grande surpresa: eu, que nunca tinha tido os autos de um processo nas mãos, ao examinar o primeiro deles, pensei comigo mesmo:
             "-- O negócio não é tão difícil como eu pensava..."
      Fui lendo os autos, verificando como os advogados peticionavam mal, até com erros grosseiros de português. "Posso fazer isso melhor que eles", refleti.
             Decidi: vou estudar Direito mais a fundo. Já estava no final do quarto ano da faculdade, nunca tinha aberto um livro sobre a matéria, nunca havia tido os autos de um processo nas mãos. Não sabia nada de nada. Teria que começar do zero.
          Quando estive em Niterói, no fim de semana seguinte, comprei alguns livros: Nelson Hungria, Magalhães Noronha, Walter Acosta. 
              O Direito Penal atraiu-me mais, parecia ser mais dinâmico, lidava com problemas e dramas humanos, com a vida e com a morte, com sentimentos. Por isso, a primeira escolha de livros.
              Acabei descobrindo que um outro funcionário do banco era advogado e já fizera alguns júris. Não trabalhava na minha seção, mas seu irmão trabalhava. Apresentou-me. Foi assim que conheci o Jorge, que tornou-se um dos meus melhores amigos e, inclusive, é o padrinho de meu filho mais novo.
          Jorge já tinha dois anos de formado, já fizera júris em Cordeiro. Ativo, quase elétrico, passou a discutir comigo o que eu estava aprendendo nos livros em que estudava sozinho às noites, no quarto de minha casa, em Cordeiro. 
            Passei praticamente todo o ano de 1965 estudando duro, quase como um louco, devorando as lições de Hungria e outros menos cotados nas noites cordeirenses. Tentava recuperar o tempo perdido. Quando me formei, no final do ano, já estava relativamente bem preparado para exercer a advocacia criminal.                Peguei um processo de réu pobre, patrocinado pela Defensoria Pública, e convidei Jorge para fazermos o julgamento em plenário. Ele aceitou, elaboramos um plano de estudo e... mãos à obra. Ia para a casa dele depois do expediente do banco e liamos e relíamos o processo do pobre lavrador acusado de homicídio. A esposa de Jorge, minha comadre Nely, às vezes ficava assistindo nossas simulações de debates, e até servia de jurada.
               O julgamento foi em fevereiro de 1966 e conseguimos uma desclassificação para homicídio privilegiado. Foi minha estreia na tribuna e, dali para a frente, minha inibição de falar em público desapareceu por completo.
                  O advogado do Banco do Brasil para o antigo Estado do Rio de Janeiro visitava Cantagalo uma vez por mês. Sabendo que eu havia me formado em Direito, convidou-me para assessorá-lo nas visitas que fazia nas comarcas próximas a Cantagalo e onde havia assuntos do banco a resolver. Assim, acabei conhecendo São Sebastião do Alto, Itaocara, Santa Maria Madalena, Cambuci e fui me entrosando com o Direito Civil. Esse advogado, Souza Leão Neto, quando pedi minha transferência para a agência de Niterói, levou-me para ser seu assistente no Departamento Jurídico do banco, tendo substituído o mesmo todas as vezes em que saía de férias.
                 Várias vezes fiquei pensando: se em vez de ter escolhido o Banco do Brasil e tivesse permanecido na Eletrobras, qual teria sido o meu futuro? Dificilmente levaria o Direito a sério, não teria estudado e aprendido por conta própria, como efetivamente fiz,  já que a faculdade pouco ou quase nada ensinava. Teria continuado a levar minha vida de festinhas e futebol que tinha em Niterói, conformando-me com o emprego na Eletrobras, sem nunca pensar que o Direito poderia ser uma carreira para mim.
               Minha ida para Cantagalo, sobre a qual eu tanto reclamei no início, por me afastar de minha família e meus amigos, foi o que realmente modificou minha vida. Ali, tive tempo para estudar, dedicar-me ao Direito, praticamente ser um autodidata na profissão.

                                           x.x.x.x.x.x.

                José Antonio era um rapaz tímido, pouco falava, quase nada expansivo. Era natural de Itaocara, cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro e morava há pouco tempo no bairro de São Francisco, que, naquele tempo, por volta de 1960, ainda era conhecido como Saco de São Francisco.
                Eu me mudara para o bairro em maio de 1961 e sempre visitava meu ex-professor de educação física do Liceu, Alber Pessanha, que morava num edifício da Av. Feliciano Sodré, esquina com rua Visconde do Uruguai.
              José Antonio namorava uma menina do Liceu, que morava no mesmo prédio, onde também residia meu amigo Carrano, que fora presidente do Grêmio liceísta.
         Por isso, às vezes, pegávamos o mesmo trolley para voltarmos para São Francisco e até saltávamos no mesmo ponto, na praia, esquina com a rua Timbiras. Eu morava na primeira rua paralela à praia, a General Rondon. Ele seguia um pouco mais pela Timbiras, já que morava numa rua mais distante (não lembro qual era).
           Acabamos nos conhecendo quando saíamos do mesmo prédio (eu, da casa de Alber, depois de algumas cervejas; ele, da casa da namorada) e caminhávamos por toda a Visconde do Uruguai, até o ponto do trolley número 5, o São Francisco.
              Conversamos muito, ele contando-me coisas da sua cidade natal, como era a vida interiorana e várias outras coisas. Acabara de ingressar na faculdade de Engenharia. Relatava-me seus sonhos, o que projetava para seu futuro, principalmente o casamento com a namorada liceísta, que eu conhecia relativamente bem, por ser muito amiga de outra liceísta que namorava meu amigo Irapuam.
           Nunca me falou sobre gostar de música, ou que tinha alguma vocação ou educação musical.
         Anos depois, eu o vi fazendo parte de um conjunto musical que se tornou famoso na música popular brasileira, cantando num festival de canção, tão em voga nos anos 60. Esse conjunto, aliás, tem um liceísta entre seus integrantes.
        Como chegou ele a essa decisão? Por que de futuro engenheiro passou a ser integrante de um conjunto musical? O que deve ter acontecido em sua vida para ele modificar completamente o que planejara? Será que chegou a formar-se em engenharia? E, se sua experiência musical não desse certo (como felizmente deu), o que seria deu futuro?
                  Destino? Livre arbítrio?

                                         x.x.x.x.x.x

           Bem, a última história que pretendo contar aconteceu comigo. E, foi também uma das decisões mais importantes que tive que tomar, quando outra encruzilhada da vida apareceu em minha frente.
              Em fins de 1969, eu ainda trabalhando no Banco do Brasil, mas já como advogado, e fazendo parte de um escritório em Niterói, já tinha um certo conceito entre os advogados criminais de Niterói. Já fizera um júri em São Gonçalo (convidei meu compadre Jorge para dividirmos a tribuna de defesa), já fizera inúmeras audiências em Niterói e São Gonçalo, sustentações orais no Tribunal de Justiça fluminense e até já recebia convites para fazer júris em algumas cidades do interior. Mas ainda não tinha coragem de largar o Banco do Brasil para aventurar-me na advocacia. Afinal de contas, o banco era um emprego certo, com estabilidade e um bom salário. Na advocacia, tudo era incerteza.
            Foi quando foram abertos dois concursos públicos nos quais logo me inscrevi: o de Promotor de Justiça, um no Estado de São Paulo e outro no Estado do Rio.
             Estudei bastante, principalmente Direito Civil e Comercial, já que estava relativamente bem em matéria criminal.
      Foram provas muito difíceis, que muito exigiram dos candidatos, em grande número em ambos os concursos, já que, por causa da "Redentora", há muito tempo não se realizavam concursos públicos no país.
            Não sei se foi sorte ou inspiração do momento (pois não era forte em Direito Civil), mas acabei passando nos dois concursos.
        "-- Assumo o primeiro que me chamar", disse para a minha mulher, pois queria largar o serviço burocrático do Banco do Brasil.
             O Ministério Público paulista chamou-me primeiro. Voltei a São Paulo, onde havia feito as provas escritas e orais, e lá submeti-me ao exame de saúde física e mental.
       Fiquei aguardando a chamada para a posse, pois lá ainda haviam outros aprovados que deveriam passar pelos referidos exames físicos.
         Nesse meio tempo, em meados de janeiro, o Ministério Público fluminense também me chamou. Fiz os exames físicos e fiquei aguardando.
             Discuti muito com minha mãe e minha mulher para onde eu deveria ir. São Paulo pagava um pouco mais, mas eu tinha sido designado para a Comarca de Franca, bem longe da Capital. Para o Estado do Rio, eu poderia escolher a Comarca, entre aquelas que estavam vagas, já que fui o terceiro colocado no concurso.
            Os dois lugares me chamaram para assumir quase ao mesmo tempo.
                Decidi pelo Estado do Rio, local onde morava e onde fora criado.
             Hoje, me pergunto: como teria sido minha vida em São Paulo, um estado bem diferente do nosso, com costumes, colonização e hábitos próprios? Como meus filhos seriam hoje, paulistas em vez de cariocas (já que todos nasceram no Rio de Janeiro)? E meu sotaque, como estaria? Puxaria o "r" como os paulistas ou diria "imagina", como eles? Chegaria a ter feito concurso para a magistratura da Guanabara?
                                   Livre arbítrio ou destino?

                                              x.x.x.x.x.

           Convido aqueles que me me derem a honra de ler estas linhas que relatem também quais foram suas escolhas, suas encruzilhadas durante suas trajetórias de vida...





segunda-feira, julho 18, 2016

ATENTADOS...




A T E N T A D O S...

Calfilho




          Mais uma vez, em curto espaço de tempo, assistimos, não sei se estarrecidos ou enojados, mais uma notícia de outro atentado ocorrido na França... Agora, com 84 mortos e mais de duas centenas de feridos...
       Parece que o ser humano perdeu, por completo, o senso de equilíbrio e a razão, e a morte estúpida e brutal de um semelhante se tornou coisa corriqueira, sem a menor importância.
       Aqueles que me dão a honra de acompanhar o que aqui escrevo, sabem da admiração e carinho que tenho pela França, desde a primeira viagem que para lá fiz em 1957 e as várias outras efetuadas depois que me aposentei, em 1990.
           Essa admiração vem não só do imenso acervo cultural que a França oferece aos seus visitantes, mas também do modo de vida dos franceses, que cultivam, acima de tudo, o lema "saber viver e deixar viver"... A tradição contida em um dos símbolos da França, originado da Revolução de 1789, "a liberdade, igualdade e fraternidade" está sempre presente no dia a dia de seu povo. Todas as vezes que lá retorno, sinto-me realmente como se estivesse em Copacabana ou Icaraí, tamanha a identificação que tenho com sua gente, seus monumentos, sua história e sua alegria de viver. Em Paris ou qualquer outra cidade francesa, gosto de passear com tranquilidade por suas ruas, sentar-me em um café qualquer apreciando o modo descontraído e alegre de seus frequentadores (a "joie de vivre") conversando e rindo animadamente a qualquer hora do dia ou da noite.
      Ultimamente, entretanto, parece que toda essa alegria foi atingida de forma estúpida e cruel: as pessoas estão com medo, receosas, olhando com desconfiança para quem está ao seu lado, vislumbrando um possível terrorista, alguém que pretenda acabar com sua descontração  e tranquilidade. No ano passado, foram dois grandes atentados na França (um, contra uma redação de jornal, o "Charlie Hebdo", em janeiro, e outro contra uma casa de shows, o "Bataclan", em novembro), provocando inúmeras vítimas fatais. 
         Fora da França, em Bruxelas, ali bem perto, outro atentado estúpido no aeroporto e no metrô da cidade, causando também várias mortes. Este ano, recentemente, mais um grande ataque contra cidadãos inocentes, no aeroporto da Turquia.
      Agora, o mais recente, este último, em Nice, quando um indivíduo, pertencente ou não a um grupo extremista (ainda não se sabe ao certo), dirigindo um pesado caminhão, invade o "Promenade des Anglais", famosa praia litorânea da cidade de Nice, no dia em que se comemorava o 14 de julho, data nacional da França, dia da Queda da Bastilha, e mata 84 pessoas.
         Conheço Nice relativamente bem, já lá estive por quatro ou cinco vezes, em diferente ocasiões. É uma cidade alegre, vibrante, próxima à fronteira com a Itália, colada a Mônaco, muito procurada por turistas do mundo inteiro. Tanto o "Promenade des Anglais" (que é a avenida da praia), como a "rue de France", paralela, são repletas de hotéis, bares e restaurantes, sempre cheios de gente, conversando alegremente, descontraídas, aproveitando tudo de bom que a cidade oferece. Nice é um dos locais mais importantes da famosa Côte d'Azur, que também engloba Cannes, Saint Tropez, St. Raphael e outras cidades menores da Riviera francesa.
        Choca-nos ver como toda essa alegria contagiante de seus habitantes e inúmeros turistas que a visitam foi súbita e estupidamente atingida por um ato tão violento e mortal de um único ser humano. Seria como se aqui, no Rio de Janeiro, alguém dirigindo um caminhão investisse repentinamente contra a multidão que comemorasse a festa de reveillon na avenida Atlântica, em Copacabana, ou na Praia de Icaraí, em Niterói.
          O terrorismo, infelizmente, está presente em todas as grandes cidades do mundo. Os atentados contra as torres gêmeas, em Nova York; contra o metrô de Londres e a estação de trem de Atocha em Madrid, são os mais recentes e de maior repercussão. Também na Síria e Iraque acontecem com frequência. A segurança em aeroportos e locais de grande concentração de pessoas é visível e muito rigorosa na maioria de países do mundo.
          Mas, se o radicalismo de alguns atemoriza a população desses países, não se pode esquecer que alguns desses atentados são praticados por pessoas mentalmente desequilibradas, com sérios problemas pessoais e que os conduzem à prática desses atos extremos.
          Nos Estados Unidos, esses atos isolados são frequentes. Pessoas armadas invadem escolas, locais públicos e matam vários semelhantes, inocentes que, na maioria das vezes, nada têm a ver com a insatisfação ou a paranoia dos atiradores. Morrem apenas porque estavam vivos e estiveram no caminho desses loucos naqueles momentos fatídicos.
         Aqui mesmo, no Brasil, lembro-me bem de dois desses atentados que causaram centenas de mortes, praticados por um único desequilibrado mental: o incêndio do circo, em Niterói, nos anos 50 do século passado, e o atentado contra estudantes de uma escola primária no Rio de Janeiro, ocorrido alguns poucos anos atrás. Em nenhum dos dois houve conotação terrorista.
           Sinceramente, não sei onde iremos parar. Parece que duas relativamente recentes grandes guerras mundiais não saciaram a sede de sangue que o ser humano continua a ter em relação a seus semelhantes. Hoje, em qualquer cidade do mundo, mata-se por qualquer motivo ou mesmo sem ele. A violência impera em qualquer lugar, mesmo no interior dos Estados. Aqui, no Brasil, praticamente não existe mais cidade segura. Deixa-se de sair à noite porque inexiste policiamento depois das 19 horas e o risco de ser assaltado ou morto por uma bala direcionada ou perdida é enorme. Acabamos prisioneiros dentro de nossas próprias casas, cumprindo uma prisão domiciliar sem tornozeleira eletrônica, mas que nos tira a vontade de colocar o pé fora das portas de nossa residência com medo da "rua"... Os marginais, os bandidos carregam armas poderosíssimas, invadem hospitais e delegacias, matam policiais, enquanto nossas autoridades repetem que "um rigoroso inquérito será instaurado"... 
           Vejo com muita apreensão o futuro que se desenha para nossos filhos e netos...
                Até quando? 
                Ou: será se conseguiremos ser civilizados?
           Será se a sede de sangue vai um dia ser saciada e poderemos viver em paz, alegres e descontraídos como os franceses e os cariocas viveram há algum tempo atrás?
              Sinceramente, tenho sérias dúvidas...