quarta-feira, agosto 15, 2007

A SABIDINHA...

A SABIDINHA ...

CALF


Considerava-se a dona da verdade...
Da vida, sabia tudo...
Trabalhava, ganhava bem, morava sozinha, dirigia seu próprio carro...
Era auto-suficiente, moderninha... Não dependia de ninguém, nem da família ou dos amigos...
Desde cedo, saíra de casa, ainda com 17 anos... Fez concurso para o Banco Central, fora aprovada em terceiro lugar... Formou-se depois em Direito, entrou para o corpo jurídico do banco... Falava inglês e espanhol, arranhava francês e alemão... Escolhia suas amizades, não dava bola p'ra ninguém... Amores na vida, nenhum... Uma trepadinha aqui, outra ali, fins-de-noite passageiros que se perdiam no esquecimento do dia seguinte... Tudo sem compromisso, descartável, só p'ra gozar...
Decidira passar as férias daquele ano em Salvador... Tudo planejado, bem programado... Reserva no hotel, uma parada em Vitória... Iria de carro, ela mesmo dirigindo...
Só, sem ninguém ao seu lado para chateá-la... Antes só que mal acompanhada...
Falaram-lhe maravilhas da capital da Bahia, a dourada cidade das praias mágicas, das igrejas, das mulatas, candomblé, comida de primeira... Por isso, queria curtir a cidade sozinha, conhecer todos os seus cantos e encantos... Poderia, talvez, ter levado sua mãe ou um "noivo"...
Não, preferiu ir sem ninguém...

* * *

Viagem cansativa... Mas, tudo bem, estava valendo a pena... Pernoitara em Vitória, que não conhecia... Deu uma entradinha em Ilhéus, a cidade que a encantara pelas cenas passadas na televisão, quando da exibição da novela "Gabriela".
Chegou a Salvador pouco depois do meio-dia. Foi direto p'ro hotel, no Corredor da Vitória... Perguntou aqui e ali, chegou lá... Deixou o carro na garagem, tomou um banho e dormiu um pouco...
Depois, saiu... Elevador Lacerda, Mercado Modelo, Bonfim, Itapagipe... Tudo no primeiro dia... Foi de táxi, já que não conhecia o trânsito da cidade... No dia seguinte, as praias... Porto da Barra, Farol, Ondina, Amaralina, Rio Vermelho, Boca do Rio, Piatã, Itapoã... Um pulinho até Abaeté... Muito acarajé, caruru, água de coco...
No terceiro dia, passeio de escuna até Itaparica. Deslumbrante... Salvador realmente correspondia a tudo o que dela falavam...
No quarto dia, já mais habituada com a cidade, decidiu sair de carro... Foi até Arembepe, praia linda, ainda primitiva e selvagem, distante quase uma hora de Salvador... A sensação de ouvir o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o ambiente de paz, tranqüilidade, realmente a deixaram emocionada...
Já no quinto dia de Bahia, começou a se soltar um pouco mais... Saiu à noite, foi jantar num dos vários restaurantes da Barra, sempre cheios de gente. Adorou a comida baiana...
Experimentou de tudo... Vatapá, siri mole e catado, caranguejo, lambreta, caldo de sururu, abará, feijoada (que lá é feita com feijão manteiga), sarapatel... Um pouquinho de cada coisa, só para provar, como lhe disse o garçom, uma bicha baiana... Tomou uma caipirinha e três chopes.
Numa mesa ao lado, quatro rapazes começaram a reparar nela, sozinha, comendo tudo o que tinha direito, conversando animadamente com "Nega", o garçom... Fizeram sinal, quiseram puxar conversa... Ela, irritada, já que detestava aquele tipo de coisa (porra, será que uma mulher não pode jantar sozinha num restaurante?), pediu a conta, assinou o cheque, despediu-se de "Nega" e deixou o lugar...
Pegou o carro e tomou o caminho do hotel. Subiu a Ladeira da Barra e parou numa sinaleira, próximo à igreja da Vitória... Os quatro chegaram rápido, ela nem percebeu.
Emparelharam com o carro dela, três deles desceram e um foi logo encostando o cano do revólver em sua cabeça...
- Chega p'ra lá, minha sobrinha, isso é um assalto...
Olhou para o cara, surpresa... Obedeceu automaticamente, sem ter tempo para pensar em alguma coisa. Um deles tomou a direção, os outros dois também entraram no seu carro... O outro veículo os seguiu.
Ela perguntou, ainda espantada:
- Mas, o que é que é isso? O que vocês estão fazendo?
Um dos caras perguntou:
- Diga aí, minha irmã, o que é que você tem p'ra dar p'ra gente?
Aí, ela caiu na real...
Tentou conversar:
- Só o carro e isso que eu tenho na bolsa.
Um deles riu. Riso cínico, debochado...
- Só isso? A gente quer mais...
Apontou o revólver para ela. Disse, com o característico sotaque baiano, falando quase cantando:
- Olha, a gente já viu a placa do teu carro. É do Rio, não é? ... A gente sempre ouviu dizer que carioca é doida por uma sacanagem... Você quer dar p'ra gente, não quer?
Ela suou frio, gelou... Pela primeira vez na vida ficou com medo... Não conseguia manter o autocontrole... Logo ela, tão independente, tão confiante, que sabia lidar com todas as situações, por mais difíceis que fossem... Agora, estava apavorada... Nem no Rio, com toda sua violência, ela passara por situação igual... Não, eles deviam estar brincando, não teriam coragem...
Iam levar o carro, sua bolsa e deixá-la em qualquer lugar... Afinal de contas, ela sempre ouvira falar bem da hospitalidade baiana... Foram p'ro alto de Ondina.
Ali, enquanto um a segurava pelos ombros, outro lhe abria as pernas... O terceiro a penetrava, o quarto ria e aplaudia, com uma garrafa de conhaque Dreher na boca (o filho da puta poderia ter melhor gosto)...
Tudo era silêncio... Ninguém ouvia nada... Além do mais, um deles tapava-lhe a boca... Ela tentava reagir, gritar, espernear... Nada... Olhava aterrorizada para os quatro, que se revezavam, na ânsia de possuí-la... Todos eles a tiveram mulher, abertinha, por trás e pela frente, sem que ela nada pudesse fazer...
Desmaiou... Quando acordou, já o dia clareando, viu que fora largada sem carro, sem uma peça de roupa, completamente pelada, lá em cima do morro, com uma deslumbrante vista para a praia lá embaixo...
Conseguiu voltar para o hotel... Como, não se lembra direito...
Chegou, apenas...
Perdera oitenta por cento de sua autoconfiança...

* * *

sexta-feira, agosto 03, 2007

AMOR INFELIZ...

A M O R I N F E L I Z ...





Sílvio mais uma vez delirava...
Era essa sua rotina atual... Trancava-se em seu apartamento, abria uma garrafa de whisky (Teacher's, era a marca) e, depois da quinta dose, deitado na cama, começava a delirar...
Sua mente vagava por outras paisagens, por outras épocas...
Lembrava-se dos primeiros dias... Vinte anos atrás... Tudo felicidade, tudo cor-de-rosa...
Liliane era, realmente, a mulher de sua vida... Namoro bastante difícil, devido à resistência dos pais de ambos... Os dela, pessoas da alta sociedade carioca, achando que ele, advogado recém-formado, filho de família de classe média, sem nada de sólido ou estável a oferecer, estaria dando o golpe do baú... Os dele, pais de filho único, enciumados pela possibilidade dele deixar-lhes a companhia, à qual estavam tão acostumados e até mesmo, inconscientemente, dela dependiam... Afinal, com seus 30 anos de idade, era ele, Sílvio, quem resolvia todos os problemas da casa... Fazia pagamentos, comparecia às reuniões do condomínio (onde mantinha discussões que fizeram história com os demais condôminos, estando todas elas registradas nas atas das assembléias), levava ambos, pai e mãe, ao médico, ao dentista, ao barbeiro, à manicure... Talvez, por essa inconsciente dependência, à qual se habituaram, seus pais tinham medo do seu casamento, medo de perdê-lo...
Sílvio preparou outra dose, ainda deitado. Riu um pouco, riso nervoso, quase histérico... Analisava o seu relacionamento com o pai... "Seu" Silvano era um coroa simpático...
Fechado, sisudo, dava-lhe broncas homéricas... Nunca disse para ninguém, mas Sílvio já descobrira com um amigo mais velho, que ele já fora um dos maiores e mais respeitados boêmios da Copacabana dos anos 30/40... E, agora, depois de aposentado, cabelos grisalhos, próximo dos 65 anos de idade, não queria perder a pose dos tempos antigos... Isso mesmo, não queria perder a pose... Por isso, quando Sílvio, sentindo que o pai já se esquecia de alguma coisa, deixava de pagar esta ou aquela conta de luz ou gás, ele tomava a frente de tudo, resolvia as coisas, e aí surgiam as broncas...
- Você pensa que eu sou algum irresponsável? Quem é que você pensa que é?
Virou mais um gole duplo (puro, sem gelo)...
Com os pais de Liliane, o relacionamento era frio, distante, desconfiado... Ela, a mais nova das três filhas, era tratada a pão e mel. Toda mimada, toda cheia de cuidados... Mas, engraçado, ela, pessoalmente, não dava muito valor àqueles paparicos... Era franca, independente, às vezes até grossa demais....Apaixonaram-se loucamente... Colegas de faculdade, sentiram-se atraídos um pelo outro depois de alguns encontros casuais que tiveram no barzinho onde os alunos costumavam reunir-se. Iniciaram o namoro e, já quando Sílvio foi pela primeira vez à casa dela, sentiu a hostilidade de seus pais.
Era 1968, época em que ainda o namorado tinha que ser apresentado aos pais da namorada e obter o consentimento para o namoro. Tinha ela 19 anos e ele 23 (atrasou-se um pouco nos estudos, malandro de praia que fora). A apresentação foi formal, seca, para não dizer ridícula...
O pai dela, político importante da época, amigo íntimo de vários militares que então governavam o país, olhou-o de alto a baixo, examinando-o cuidadosamente, expressão no rosto misto de curiosidade e já de reprovação antecipada. Estendeu-lhe a mão com displicência:
- Muito prazer, senhor Sílvio (enfatizou o "senhor", como se quisesse manter distância). Então o senhor é o amigo de quem Liliane tanto fala...
Sílvio cumprimentou-o, reverenciosamente.
Apresentou-lhe a mulher, enchendo a boca:
- Esta é minha "esposa" (enfatizou a palavra), mãe de Liliane.
Sílvio riu interiormente. Achava "esposa" uma das palavras mais escrotas do nosso vocabulário...
Mas, educado, beijou a mão da "esposa"...
É claro que não se sentiu à vontade, completamente fora do seu ambiente. As poucas palavras que lhe dirigiram durante o jantar foram "o senhor é de qual família?", "quem são seus pais?", "o senhor trabalha onde?"...
Daí para frente, cada vez que ia à casa dela, sentia-se constrangido. A mesma frieza, as mesmas indagações, algumas indiretas disfarçadas, a mesma desconfiança... Mesmo assim, ia...
E, por isso, ele, que a amava loucamente (e tinha certeza de que era correspondido), teve que agüentar dos pais dela, quanto a um casamento para breve:
- É melhor vocês se formarem antes...
- Acho que, depois da formatura, vocês estarão mais maduros, terão refletido mais...
- Senhor Sílvio, o senhor já está trabalhando?
E ele agüentou... Porque a adorava...
Foi securitário, bancário, agente de viagens... Nenhum desses empregos conseguiu convencê-los... Queriam o melhor para a filha (até insinuavam com outros pretendentes, com melhor posição social e financeira)...
Concluíram o curso... Ele, primeiro que ela, que teve uma hepatite e foi obrigada a trancar a matrícula.
Agora, de diploma na mão, finalmente tomou coragem de pedi-la em casamento (também, às vezes, ele se achava meio covarde, meio devagar... Por que não a comeu logo?... Oportunidades não faltaram...).
E, mesmo com o diploma, ainda encontrou resistências... Ele, já 29 anos, ela com 25...
Finalmente, os respectivos pais decidiram e acabaram aceitando o casamento...

* * *

A festa foi linda (não para o seu gosto)... Riquíssima, cheia de convidados importantes, numa das igrejas mais badaladas do Rio de Janeiro... A recepção, então nem se fala...
Saiu em todas as colunas sociais... Afinal, noiva parenta de Governador não se encontra todo dia...
Mesmo que fosse do MDB, para dar uma aparência de escolha democrática, apesar de ter sido ele indicado pelos militares (a época era 1974, lembrem-se bem).
Felizes, tudo cor-de-rosa... Lua de mel em São Pedro d'Aldeia, os dois sozinhos, um mês só deles...
"Mais um whiskynho, que eu não sou de ferro", pensou em voz alta...
Duplo, sem gelo...
* * *

Um ano depois, nasceu Silvana... Nome difícil de ser escolhido... Ela não gostou, a princípio... Ele insistiu, bateu pé...
Ela ainda argumentou:
- É o nome daquele cientista maluco do Capitão Marvel... Doutor Silvana...
Ele retrucou:
- É também o nome do meu pai.
Ele não cedeu, sendo bastante egoísta, reconheceu depois. Mas, queria colocar na filha um nome que tivesse algo dele e de seu pai.
A família dela chiou... "Que nome feio..." Ele irritou-se, pela primeira vez rebelou-se...
Era aquele e pronto... Ficou sendo Silvana...

* * *

Foi nesse episódio que percebeu o primeiro momento em que Liliane, ao surgir uma desavença entre ele e os pais dela, ficou do lado dos pais.
Daí para frente, começou o seu martírio.
Liliane disse-lhe um dia, resoluta:
- Não quero mais ter filhos.
Ele:
.- Por quê? Eu quero três ou quatro...
Ela:
- Não vou engordar, ficar cheia de filhos p'ra criar... Uma só e basta...
Tudo degenerou... Da loucura, da adoração recíproca, começaram as brigas, as discussões. Motivos: nenhum, ou sem importância alguma... Tudo era pretexto para iniciarem uma batalha... Ofensas, xingamentos, baixaria...
Silvana crescendo... Sílvio, prendendo-se cada vez mais a ela, como a única tábua de apoio para a sua angústia de vida, para a sua solidão interior...
Enquanto isso, sua vida profissional deslanchava... Seu talento indiscutível começou então a aflorar. Rápido, em velocidade supersônica, o sucesso veio-lhe as mãos.
Com três anos de formado, já era considerado um dos melhores advogados do Rio, sendo chefe de um dos mais conceituados escritórios da cidade e ocupando cargo de maior relevância na administração estadual (obtido por concurso)...
Fez-se fácil, fácil, amigo de Promotores e Juízes. Privava da intimidade e do relacionamento pessoal com vários deles... Com eles debatia altas teses jurídicas, quer profissionalmente, dentro dos autos, quer socialmente, acompanhando-os no chope do "Chamego do Papai" ou nas extensões noite adentro que aquelas conversas proporcionavam...
Era respeitado e querido...
Nada daquilo, entretanto, o satisfazia...
Saía correndo do trabalho para ver Silvana, com ela brincar, sentir sua infância desabrochar a cada momento, a cada instante...
Oito anos durou o casamento... As brigas tornaram-se mais sérias, as ofensas mais graves, até porrada recíproca ocorreu...
Separaram-se... "amigavelmente"...
No dia da audiência, quando o juiz perguntou como seria feita a divisão de bens, Sílvio, de porre, respondeu:
- Eu não quero coisa nenhuma. Fica tudo p'ra elas (e já tinham apartamento próprio, casa em São Pedro, dinheiro na poupança, etc...).
Liliane, coitada, tinha feito o rol de todos os bens para a divisão. Até pregador de roupa ela relacionou... Olhou, frustrada, para o seu advogado, com a lista dos bens nas mãos... O advogado, que se preparara arduamente para uma verdadeira batalha jurídica, também frustrado, guardou na pasta de executivo, a brilhante sustentação que iria fazer...
Sílvio, embriagado, falava com voz arrastada, as palavras escorrendo-lhe pela boca. O juiz, seu conhecido, compreendeu. Sabia que Sílvio era bastante sensível e que adorava a mulher e a filha. Confidenciara-lhe esse amor pelas duas numa das inúmeras conversas de fim-de-noite no "Chamego"... Sabia que ele não iria, de cara limpa, admitir separar-se de Silvana e ficar discutindo bobagens sobre divisão de bens. Mesmo assim, ainda perguntou-lhe:
- O senhor tem certeza de que é isso mesmo que o senhor quer fazer? Vai abrir mão de todos os seus bens? O senhor sabe, como advogado que é, que tem direito à metade...
Sílvio respondeu rápido, a voz pastosa arrastando-se pela sala:
- É isso mesmo, meritíssimo. Fica tudo p'ra elas. Eu não quero nada.
O juiz ainda fez uma última tentativa:
- E o senhor vai viver de quê? Vai morar aonde?
- Eu me arranjo - respondeu com ar de triunfo, o rosto vermelho como um camarão, o cheiro de whisky exalando por todos os seus poros, tomando conta do ambiente e fazendo com que Liliane, a toda hora, levasse a mão ao nariz, procurando dele escapar. Detestava cheiro de bebida...

* * *

Daí em diante, para Sílvio começou o sofrimento...
Bebia todo dia, a toda hora, a qualquer momento... Afastou-se de tudo e de todos...
Trancava-se no quarto e, sozinho, procurava estancar o sangue que jorrava das feridas de sua imensa dor... "Silvana"... "Silvana, minha filhinha, quero você...".
Delirava, delirava, rolava na cama, tinha alucinações...

* * *

"O tempo é o único e melhor remédio para curar o sofrimento da alma", como já dizia minha avó...
E o tempo começou a curá-lo...
Devagar, bem lentamente. Uma ferida que secava aqui, mas reabria mais adiante, até fechar definitivamente... Uma cicatriz ali, outra acolá...
Pouco a pouco começou a absorver a dor da separação de Silvana. Absorver, talvez não fosse a palavra correta: administrar, cairia melhor... Via-a uma vez por semana, de quinze em quinze dias, às vezes... Os pais de Liliane, sentindo-se donos da situação, tomaram conta de tudo e, sempre que podiam, procuravam atormentar-lhe a vida... Criavam obstáculos, faziam insinuações, tentavam jogar Silvana contra ele...
Mas, ele melhorava... Resistia, não se entregava...
Voltou para o trabalho (pulou de repartição em repartição, é certo, dado o seu temperamento difícil, brigando sempre com chefes e superiores, discutindo e não aceitando cumprir ordens imbecis). Retomou seu lugar no escritório, investindo, agora, numa advocacia interestadual (São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul). Passou a viajar com freqüência.
Reativou suas amizades no Judiciário. Dr. Caulo, velho amigo, juiz do cível. Dr. Marlos, juiz do Tribunal do Júri. Inscreveu-se como jurado, tendo funcionado efetivamente durante dois anos (l986 e l987). Fez novas amizades, principalmente com os jurados. Funcionou como vogal em apurações nas eleições de l982 e l986, sendo esta última em Nova Iguaçu, quando auxiliou o Dr. Marlos. Nesta, inclusive, transportou em seu carro várias escrutinadoras que moravam no Rio, todas elas com mais de 50 anos de idade. Daí porque seu carro foi apelidado de "O Comboio da Saudade". Divertia-se muito com esse apelido...
Mais uma dose, sorvida vagarosamente...
Engraçado, sentia-se bem quando estava com seus amigos. Fazia questão de organizar almoços, de programar reuniões e saídas noturnas, enfim, de conviver com as pessoas que lhe eram queridas. Definitivamente, não era uma pessoa amarga, daquelas consideradas de mal com a vida. Era prestativo, solidário, leal àqueles de quem gostava...
Certa vez acompanhou o Dr. Marlos a um casamento de um advogado militante do Júri, filho de um Procurador de Justiça. Ao final da festa, solidário como sempre, fez questão de levar o juiz seu amigo até Jacarepaguá, onde este residia. O juiz ainda ponderou que não fosse, pois sentiu que ele estava meio sonolento, meio de pilequinho. Ele insistiu, fez questão... Na volta, dirigindo, tonto de sono, deu uma senhora porrada com o carro, fraturando o nariz e outras coisas mais... Só mesmo ele...

* * *

Sorria novamente...
Lembrava-se de Silvana, em seus primeiros dias de vida... Como gostava de curti-la...
Trazia em sua carteira várias fotos dela, nas diversas fases de sua vida... Tinha, agora, doze anos de idade...
Mostrava aqueles retratos a todo mundo, a toda hora, sob qualquer pretexto...
Notava nela, atualmente, alguma diferença no tratamento que lhe dispensava... Um pouco mais fria, talvez mais distante... Será se ela estava passando por algum problema? Não, devia ser coisa de adolescente... De qualquer forma, iria conversar com ela amanhã, quando fosse vê-la, aproveitando o feriado de segunda-feira.
Iria a São Pedro, onde ela estava com a mãe e a levaria para passear e conversar. Já poderiam ter uma conversa mais adulta...

* * *

Passara quinze dias em São Paulo, onde fora resolver alguns problemas do escritório.
Mas, também fora refrescar a cabeça.
Nas suas últimas idas e vindas à capital paulista, fizera um novo grupo de amigos, que o faziam esquecer um pouco de suas amarguras no Rio.
Chegara de volta cerca das três da tarde. Ligou a secretária eletrônica. Vários recados.
Deu alguns telefonemas, conversou com vários amigos, tomou um banho e abriu a garrafa de whisky. Deitou-se na cama e pôs-se a divagar.
Tomou seus cinco comprimidos da tarde, aos quais já se habituara a ingerir por conta própria, três vezes ao dia. Vitaminas, desintoxicantes para o fígado, tranqüilizantes leves... Abriu seu terceiro maço de cigarros do dia. Queria parar de fumar (estava tossindo muito), mas adiava sempre o momento da decisão...
Em meio às suas divagações, ora sorria ao lembrar dos momentos bons de sua vida, ora as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, ao recordar-se dos maus. Chorava convulsivamente quando a imagem de Silvana vinha-lhe à mente.
Às 10 da noite, levantou-se, meio cambaleante, meio de pileque. Decidiu sair para jantar.
Costumava fazê-lo numa churrascaria de Copacabana, no posto 5, onde já conhecia todo mundo, do dono ao cozinheiro. Uma vez, meio de porre, acompanhado de uma dama da noite, quis ali jantar, à meia-noite, vestindo uma bermuda. Ponderaram com ele que o traje não era adequado para a noite. Ele insistiu e, como era conhecido de todo mundo, acabou entrando.
"Assim era ele", pensava consigo mesmo. Ganhava todo mundo na simpatia.

* * *

Chegou, cumprimento o garçom, sentou-se à mesa de sempre.
Picanha com fritas e farofa...
Comia devagar...
Divagava mais uma vez...
Tomou mais um gole do seu chope...
A dor veio forte, rasgando-lhe as entranhas.
Levou a mão ao peito, apertando-o com força...
Sorriu... Sentiu que era a hora...
A imagem de Silvana veio-lhe mais uma vez à mente... Forte, nítida, em todo o seu esplendor...
A cabeça, já sem vida, tombou sobre a mesa...* * *