domingo, novembro 27, 2016

FIDEL...

FIDEL...

Calfilho



              O ano, não tenho certeza... acho que 1958 ou 1959 (não vou recorrer à Wikipedia para saber, prefiro pedir auxílio à memória)...
        Líamos nos jornais da época que, em Cuba, mais precisamente, na Sierra Maestra, um grupo revolucionário tentava tirar do poder um tirano, um pau mandado dos norte-americanos, um tal de Fulgêncio Batista... Notícias longínquas, vindas do hemisfério norte...
                Cuba, em 1958, era um paraíso para os norte-americanos ricos, que ali procuravam prazer no sexo, nos cassinos, na força da moeda americana em relação à cubana... Mero satélite dos Estados Unidos da América, como o foram o Havaí e o Alasca,  antes incorporados ao "Big Brother"...
        Os relatos que nos chegavam eram muito românticos, aventureiros... um grupo de rebeldes embrenhado nas selvas de Cuba, tentando derrubar um governo sustentado por um exército forte, ainda mais apoiado pelos "irmãos" norte-americanos...                          Vibrávamos e torcíamos por Fidel e seus guerrilheiros, mas tudo era tão distante de nós... Poucos acreditavam no êxito da revolução...
         Mas, ela foi vitoriosa... e, nós os brasileiros distantes, batemos palmas para a vitória dos heróis cubanos, auxiliados por um argentino, que seria o símbolo da revolta, do inconformismo... "Che" Guevara...
            Acreditávamos todos que uma nova era se abria para Cuba... um governo do povo... para o povo... igualzinho ao que se esperava da Revolução Francesa... Igualdade, Liberdade, Fraternidade...
               O tempo passou... a revolução cubana sedimentou-se... mas, nada de eleições, nada do povo escolher seus dirigentes... o país evoluiu em educação e saúde, mas involuiu em liberdade, em direitos humanos, em progresso material... Havana ficou parada no tempo, uma cidade atrasada, sem perspectivas de melhorias, de conseguir achar seu caminho, sua verdadeira vocação... Isolada do mundo, dos outros países, do contexto mundial...
             E, o chefe da Revolução continuava lá, firme e erecto, durante 50 anos, no comando da nação... 
               Em nossa modestíssima opinião, o maior erro de Fidel foi bater de frente com os Estados Unidos... (nisso até concordo com ele, tinha que enfrentar mesmo)... Deveria ter enfrentado, batido de frente... Seu maior erro foi não saber dimensionar a força que tinha para esse combate... Seu maior erro foi achar que era o dono da verdade... Sua megalomania o deixou isolado...
            Coisa parecida, mesmo que com ares tupiniquins, aconteceu no Brasil... o presidente torneiro-mecânico também se achou o dono da verdade, o intocável... deu no que deu...
               Bem, a mão de Deus não falha: mesmo os mais poderosos um dia encontram a morte. E Fidel encontrou a sua...





sexta-feira, novembro 25, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 35


OS DESBRAVADORES

Capítulo 35

Calfilho






XXXV





Mais dois dias se passaram desde a caçada do jacaré.
Os homens voltaram ao trabalho normal, apesar de ainda estarem com um olho na mata, preocupados com a movimentação que havia em seu redor. Continuavam a perceber que estavam sendo vigiados. Mas, não viram ninguém, nenhum índio da tribo dos akawés.
Como nada de anormal acontecera, já trabalhavam mais despreocupados, a vigilância fora relaxada. Brincavam entre eles, contavam piadas, riam alegremente.
Até Maria Teresa, depois que Faustino verificara que não havia perigo imediato, ousou sair da tenda. Dava uma volta com as índias pelo acampamento, visitou a taba dos Denis, lá na parte do fundo, voltou a ensinar a arte de fazer toalhas e colchas de renda.
Estava ela na margem do igarapé, molhando descuidadamente os pés, quando viu os dois índios. Levou um susto quando levantou a cabeça e viu a canoa, no meio do riacho, conduzida pelos dois akawés. Correu rapidamente de volta à tenda, enquanto os índios, da canoa, olhavam para ela com curiosidade. Suas roupas, chapelão na cabeça, a barriga aumentada pela gravidez, certamente chamaram a atenção dos silvícolas. Devia ser umas três da tarde, Faustino não estava no acampamento. Maria Teresa, nervosa, mandou chamar Pedro, que estava lá nos fundos, nos barracões dos buiões.
O capataz veio correndo:
– Pois não, dona Teresa – disse, ao entrar na tenda, segurando o chapéu de palha entre as mãos.
– Pedro, quando eu estava ainda há pouco na margem do rio, vi dois índios remando numa canoa. Ficaram olhando fixamente para o acampamento. Tenho certeza de que não eram da tribo de Arumã.
– É mesmo, dona Teresa? E eles fizeram o quê?
– Só passaram remando e olhando para o acampamento. Estavam a uns vinte metros de distância.
– Vou esperar o patrão chegar para ver o que ele vai fazer. Não se preocupe, vou colocar alguém tomando conta da sua tenda – concluiu Pedro, despedindo-se.
Maria Teresa ficou temerosa. Conversava com as índias que a rodeavam, mas o pensamento estava lá fora, naquela canoa com os dois homens. “Quem seriam eles? Por que passaram tão perto do acampamento, como se quisessem observar tudo o que ali se passava?”.
O tempo custava a passar. Faustino demorava a chegar. De tão nervosa que estava, o bebê mexia-se agitado na barriga de Maria Teresa. As índias que lhe faziam companhia, não entendendo a gravidade e a extensão do problema, riam, divertidas, enquanto ela fazia os seus pontos na toalha de renda.
Finalmente, lá pelas cinco e meia, Faustino regressou com uma turma de seringueiros. Enquanto supervisionava o descarregamento dos baldes de látex nos buiões, Pedro aproximou-se, relatando-lhe o que Maria Teresa lhe contara.
Ele deixou rapidamente o que estava fazendo, andando apressado até sua tenda, acompanhado de Pedro. Ali, Maria Teresa repetiu o relato que fizera ao capataz, mostrando sua preocupação.
Faustino acalmou-a:
– Calma, Teresa. Eles deviam estar só sondando o ambiente. Não precisa ficar nervosa, cuidado com o neném.
Ele deixou a tenda, caminhando até a margem do igarapé. Olhou para a frente e para os lados, procurando divisar alguma coisa de anormal. Nada, somente a imensidão da floresta que o cercava. O riacho à sua frente, com uns cinquenta metros de largura, parecia tranquilo, a água correndo mansamente, em direção ao rio-mar, longe dali, mais de dois quilômetros de distância. Na margem do outro lado, em frente, floresta densa, mata cerrada, o barulho das aves e micos nas altas árvores.
Faustino disse para Pedro, em voz baixa:
– Pedro, coloque uns três homens vigiando aqui na margem. Eles ficaram agitados depois que Maria Teresa viu a canoa com os índios?
– Um pouco, patrão. Mas, eu acalmei eles, pode ficar tranquilo.
– Hoje, na hora do jantar, serve uma dose de cachaça pra todo mundo. Isso vai ajudar a relaxá-los.
– Pode deixar, patrão – respondeu Pedro, afastando-se.
Faustino deu uma última olhada para o igarapé, conferindo novamente se tudo estava normal.
Entrou na tenda, tirou a arma da cintura e disse para Maria Teresa:
– Teresa, está tudo quieto, por enquanto. Vou tomar um banho e depois a gente vai jantar. Acho que, por ora, não há motivo para preocupação.
Saiu da cabana, dorso nu, toalha pendurada nos ombros, sabonete na mão direita.
Quando a noite caiu, sem que nenhum movimento fosse percebido, uma agitação intensa de folhas e árvores era feita na outra margem do igarapé, numa atividade febril de pernas e braços se movendo. Tudo num silêncio absoluto.
Só se ouvia, na noite escura como breu, o rumorejar das águas do igarapé e um ou outro animal noturno soltando um grito aqui e ali.

OS DESBRAVADORES Capítulo 34


OS DESBRAVADORES

Capítulo 34

Calfilho




XXXIV






Os três dias seguintes transcorreram com aquele estado de tensão pairando no ar. Os homens desempenhavam suas tarefas, mas sempre preocupados com o que se passava ao seu redor, na mata cerrada que os envolvia. Continuava o movimento invisível de folhas e arbustos, mas nenhum índio aparecia. Mais duas flechas incendiárias foram lançadas sobre o acampamento e, como das vezes anteriores, foram reconhecidas como sendo dos akawés.
Faustino procurava conversar com os homens, tentando acalmá-los a fim de que não perdessem o controle. Conversou com Arumã e este lhe disse que aquilo nunca acontecera antes. Quando os akawés atacavam sua tribo havia logo o confronto direto, com vários mortos dos dois lados. Isso já não ocorria há muito tempo, somente uma vez desde que ele assumira a chefia dos Denis. Na época do seu pai cacique, os confrontos entre as duas tribos eram mais frequentes. Depois que começou o ciclo da borracha, com a invasão dos brancos em seu território, as tribos ficaram mais afastadas, sendo poucas as vezes em que os caminhos se cruzaram.
Arumã contou a Faustino e aos homens da expedição várias histórias desses confrontos, recheando o relato com versões fantásticas da aparição do boitatá, do saci pererê e de outros mitos do folclore indígena. Essas histórias fizeram os homens rir à vontade, descontraindo um pouco o ambiente. Só Arumã é que não entendeu porque eles riam tanto. “Será que não acreditavam no que ele lhes contava? Era porque nunca viram...”.
Nesse meio tempo, numa daquelas manhãs de tensão, o acampamento acordou com os gritos de Mário. Faustino pulou da rede, colocou rapidamente o revólver na cintura e saiu da tenda. Imaginava já um ataque dos akawés. Do lado de fora, em frente às duas primeiras cabanas, a sua e a de Pedro, junto à margem do igarapé, Mário e outros homens gritavam, agitados. Mas, não era o tão esperado ataque da tribo inimiga.
Um enorme jacaré havia deixado a água e estava junto à margem, caminhando vagarosamente em direção ao acampamento. Nem os gritos de Mário o assustavam. Ia avançando lentamente, as grandes patas enfiando-se na terra mole. Devia ter quase três metros de comprimento.
Os índios Denis, em sua taba lá nos fundos da colocação, ouvindo a gritaria de Mário também, também pensaram que eram os akawés atacando. Armaram-se com seus arcos e flechas e chegaram correndo até o local de onde vinham os gritos.
Ninguém sabia o que fazer.
Mário gritou:
– Atirem nele! Atirem nele!
Zeferino também deu sua opinião:
– Vou dar uma paulada na cabeça dele!
Manuel, o português, também gritou:
– Botem um jerimum para ferver. Ouvi dizer que quando ele abrir a boca é só jogar o jerimum que ele engole e morre logo!
E o enorme jacaré continuava a sua lenta caminhada em direção à tenda de Faustino. Maria Teresa, já de pé, colocou o rosto para fora, soltando um grito de pavor quando viu o tamanho do réptil, a uma distância de aproximadamente um metro da entrada da tenda.
Arumã chegou apressado e vendo o que se passava, deu várias ordens aos seus guerreiros, em aruak.
Quatro índios, com suas lanças na mão, cercaram o jacaré, mantendo uma prudente distância de meio metro do mesmo. A um sinal de Arumã atiraram suas lanças contra o bicho.
Apesar de ter ele o couro bem grosso, a precisão e força com que as lanças foram atiradas penetraram-lhe o corpo. Ele contorceu-se, espanou o ar com violência com o rabo, abriu a bocarra onde apareciam os dentes ferozes. Maria Teresa ficou imóvel, paralisada de medo na porta da barraca. Faustino já tinha o revólver apontado para o réptil.
Ele continuava a contorcer-se, acabando por virar com a barriga para a cima. Então, o golpe de misericórdia. Um dos guerreiros cravou sua lança no meio do peito do jacaré. Este ainda continuou a contorcer-se por mais alguns minutos, acabando por ficar imóvel.
Os homens gritaram de satisfação, pulando e dançando em volta da presa. Mário disse, sorrindo, batendo com uma colher numa panela:
– Hoje, vamos ter carne de jacaré e sopa de jacaré!
Pegou o seu afiado facão e foi tirando o couro do bicho com maestria. Todos comentavam a caçada, enquanto enchiam suas canecas com o café do bule que esquentava nas fogueiras.
Foram trabalhar mais descontraídos, com o espírito menos carregado. A aventura da manhã lhes fizera bem. No almoço, os que ficaram no acampamento provaram o delicioso guisado de jacaré. À noite, foi servida sopa no jantar e, para os homens que foram trabalhar nas seringueiras, também o guisado. Todos se deliciaram com o gosto diferente da carne do réptil.

quinta-feira, novembro 24, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 33



OS DESBRAVADORES
Capítulo 33

Calfilho




XXXIII






Os dias transcorriam rapidamente.
Já agora perfeitamente entrosados, trabalhadores, índios, até Maria Teresa, a rotina do dia a dia seguia o planejamento elaborado por Faustino.
Cada equipe de homens voltava dos seringais no final do dia trazendo, cada uma, de sete a dez baldes de látex, com quinze quilos aproximadamente por unidade. Os índios ajudavam no transporte, apesar de alguns também já auxiliarem nos trabalhos de fazer sulcos nas seringueiras.
Aqueles que ficavam durante o dia na “colocação”, ocupados em tarefas secundárias, logo que chegavam os baldes com látex, assumiam o controle do serviço. Colocavam a seiva nos buiões, que já tinham as fogueiras acesas debaixo deles. Depois de atingido o ponto de quase ebulição, o látex fumegante era despejado nas baias embaixo dos barracões, onde era esfriado e se transformavam nas grandes pélas, as enormes bolas de borracha bruta, com quase quarenta quilos cada uma.
Depois de formadas, as pélas eram colocadas ao abrigo do sol e da chuva em outro barracão, cobertas por lonas de um tecido bem grosso e resistente. Ali aguardariam a chegada da gaiola do Morais, quando então seriam transportadas para Santarém e Belém.
As índias que assessoravam Maria Teresa, já acostumadas em ver um homem cozinhando, ficavam observando Mário preparar as refeições. Prestavam bastante atenção nos temperos utilizados, o tempo de cozimento das carnes, a limpeza do peixe e outros segredos culinários. Das vezes anteriores em que Faustino estivera na região elas já tinham visto um homem cozinhando, o que, inicialmente, causou-lhes muita surpresa, pois na tribo eram as mulheres as responsáveis pela preparação da comida. Mas, depois que tinham visto os cozinheiros trabalhando nas outras expedições, agora ver Mário preparando a refeição já não era mais novidade.
Maria Teresa, inclusive, incentivava-as a observar o trabalho do cozinheiro. Assim, elas poderiam depois utilizar o que aprendessem quando fossem preparar as refeições dos maridos e filhos.
Maria Teresa já estava no sexto mês de gestação, a criança agora já se mexia em seu ventre. Faustino quase chorou de emoção quando ela o chamou, certo dia pela manhã. Haviam acabado de acordar, ele já lavava o rosto na água da bacia.
– Faustino, Faustino, vem cá – chamou ela.
Ele, enxugando o rosto e as mãos numa toalha, dirigiu-se até a rede onde ela ainda estava deitada.
– O que foi, Teresa? Tá passando mal? – perguntou.
Estava escuro dentro da tenda, o dia ainda não havia clareado. Ele acendeu o lampião, enquanto ela puxava a mão direita dele e a colocava sobre sua barriga.
– Presta atenção – disse ela.
Ele esperou por alguns segundos. Nada aconteceu.
– O que é? Não estou vendo nada – perguntou ele.
De repente, sentiu uma forte batida na sua mão. Ficou emocionado.
– Ele me chutou, Teresa... ele me chutou – disse.
– Está vendo? – perguntou ela. – Eu não te disse que ia chegar a hora dele se mexer?
Ele ainda ficou por uns dois minutos com a mão sobre o ventre da mulher, enquanto o filho voltava a dar outros chutes.
– Que legal, Teresa... fiquei muito feliz – disse, não conseguindo esconder as duas lágrimas que rolaram de seus olhos.
Ela debochou:
– Quer dizer que o homem durão, que não tem medo de nada, agora chora só porque o filho chutou sua mão?
Ele, embaraçado, passou a mão pelo rosto, enxugando as lágrimas.
Voltou para a bacia, colocou a pasta de dente na escova. Depois, vestiu-se e colocou o chapelão na cabeça.
– Hoje, eu volto para almoçar com você. A gente vai comemorar o primeiro chute do “bichinho”.
Tomou café, juntou os homens, partindo para os seringais. Estava contente, mais leve, uma sensação de felicidade invadia-lhe o espírito. Fez a ronda matinal das seringueiras, deu ordens aos homens, conferia uma coisa aqui, outra ali. Estranhou, entretanto, a ausência dos índios naquela manhã. Nenhum deles apareceu para acompanhar os seringueiros, como faziam habitualmente. O que teria acontecido? Esperaria a hora do almoço e iria até a taba para ver o que ocorrera.
Por volta das onze horas, quando inspecionava o último dos seringais, preparava-se para dirigir-se até a taba dos índios. Chamou dois homens para acompanhá-lo. Nesse momento, Arumã surgiu, nervoso, falando apressadamente, atropelando as palavras. Agora mesmo é que Faustino não entendia nada do que ele falava.
– Calma, Arumã, calma. Fale bem devagar, não estou entendendo nada do que você está dizendo.
Fazia gestos com as duas mãos espalmadas para a frente, procurando tranquilizar o cacique. Este, ainda muito nervoso, apontava para a direção de sua taba, onde sua tribo estava acampada. Os índios que o acompanhavam também estavam muito nervosos, faziam gesto agitados, abriam os braços, falavam alto.
Finalmente, Faustino conseguiu entender alguma coisa.
– Akawé... Akawé... – repetia Arumã.
– Que é que tem os akawés, Arumã? Por favor, explique melhor, que ainda não consegui entender.
Faustino também já estava nervoso com a agonia do amigo. Arumã tentava ficar calmo, falar alguma coisa em português. Não conseguiu. As palavras enrolavam-se na língua, só saíam sons em aruak, a língua da tribo Deni. Por sorte, Auã estava ali perto, naquele grupo de seringueiros. Faustino pediu-lhe:
– Auã, vê se consegue saber o que ele está querendo dizer. Não estou entendendo porra nenhuma.
Auã dirigiu-se a Arumã em aruak, perguntando o que havia acontecido. Foi traduzindo para Faustino:
– Patrão, os akawés, tribo inimiga dos Deni, mataram de emboscada um índio da tribo do cacique. Um outro conseguiu fugir e foi correndo até a taba avisar o resto. Eles estão de prontidão, prontos para a guerra.
Arumã continuava a falar rápido, naquela língua ininteligível. Auã traduziu:
– O cacique está preocupado que eles tentem atacar o nosso acampamento. Não sabe quantos eles são, mas sabe que  estão nas redondezas.
Faustino pensou um pouco. Depois, decidiu. Falou para Auã:
– Diga a ele para pegar todos de sua tribo e se dirigirem para o nosso acampamento. Juntos, vai ser mais fácil a gente se defender.
Auã repetiu as palavras de Faustino. Arumã abraçou Faustino, fazendo-lhe uma saudação. Conseguiu afinal expressar seus sentimentos em português:
– Obrigado, amigo Fastino. Vou reunir minha gente.
Desapareceu em seguida, seguido de seus bravos. Faustino gritou para os seringueiros:
– Olhem bem, prestem atenção. Vou mandar distribuir um revólver para cada um. Fiquem de olhos abertos. E, só atirem se tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Mandou Venâncio, um dos homens que trabalhava naquele seringal, correr as outras áreas e avisar o pessoal sobre o que estava acontecendo.
Voltou rapidamente para o acampamento. No caminho foi pensando no motivo do ataque dos Akawés. Numa das vezes anteriores, em 1912, soube que eles estavam rondando o acampamento. Aquela outra expedição, entretanto, era muito bem armada e tinha muito mais homens que a atual. Talvez, por isso, tiveram receio em atacar. Arumã comentara que os Akawés eram muito hostis, ferozes, que tinham prazer em matar e humilhar seus inimigos. Já estavam usando armas de fogo, conseguidas com os brancos, e eram em maior número que os Deni, que estavam divididos em várias tribos diferentes, cada uma com sua própria chefia.
Ainda quando seu pai era vivo, os Akawés, algumas vezes, atacaram e mataram membros da tribo de Arumã. Os Denis sempre foram índios pacíficos, nunca procuraram armar-se para a guerra, só tinham o arco, a flecha, a faca e o machadinho, utilizados apenas como instrumentos de caça. Por isso, sempre mudavam de lugar quando eram ameaçados pela chegada do branco ou de outra tribo hostil. Preferiam deslocar-se, ficar pulando de lugar em lugar, a enfrentar uma guerra para a qual não estavam preparados.
Pedro olhou com curiosidade para Faustino, surpreso com sua fisionomia de espanto, de preocupação.
– O que foi, patrão? – perguntou. – Alguma coisa errada?
Faustino entrou correndo no acampamento, a respiração ofegante:
– A tribo de Arumã está sendo atacada. Avise todo mundo para se preparar para a defesa da “colocação”.
Foi até sua barraca, onde, do lado de fora, Maria Teresa estava também um pouco preocupada. Nenhuma índia viera ao acampamento naquela manhã.
– O que houve, Faustino? – perguntou ela. – Por que você voltou antes do almoço? Onde estão as minhas índias?
Ele relatou-lhe rapidamente o que estava ocorrendo, alertando-a para que permanecesse no interior da cabana. Ele entrou na mesma, acompanhado de Teresa. Debaixo de sua rede, coberta por uma lona, havia um grande baú de madeira, trancado com um cadeado. Faustino pegou uma chave do seu molho preso no cós da calça e abriu o baú. Eram as arma da expedição. Revólveres, carabinas e facões.
Pedro entrava na cabana naquele instante.
– Pronto, patrão, já alertei os homens.
Faustino fez-lhe um sinal com as mãos, mandando que ele se aproximasse.
– Tome, Pedro, pegue aqui alguns revólveres e munição, distribua-os para os homens. Mas, avise bem eles de que só atirem se tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Fez uma breve pausa. Continuou, ainda falando rápido:
– Outra coisa: mandei o Arumã e toda sua tribo virem para cá. Manda os homens que estão esperando a chegada das cacimbas ajudarem na construção das ocas deles.
Pedro ia separando os revólveres e os colocava numa grande bolsa de palha.
– Pode deixar, patrão, eu aviso eles – retrucou.
Saiu rapidamente, carregando a bolsa cheia de armas.
Faustino colocou mais balas na cartucheira que tinha no cinto da calça e apanhou um rifle na caixa de armas. Passou novamente o cadeado na mesma.
Virou-se para Maria Teresa.
– Teresa, acho melhor você ficar aqui dentro da tenda, por enquanto. Vou lá fora providenciar as acomodações para Arumã e sua tribo e verificar se todos os homens estão armados.
Ela perguntou, um pouco apreensiva:
– Mas, você acha que eles vão mesmo atacar a gente, Faustino?
– Não sei. Das outras vezes em que estive aqui, eles só ficaram rondando. Mas, nós éramos muitos, talvez tenham ficado com medo.
 Olhou para ela com ternura:
– Bem, Teresa, tome cuidado. Proteja-se bem e não vá fazer nenhuma besteira, nada que possa prejudicar o “bichinho”. Vou lá fora ver como estão as coisas.
Pedro já havia distribuído as armas e mandou alguns homens levar outras para as áreas de extração. Todas as recomendações foram dadas:
“– Só atirem em último caso, quando tiverem certeza de que estão sendo atacados”.
“– Não vão querer me iniciar uma guerra boba por aqui”.
Faustino colocou vigias nas entradas principais do acampamento, revisou todos os locais de um possível ataque. Achando que estava tudo em ordem, voltou para sua tenda. Antes, pedira a Mário para levar-lhes o almoço.
Tirou o chapelão da cabeça, lavou as mãos e sentou-se num caixote que servia de cadeira em frente a uma mesa também improvisada sobre um cavalete de madeira. Mário chegou com duas tigelas com feijão de corda, arroz, jerimum e carne de peixe. Faustino levantou-se e pegou uma garrafa de vinho guardada entre seus pertences. Sentou-se novamente.
– Bem, Teresa, vamos fazer o nosso almoço de comemoração pelo primeiro chute do “bichinho” na tua barriga.
– Primeiro, não – disse ela. – Eu já tinha sentido vários outros antes de você.
– Então, está bem – tentou brincar ele. – O primeiro que eu senti dar.
Estava sério, fisionomia fechada, não conseguia esconder a preocupação. Serviu o vinho branco em dois copos, dando um a Maria Teresa. Bateram os mesmos, num brinde ao futuro filho.
– Bem, minha mulher – disse, com voz triste. – Vamos brindar ao nosso filho e esquecer um pouco as preocupações do dia.
Ela nada respondeu. Até estranhou ele tê-la chamado de “minha mulher”, coisa que dificilmente fazia. “A coisa devia estar realmente muito ruim. Nunca o vi tão preocupado assim” – pensou ela. Almoçaram em silêncio.
Quando acabaram, ele levantou-se, dizendo:
– Bem, Teresa, vou ver se os índios já chegaram. Se as mulheres já tiverem chegado, mando elas te fazer companhia. Não saia da tenda por nenhum motivo.
Deu-lhe um beijo na testa, deixando a cabana.
Uma outra de suas preocupações era que os Akawés vissem Maria Teresa, se estivessem espreitando o acampamento. Os índios sempre achavam diferentes as mulheres brancas, ainda mais as que tinham olhos verdes e a visão dela ali iria aguçar-lhes a curiosidade.
Arumã chegava com os seus, pela parte posterior do acampamento. Eram aproximadamente uns quarenta, talvez um pouco mais, Faustino não chegou a contá-los. Falavam nervosamente, demonstravam na voz e nos gestos a revolta que deles tomara conta. Traziam com eles o companheiro que fora morto pelos Akawés, já que pretendiam render-lhe as últimas homenagens numa cerimônia fúnebre da tribo.
Faustino examinou o cadáver, constatando que o guerreiro fora morto por uma flecha envenenada. A grande marca roxa em volta do ferimento no ombro do índio não deixava dúvida quanto a isso. Se a flecha não estivesse com veneno, dificilmente ele morreria, já que não fora atingido em local vital do corpo.
Depois das saudações de praxe, Arumã e Faustino discutiram sobre qual a melhor área para os índios se instalarem. Decidiram-se pela parte final do acampamento, atrás dos barracões onde as pélas eram formadas e estavam estocadas.
Em pouco tempo, menos de quatro horas, já os Denis haviam preparado suas ocas, com troncos de madeira e folhas de paxiúba. Sabiam montar e desmontar com rapidez suas acomodações, nômades que eram por natureza.
Arumã colocou duplas deles nos extremos do acampamento, em situação de vigília. Faustino também distribuiu alguns de seus homens em pontos estratégicos, reforçando a vigilância.
As índias que anteriormente já faziam companhia a Maria Teresa voltaram para junto dela, levando com elas mais umas seis. Todas de meia-idade, a não ser uma mais jovem, menina de uns dez anos, filha de Arumã.
Mais fogueiras foram acesas, tornando bem claro o acampamento e seus arredores. Todos estavam um pouco nervosos, em estado de alerta, preocupados com o que poderia acontecer.
Depois de instalados em suas ocas, Arumã e sua tribo prepararam o funeral do guerreiro morto. Colocaram-no deitado junto a uma das grandes fogueiras, lavaram-no com água, passaram óleo por todo o seu corpo, envolveram-no em uma manta muito larga, parecendo uma grande mortalha. Enquanto faziam tudo isso, entoavam canções tristes, que demonstravam toda sua dor. A mulher e os filhos do morto ficaram durante todo o tempo ao lado do corpo, cabeças baixas, olhos lacrimejantes.
Os índios começaram a dançar em fila em torno do corpo, continuando a cantar, agora em tom mais alto e lamentoso, canto esse acompanhado por um triste som de tambores e chocalhos.
Faustino pegou Maria Teresa na tenda e, na companhia de Pedro e de alguns dos homens da expedição, compareceu à cerimônia fúnebre. Apresentaram as condolências à viúva e filhos do morto, ficando por algum tempo em companhia da tribo.
Retiraram-se por volta das dez da noite, continuando os índios madrugada adentro com seus cantos e lamentos, reverenciando o guerreiro morto. Não foi percebido, entretanto, entre eles, nenhum sentimento de vingança, de revolta. Apenas conformismo, talvez consciência imperceptível de que sua tribo era pacífica, sentimento esse já sedimentado através de várias gerações. Bem diferente dos Akawés, conhecidos por sua agressividade e por ser uma tribo guerreira.
Na manhã seguinte, Faustino mandou os homens para as áreas das seringueiras, escoltados por dois outros deles armados com revólveres. Nenhum incidente ocorreu durante o dia, mas o ambiente estava tenso, as pessoas preocupadas, olhando com desconfiança para a mata cerrada que as cercava.
Por volta das seis da tarde, quando os homens já havia retornado com os baldes de látex e os buiões estavam fumegando nos dois barracões, uma flecha com uma bucha de pano queimando em sua ponta atravessou o acampamento, indo cair no chão, perto da tenda de Faustino.
Foi Firmino quem primeiro a viu, dando o alarme:
– Estamos sendo atacados! Protejam-se!
Os homens tiraram os revólveres dos coldres, procurando em volta de onde tinha vindo a flecha. Faustino gritou:
– Calma, não atirem à-toa. Esperem para ver se conseguem divisar alguém.
Depois, ordenou:
– Pedro, pegue a flecha e vê se consegue descobrir alguma coisa.
Pedro obedeceu. Apanhou a flecha no chão, examinou–a com cuidado. Depois, gritou de volta:
– Não é da tribo de Arumã, patrão. Vou perguntar a ele se sabe de quem são.
Dirigiu-se com cuidado até a parte dos fundos do acampamento, depois dos barracões dos buiões, onde os índios estavam alojados. Procurou Arumã e, quando o encontrou, exibiu-lhe a flecha ainda com a bucha na ponta.
O cacique examinou-a com cuidado, bradando em seguida:
– Akawé... Akawé...
Estavam todos em estado de alerta, mas nada de novo aconteceu nos minutos seguintes.
Pedro voltou até onde estava Faustino, acompanhado de Arumã.
– Ele disse que a flecha é dos akawés, patrão.
Arumã estava nervoso, fazia gestos incompreensíveis e o que falava ainda menos ainda se compreendia. Novamente Auã foi o tradutor:
– Ele está dizendo que os akawés podem atacar a qualquer momento, patrão – disse.
Faustino mandou Pedro avisar os homens que se posicionassem nos pontos de vigília e ficassem atentos a qualquer movimento suspeito. Repetiu:
– Avisa pra eles que só atirem quando tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Foi ver como estavam Maria Teresa e as índias no interior da tenda. Entrou com uma carabina numa das mãos e um revólver na cintura, o que assustou as mulheres. Estavam todas encolhidas no chão, espremidas umas contra as outras.
– Calma, vocês não precisam ficar nervosas – disse ele, tentando acalmá-las. – Não foi nada de mais, Teresa, só uma flecha incendiária que jogaram sobre o acampamento. Acho que só estão querendo nos assustar.
– Mas, eles não atacaram? – perguntou ela.
– Não, só atiraram a flecha e nada mais – respondeu. – Teresa, vê se acalma as índias, elas parecem estar apavoradas.
– E eu, por acaso, também não estou? – tentou brincar ela.
Pegou logo seu trabalho de renda e começou a bordá-lo, tentando distrair as índias. Essas, pouco a pouco, atraídas pela habilidade com que Teresa usava as mãos para dar os nós e laços na bela toalha, esqueceram-se do perigo que as preocupava. Faustino, vendo que as coisas estavam bem, deixou a barraca.
Do lado de fora, todos nervosos, fisionomias tensas, à espera do ataque dos akawés. Faustino e Pedro correram os pontos de vigília, verificando se os homens estavam bem localizados e como estava o estado de espírito dos mesmos. Uns mais sérios, outros com um sorriso amarelo nos lábios, estavam todos ansiosos, sem saber ao certo o que aconteceria.
Aquela noite, a maioria das pessoas do acampamento passou em claro. Poucos conseguiram dormir. Além dos homens encarregados da vigília noturna, os outros conversavam em voz baixa junto às fogueiras acesas. Olhos atentos na mata em volta, na expectativa de qualquer ruído suspeito. O canto de um pássaro noturno, o grito estridente de um mico numa árvore qualquer, tudo isto era considerado como um possível sinal dos akawés, comunicando-se entre eles e preparando o ataque.
Mas, não houve ataque algum naquela madrugada. A noite em claro só serviu para deixar os homens mais nervosos, irritados. Bem cedo, o sol despontando no horizonte, eles tomavam café junto às fogueiras, resmungando e extravasando o mau humor. Faustino, que passara a madrugada entre o interior de sua tenda, vendo como Maria Teresa reagia àquilo tudo, e a vigília ao lado dos homens do lado de fora, estava indeciso se mandava ou não os homens trabalhar naquela manhã.
Conversou com Pedro, depois mandou reunir os homens:
– Ouçam bem! – disse, em voz alta. – Não sei o que esses índios vão fazer, se vão atacar ou ficaram com medo das armas da gente. Por isso, quem não quiser ir para as seringueiras, eu vou compreender. Quem quiser, ganha mais um dia de trabalho. É isso aí.
Os homens se entreolharam, indecisos. Uns decidiram ir, outros ficaram. Faustino repetiu as recomendações anteriores, de só atirar se fossem realmente atacados. Tinha esperança de que os akawés, tendo visto que todos os homens da expedição estavam fortemente armados, desistissem e fossem embora.
Despachou aqueles que decidiram ir para os seringais, seguindo em companhia de um grupo, enquanto Pedro ficava no acampamento.
O dia transcorreu sem novos incidentes. Entretanto, a preocupação que pairava sobre o acampamento não desaparecera. Continuavam todos inquietos, nervosos, prontos para explodir a qualquer movimento suspeito que percebessem na mata que os cercava.
No final do dia, os homens voltavam com os baldes cheios de látex. Depois de despejada a substância nos buiões, reuniram-se com Faustino.
– E, então?  – perguntou ele aos homens sentados no chão. – O que viram de anormal?
Venâncio foi o primeiro a responder:
– Não sei não, patrão, mas acho que eles estavam vigiando a gente. Vi muito movimento no mato.
– Mas, você chegou a ver algum índio? – insistiu Faustino.
Venâncio hesitou.
– Não, acho que não – respondeu finalmente. – Mas, que o mato estava se mexendo isso tava.
– Quem mais viu alguma coisa? – novamente perguntou Faustino.
– Não sei, patrão, também vi movimento no mato, mas não cheguei a ver nenhum índio – respondeu João Paulo, que estava em outro local diferente de Venâncio.
– Quer dizer que ninguém chegou a ver nenhum índio rondando vocês?  – voltou a insistir Faustino.
Os homens se entreolharam. Ninguém respondeu à pergunta.
Faustino deu por encerrada a reunião. Disse:
– Andem, vocês podem se levantar, tomar seu banho e jantar.
Depois, comentou com Pedro, quando os dois estavam a sós:
– Acho que os akawés estão apenas sondando o ambiente. Devem ter visto nosso pessoal armado e estão em dúvida se atacam ou não.
– É, patrão, acho que o senhor tem razão. Mesmo que eles sejam mais numerosos, as nossas armas devem assustar.
Faustino foi até a taba improvisada de Arumã. O cacique conversava com outros índios, sentado junto a uma fogueira. Tinha o semblante fechado, demonstrando a preocupação que lhe ia na alma.
– Arumã, os homens voltaram do trabalho nas seringueiras. Disseram que não viram nenhum índio, apenas alguma movimentação na mata – disse Faustino.
– Eles estão por aí, chefe Faustino. Tenho certeza disso, eles estão rondando, esperando o melhor momento para atacar – respondeu o chefe, naquela sua língua enrolada.
– Bem, vamos ficar de sobreaviso, com o olho na mata – disse Faustino.
Aceitou o convite de Arumã para comer alguma coisa com os índios, que preparavam uma pasta de mandioca com carne de tatu. O gosto era horrível, mas Faustino fingiu que estava saboroso, elogiando a qualidade da comida.
– Suas mulheres estão cozinhando muito bem, Arumã – mentiu ele.
O chefe abriu um sorriso, dizendo em sua língua para as índias que ali perto cozinhavam que o chefe branco apreciara a comida. Elas agradeceram, rindo.
Depois de despedir-se dos índios, Faustino retornou à sua tenda, onde Maria Teresa ainda tagarelava com as índias ao seu redor.
Preocupada, ela olhou para o marido. Faustino tirou calmamente o cinto com o revólver, depositando-o em cima de um caixote que fazia as vezes de mesa. Foi até a bacia com água, lavando demoradamente o rosto e molhando os cabelos em desalinho. Pegou uma toalha, enquanto a mulher e as índias permaneciam em silêncio, olhando para ele. Enquanto se enxugava, virou-se para a mulher, dizendo:
– Teresa, é melhor você ainda não sair da tenda. A situação está indefinida, ninguém sabe o que pode acontecer.
Ela perguntou, a voz baixa, temerosa:
– Mas... o que houve? O que aconteceu? Você nem veio almoçar, passou o dia todo fora...
– Fiquei nos seringais, com os homens... Eles estão muito nervosos, não sabem o que fazer, nunca enfrentaram situação parecida... – respondeu. – Comi por lá mesmo.
– Mas, os índios chegaram a atacar? O que aconteceu na realidade? – indagou ela, nervosa.
– Não, ninguém atacou. Eles só ficaram observando, escondidos na mata. Pelo menos, foi isso o que os homens disseram. Eu mesmo não cheguei a ver nada. Mas, está todo mundo com os nervos em frangalhos, irritados, a ponto de explodir.
– Isso deve ser guerra de nervos por parte deles – sugeriu Teresa. – Devem estar querendo saber até onde a gente aguenta.
– É, pode ser – concordou ele. – Às vezes até eu acho melhor que eles atacassem logo. Assim, a gente definia logo a questão e poderia trabalhar em paz.
– Não sei não, Faustino. Pode morrer gente à-toa, sem necessidade. Enquanto eles estiverem apenas observando de longe, a gente só tem que tomar cuidado. Talvez eles desistam e vão embora.
– É, você tem razão. O duro é controlar essa gente toda, os nossos e os índios de Arumã. Está todo mundo sorrindo amarelo, disfarçando o medo de levar uma flechada de uma hora para outra.
Naquela noite tomaram os mesmos cuidados da anterior. Homens de vigia durante toda a madrugada, poucas horas de sono, conversas em tom baixo ao pé das fogueiras.
Mas, outra vez nada de anormal aconteceu.
Os homens, na manhã seguinte, todos eles, foram para as seringueiras, ficando no acampamento apenas aqueles responsáveis pelo cozimento do látex. Faustino novamente seguiu com eles, dando ordens expressas a Maria Teresa para que não saísse da tenda.
O dia também transcorreu sem novidades, tendo todos voltado para o acampamento no final da tarde, trazendo os baldes com o látex. Faustino fez outra reunião com os homens, tendo eles dito que não viram nenhum índio dos akawés, tendo percebido apenas movimento de gente na mata.
Mas, à noite, quando os homens jantavam em volta das fogueiras, uma outra flecha incendiária cruzou o céu, caindo no meio do acampamento. Arumã outra vez confirmou que se tratava de flecha dos akawés.
Faustino reuniu novamente todos os homens. Disse alto:
– Bem, vocês estão vendo que eles estão provocando a gente, mexendo com os nossos nervos. Se quisessem atacar, já teriam feito. Se não atacaram é porque têm receio de alguma coisa, têm medo de nos enfrentar. Eles querem que a gente perca o controle, faça alguma besteira. Portanto, muita calma, não vamos entrar no jogo deles. Vamos continuar o nosso trabalho normalmente, sempre com um olho na selva, mas sem nos apavorar, entrar em pânico. Se eles decidirem atacar, estamos prontos para reagir. Se desistirem e forem embora, melhor pra gente. Estão de acordo? Alguém quer dizer alguma coisa?
Ninguém retrucou. Faustino deu por encerrada a reunião e mandou os homens irem dormir. Colocou os vigias nos seus postos e voltou para sua tenda. Maria Teresa despediu-se das índias, que retornaram à sua taba.
A noite estava escura como breu. A copa das altas árvores não permitia que se visse as estrelas no céu. Faustino depositou o revólver no caixote ao lado de sua rede e disse para a mulher:
– Teresa, se você quiser tomar um banho, a melhor hora é essa. Os índios não costumam atacar de noite – brincou.
Ela concordou. Disse:
– Espera aí que eu vou apanhar uma roupa para trocar. E também uma toalha. Já estou sentindo a pele gordurosa.
Ela pegou uma muda de roupa e uma toalha. Saíram os dois da tenda.
– Vai, toma o seu banho que eu fico aqui for vigiando – disse ele.
Ela dirigiu-se para o cercado onde estava o chuveiro, enquanto ele ficava em volta de uma fogueira ao lado. Pedro estava de cócoras, comendo o seu jantar numa marmita de alumínio.
– E então, Pedro? O que você está achando? – perguntou.
Pedro engoliu uma garfada de carne seca com farinha. Respondeu:
– Não sei não, patrão. Mas, tenho o palpite de que eles não vão atacar. Acho que eles têm muito medo das armas de fogo.
– Eu também penso assim. Mas, a gente não pode relaxar a vigilância. Manter os olhos sempre abertos.
Depois que Maria Teresa saiu do banho e voltou para a tenda, Faustino também foi refrescar-se debaixo do chuveiro improvisado. Enquanto deixava a água cair sobre o seu corpo, meditava sobre que atitude deveria tomar.
Voltou para a sua rede e passou a noite sonhando com o ataque dos akawés.

quarta-feira, novembro 23, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 32

OS DESBRAVADORES




Capítulo 32

Calfilho










XXXII




O cacique Arumã estava satisfeito.
Afinal, depois de longo tempo afastados, conseguira rever o amigo Faustino, o “homem do chapéu grande”, como o chamava. Tinha para com ele impagável dívida de gratidão. Se não fosse Faustino, alguns anos atrás, a essa hora já estaria visitando seus antepassados. Quando fora picado por aquela cobra venenosa no meio da selva, não haveria recurso índio que o salvasse. O veneno daquela era diferente do das outras, matava em poucos minutos. As ervas e beberagens que costumava usar para mordidas de cobra não iriam funcionar daquela vez. Faustino prestou-lhe socorro prontamente, chupara o veneno do seu sangue, os dentes grudados em sua canela que já inchara bastante segundos após a mordida. Depois, aplicou-lhe uma picada no braço com aquele líquido branco espumoso que correu para dentro do seu corpo. Engraçado, pensou, “a picada daquele negócio que depois veio saber chamar-se injeção doeu mais que a mordida da cobra”.
Arumã já era chefe de sua tribo há várias luas, mais de vinte anos, segundo lhe explicou Faustino, fazendo a conversão do tempo de luas para anos. Pertencia aos Kuniva Deni, variação dos Deni, tribo que habitava a região dos rios Purus e Juruá. Eram índios nômades, não ficavam muito tempo no mesmo lugar, mudavam-se constantemente em busca de melhores áreas para a caça e, desde algum tempo, fixaram-se na margem esquerda do grande rio, depois de Itacoatiara e antes de Parintins. Estavam fixados ali por mais tempo porque, com o auge da exploração da borracha na região, aproximaram-se dos brancos e com eles conseguiram trabalho. Os brancos, em troca do serviço braçal, forneciam-lhes as mercadorias básicas para a sobrevivência da tribo, sem que tivessem mais necessidade de sair em busca do que comer. Antigamente, a caça e a pesca eram as únicas fontes de alimentos. Mas, apenas com arcos e flechas, nem sempre conseguiam êxito e muitos morriam de fome ou doenças bobas, como um simples arranhão ou um osso quebrado numa queda na selva.
Na realidade, seu nome verdadeiro, na língua Aruak, não era Arumã. Mas, como era muito difícil de ser compreendido o que falavam, os exploradores aportuguesavam o que conseguiam entender. Fora Faustino quem, depois de tentar inutilmente pronunciar com exatidão o nome do cacique, acabou por dar-lhe uma forma adaptada para o português, que ficou sendo Arumã. Com o passar do tempo, os dois conseguiram se comunicar melhor. Mas, inicialmente, nenhum entendia o que o outro dizia e a linguagem dos gestos é que servia de meio de comunicação entre ambos.
Assim também ocorreu com Auã, que Pedro recrutou numa das paradas do “Rosamar”, a caminho de Belém. Como ninguém conseguia entender o que ele dizia, nem mesmo o seu nome, este acabou sendo aportuguesado para Auã. Apesar dele morar numa cidade civilizada pelos brancos já há algum tempo. Os índios não faziam a mínima questão em querer aprender o português, mantendo-se fiéis à língua de origem. Os outros que se virassem e que aprendessem a falar com eles.
Assim, era engraçado ouvir Pedro ou outro dos seringueiros dando ordens a algum dos índios que fazia parte do seu grupo de extração do látex. Falavam alto, gritavam, esbravejavam e os índios ficavam olhando para eles com ar inocente, sem entender nada do que diziam. Somente pelos gestos feitos com as mãos ou com os pés é que conseguiam entender alguma coisa.
Maria Teresa e as índias que a cercavam, da mesma forma, só se conseguiram fazer compreender depois de vários dias de convivência. Também era muito engraçado vê-las soltando grunhidos e sons ininteligíveis, fazendo gestos espalhafatosos com as mãos. Mas, com elas era um pouco diferente dos homens: riam sem parar, achavam graça em tudo, procuravam o entendimento com bom humor. Já os homens viviam aos gritos, não conseguindo esconder a exasperação. Praguejavam, soltavam palavrões, xingavam os índios.
Arumã, depois que conheceu Faustino, em 1909, muito antes do episódio da mordida da cobra, acabou por nele confiar totalmente. Passaram alguns dias naquele processo de conhecimento mútuo, um desconfiando do outro, mas como Faustino, capataz da expedição, precisava desesperadamente conseguir homens para o trabalho braçal e Arumã também necessitasse de suprir sua tribo dos mantimentos que os brancos tinham estocados, a necessidade de ambos acabou por aproximá-los.
Fizeram uma boa amizade naquele primeiro contato e quando Faustino voltou à Amazônia, em 1912, Arumã foi logo procurá-lo. Foi então que ocorreram os episódios da mordida da cobra e da malária de Faustino, o que mais aproximou os dois.
Agora, dessa vez, quando Arumã foi avisado por Morais que Faustino iria voltar à região, procurou logo entrar em contato e colocar seus índios à disposição do amigo branco.
Arumã lembrava-se com nitidez de sua infância e da adolescência, passadas em companhia do pai e da mãe, vagando para lá e para cá, pelas duas margens do grande rio. Passavam longe das cidades, nem das menores se aproximavam. Não queriam contato maior com a civilização, a não ser o mínimo indispensável que lhes fornecesse algum meio de sobrevivência.
A selva já não era como antigamente, quando somente os índios nela habitavam e transitavam, onde a caça e a pesca eram abundantes e não havia disputas maiores para procurar o alimento. Naquele tempo, as únicas preocupações da tribo Kuniva Deni eram os perigos naturais da grande floresta e a rivalidade com os índios Akawés, tribo inimiga e que às vezes, cruzava o mesmo território.
Arumã perdera três irmãos, que não chegaram a atingir a idade adulta. Dois morreram em lutas travadas com os Akawés e o outro, mais velho que ele e que seria o futuro cacique, atacado por uma cobra venenosa. Cruzaram toda aquela região, quase fronteira com o Peru até depois de Manaus. O pai de Arumã nunca quis contato com o homem branco, mas este, na fase áurea do ciclo da exploração da borracha, chegava aos milhares à região, trazendo com ele suas doenças, seus vícios, invadindo a cada dia que passava o território virgem, somente pisado antes pelas tribos indígenas.
O velho cacique, pressentindo a chegada cada vez mais próxima do invasor, mal se fixava num terreno e pulava para outro, tentando evitar por todos os meios possíveis que sua gente fosse contaminada. Mas, eles não paravam. Dia a dia iam avançando mata adentro, derrubando árvores, fazendo queimadas, iniciando culturas de mandioca, feijão, batatas e outras mais. Arumã já ouvira histórias de que alguns índios de outras tribos que tiveram contato com os brancos foram por eles rapidamente corrompidos. Adquiriram o vício da embriaguez, suas mulheres foram violentadas ou acabaram seduzidas pelas falsas promessas dos caboclos nordestinos, acabaram fazendo todo o trabalho braçal sem nenhuma compensação, na condição de escravos. E, pior, com sua aproximação cada vez mais intensa, espantaram a caça animal e poluíram as águas dos rios, reduzindo a pesca outrora abundante.
Quando o pai morreu, Arumã, agora o filho mais velho, foi aclamado como o novo cacique. Tinha, na época, pouco mais de vinte anos, tendo que resolver de pronto o grave problema de como alimentar o seu pessoal.
A aproximação com os brancos tornou-se então inevitável.
Sua grande sorte foi que o primeiro branco que conheceu foi Faustino, em 1909, quando este tinha apenas vinte e três anos de idade e chegava pela primeira vez na Amazônia.
Faustino, capataz daquela expedição, estava fiscalizando uma colocação de um seringal, onde trabalhavam seis homens, extraindo o látex de umas trinta árvores. Pedro era um desse homens.
Faustino, no seu vistoso terno branco de sempre, chapelão de aba na cabeça, botas de cano alto, bigodinho fino sobre o lábio superior, dava ordens aos homens, indicando uma coisa ali, corrigindo outra ali.
Arumã e alguns dos seus homens já vigiavam a colocação há uns três dias, desde que perceberam a chegada dos seringueiros. Estavam curiosos antes de tudo, já que nunca tinham visto de perto um homem branco. Em segundo lugar, queriam observar de longe o que eles comiam, do que se alimentavam.
Estavam acampados ali perto, a uma distância de uns trezentos metros aproximadamente. Quando ouviram vozes na mata, deixaram os outros integrantes da tribo na taba e, chefiados por Arumã, uns sete deles foram observar os brancos. Esconderam-se na mata, escondidos atrás da densa vegetação, ficando a uns trinta metros dos seringueiros.
Não entendiam porque os brancos faziam aqueles cortes nas árvores e colocavam aquelas cacimbas embaixo, onde a seiva viscosa era recolhida. “Será que aquele líquido branco servia para beber? Ou faziam alguma espécie de comida com ele?” –pensava Arumã.
Quando o sol estava a pino, quase encoberto pelas copas das altas árvores, os homens pararam de trabalhar e sentaram-se no chão. Já era por volta do meio-dia. Conversavam alegremente em torno de uma pequena fogueira, onde uma grande vasilha preta de ferro cozinhava o almoço. O cheiro de charque e jerimum exalava fortemente da vasilha e, mesmo de onde estavam, os índios o sentiram no ar.
Arumã e seus homens nunca haviam sentido aquele cheiro, que lhes pareceu delicioso. Os homens se serviram, colocando a refeição em marmitas de alumínio, comendo com satisfação. Os índios continuavam observando de longe.
Arumã também ficou encantado com as roupas usadas por Faustino. Aquele terno branco de linho, o chapéu e as botas davam um aspecto de distinção àquele branco alto e que gritava muito com os outros homens.
“Ele deve ser o cacique deles” – pensou.
Sentado numa toalha sobre o chão de terra, para não sujar a calça branca do terno, Faustino almoçava ao lado de Pedro. Disse baixinho:
– Pedro, tem uns índios observando a gente.
Pedro virou o pescoço para os dois lados.
– Não vejo ninguém, patrão. Como é que o senhor sabe?
– Já reparei neles há uns dois dias atrás. Eles só estão olhando, parece que estão com medo de se aproximar.
– Será se são perigosos? – perguntou Pedro.
– Não sei, vou tentar descobrir durante o dia. Não alerte os homens, senão vão acabar fazendo merda.
– Tá certo, patrão – retrucou Pedro.
Depois do almoço, os homens retomaram o trabalho, cada um retornando às suas seringueiras. Faustino, fingindo despreocupação, dava uma ordem aqui, outra ali, circulando entre as árvores como quem não quer nada. Foi-se embrenhando mata adentro, até que chegou bem perto do local de onde Arumã e seus índios observavam o ambiente.
De repente, quando olhou em volta, viu-se cercado por vários arcos e flechas apontados para ele. Os índios o haviam cercado silenciosamente, sem que ele percebesse qualquer ruído ou movimento. Olhou fixamente para eles, um a um, até que parou o olhar sobre aquele que lhe pareceu o chefe, pois tinha um cocar na cabeça.
Tentou falar:
– Boa tarde, eu sou Faustino.
Os índios continuavam com os arcos e flechas apontados em sua direção. Nada disseram, não moveram um músculo. Depois de algum tempo em silêncio, Arumã caminhou em sua direção. Olhou-o com curiosidade, reparou que os dois tinham aproximadamente a mesma idade. Deu uma volta ao seu redor. Faustino permanecia imóvel, Arumã viu o revólver dependurado em sua cintura. Não sabia ao certo o que era, para que servia, mas deduziu que seria aquele objeto de que lhe falara seu pai. Aquele que os homens brancos traziam consigo, que fazia um estouro e matava os índios.
Apontou para o revólver e fez um gesto para que Faustino o jogasse ao chão. Ele obedeceu imediatamente. Arumã mandou que um dos seus guerreiros apanhasse o revólver.
Faustino procurou manter a calma, respirando profundamente. Novamente, tentou falar:
– Nós estamos aqui em paz. Vocês entendem a minha língua?
Ninguém respondeu, pois não entenderam nada do que ele disse. Arumã continuava a dar voltas em torno de Faustino, examinando-o detalhadamente. Não se conteve e tocou na aba de seu chapéu. Faustino continuou imóvel. Percebendo o interesse do índio no chapéu, tirou-o da cabeça e estendeu a mão, passando-lhe o mesmo.
Arumã pegou o chapéu das mãos de Faustino, colocando-o desajeitadamente na cabeça. Os outros índios riram. Arumã também acabou rindo. Faustino, sentindo que ganhava a confiança deles, também sorriu. Ajeitou com as mãos o chapéu na cabeça do cacique. Os outros índios aplaudiram, continuando a rir, como se achassem melhor a nova posição daquele objeto estranho na cabeça de seu chefe.
Faustino arriscou avançar um pouco mais. Fazendo gestos com as mãos, indicava aos índios para que o acompanhassem. Eles, a princípio, não entenderam direito o que ele queria dizer. Depois, parecendo entender, ficaram desconfiados. Mas, Faustino fez o gesto definitivo, aquele que os convenceu. Levou as mãos à boca, indicando que os convidava para comer alguma coisa.
Eles, que estavam de estômago vazio desde a manhã, quando começaram a vigiar o acampamento, entreolharam-se, hesitando se aceitavam ou não o convite.
Faustino insistiu, abrindo um largo sorriso e puxando Arumã pelo braço. Este, ainda com o chapelão enterrado na cabeça, deixou-se arrastar. Os outros o seguiram.
Chegando no centro da área de exploração, onde a pequena fogueira ainda ardia no chão, Faustino distribuiu algumas marmitas entre os índios. Depois, com a concha, foi servindo em cada uma o charque, o jerimum e a farinha de mandioca. Distribuiu, também, colheres entre eles. Os índios, com a marmita numa das mãos e a colher na outra, não sabiam o que fazer, olhando para Faustino. Este, percebendo-lhes a hesitação, pegou também uma marmita para ele, enchendo-a com a comida. Segurando uma colher, levou-a à boca, cheia de carne seca e jerimum.
Os índios o imitaram, saboreando o gosto da comida. Em pouco mais de um minuto esvaziaram as marmitas. Faustino voltou a enchê-las.
Arumã e sua tribo, é claro, já conheciam o fogo. Mas, no preparo da caça ou pesca, nunca utilizavam sal ou outros temperos. Por isso, sua comida não tinha gosto, o sabor era nenhum.
Experimentando aquela mistura de charque e jerimum, regada à farofa, bem temperada com cebola, alho, coentro, salsa, sal e muita pimenta, acharam-na maravilhosa. Riam muito enquanto comiam, faziam comentários em sua língua ininteligível. Depois, levantaram-se e começaram a dar passos de dança em volta de Faustino, levantando os braços em saudação para ele.
Os seringueiros, trabalhando junto às suas árvores, olhavam de lado para aquela cena, com medo de nela interferir. Não sabiam ao certo o que Faustino estava fazendo, estavam com receio de provocar os índios. E, se eles fossem perigosos? Talvez canibais?
Depois que os índios pararam de dançar, Faustino convidou Arumã a sentar-se no chão. Tentou explicar, por gestos, que eram amigos, que estavam ali em paz, trabalhando, colhendo a seiva das árvores para transformar em borracha... Arumã olhava para ele com expressão apalermada, pouco entendendo de sua explicação.
Com cuidado, Faustino gritou:
– Pedro, vem cá. Traz um balde cheio de látex.
Pedro obedeceu, caminhando vagarosamente em direção aos dois sentados, com o balde nas mãos. Estava pesado, devia ter uns doze quilos.
Faustino pegou o balde e mostrou o látex a Arumã. Fez um esforço danado para explicar que ele seria esquentado no fogo e depois transformado em borracha. O cacique entendeu pouca coisa.
Faustino disse para Pedro:
– Olha, vou tentar levar eles até o acampamento. Vem atrás de mim sem que eles percebam. Mas, só atire em último caso, só se eles mudarem o comportamento. Parece que são pacíficos e vou tentar ver se eles querem trabalhar com a gente.
Levantou-se, estendendo a mão direita a Arumã, ajudando-o a ficar em pé. Com novos gestos, convidou-o a acompanhá-lo. O cacique, ainda com o chapelão enterrado na cabeça, hesitou mais uma vez. Faustino insistiu. O índio decidiu acompanhá-lo, fazendo sinal para que os outros o seguissem.
Foram atravessando os “varadouros” com cuidado até chegarem à colocação. O pessoal que lá estava, inclusive o chefe da expedição, ficaram surpresos com Faustino puxando uma fila de índios. Ficaram meio de longe, olhando, curiosos.
Faustino falou, em voz alta, para que todos ouvissem:
– Pessoal, estes aqui são alguns índios que encontramos lá embaixo, num dos seringais. Acho que são pacíficos. Por favor, não façam nenhum gesto brusco ou falem muito alto para não assustá-los. Se confiarem na gente, acho que podemos convencê-los a nos ajudar aqui.
O pessoal obedeceu, inclusive Fernando, o chefe dos seringueiros.
Faustino disse-lhe, em voz baixa:
– Fernando, acho que eles estão com mais medo da gente do que nós deles. Parecem assustados, acho que nunca viram o homem branco. Também parecem com fome, dei de comer para eles lá no seringal, devoraram tudo.
Fernando respondeu:
– Tudo bem, vai em frente, vê se consegue lidar com eles. E, se conseguir convencê-los a trabalhar, ótimo. Estamos precisando de gente aqui, quantos braços a mais vierem, melhor.
Faustino conduziu Arumã e os índios até sua cabana. Mostrou-lhe o sal, fazendo com que o experimentasse. Também o açúcar e outros condimentos, dando-lhes um pouco de cada um para que os levassem. Deu-lhes também alguns presentes, como roupas, sandálias, braceletes dourados e outras quinquilharias.
Depois de meia hora mais ou menos, despediram-se. Os índios nada prometeram, mas Faustino tinha certeza de que voltaria a encontrá-los.
Realmente, no dia seguinte, bem cedo pela manhã, apareceram eles na “colocação”. Logo que localizou Faustino, Arumã a ele se dirigiu. O capataz não ficou surpreso. Ofereceu uma caneca de lata com café e leite ao cacique. Este, que nunca havia bebido aquilo, saboreou com prazer o líquido. Faustino mandou que um dos homens servisse o mesmo para os outros índios.
Arumã mandou um dos índios colocar no chão vários objetos, entre eles colares e cocares de penas coloridas de aves, facas e facões rudimentares, machados, arcos e flechas. Ofereceu uma bela faca a Faustino e mandou que os demais índios distribuíssem os outros objetos entre os homens da “colocação”. Estes agradeceram, com um sorriso amarelo nos lábios.
Faustino aproveitou para tentar explicar a Arumã que precisava do trabalho braçal dos índios. Explicou-lhe por várias vezes, através de gestos, qual seria o trabalho e qual seria a recompensa.
Ficaram quase toda a manhã tentando um entendimento. Lá pelas onze horas, Arumã parece que entendeu... Mais ou menos...
Falou com os demais índios sobre a proposta. Mas, queriam o pagamento, não em dinheiro, que não valia nada para eles. Desejavam mercadorias para comer, para cozinhar, algo que viesse a suprir a dificuldade que tinham agora em caçar e pescar.
Faustino compreendeu. Ofereceu-lhes logo para que levassem para sua taba alguns quilos de charque, sacos de sal e açúcar, farinha de mandioca, jerimum, feijão, banha de porco.
Naquela época, Faustino ainda não sabia o nome de Arumã, que só lhe foi dado muito tempo depois, aportuguesado. A comunicação oral entre os dois ainda era feita por meio de grunhidos e os gestos é que serviam como meio de compreensão. Os índios foram embora carregando os mantimentos.
No dia seguinte, antes que o dia clareasse, Arumã voltava com uns vinte índios atrás dele. Acordaram Faustino, que ainda dormia. Arumã, através dos seus grunhidos e gestos, disse que estavam prontos para o trabalho.
Começou assim a amizade entre os dois. E, como foi dito anteriormente, Arumã teve sorte em ter sido Faustino o primeiro homem branco que encontrou. Tinham quase a mesma idade, o que facilitou a aproximação. Apesar de Arumã já ser casado e ter dois filhos, além de ser o chefe de sua tribo, essas responsabilidades não o faziam ser muito diferente de Faustino. Este respeitava a natureza, impedindo a sua degradação desnecessária. Com ele, árvore só era cortada para um fim útil. Animal só era morto quando servia de alimento. Evitava poluir a água dos rios e jamais fizera uma queimada para plantação de legumes ou outros vegetais. Tinha um verdadeiro respeito pela raça indígena, que considerava como a verdadeira dona da terra, evitando ferir seus costumes ou tradições.
Se, ao contrário, o primeiro contato de Arumã com o branco fosse com qualquer daqueles vários aventureiros que invadiram a região amazônica, muitos deles malfeitores e de péssimo caráter, talvez o destino de sua tribo fosse outro. Homens insensíveis, duros, que não respeitavam nada, muito menos os índios que eram escravizados e pervertidos sem compaixão...
Faustino estava cansado de ouvir histórias de tribos inteiras corrompidas e dizimadas pelo álcool, as mulheres violentadas e pegando doenças venéreas de colonos ignorantes e ambiciosos, os índios trabalhando sem nada receber. Era a “civilização” que chegava até eles, a “cultura” do homem branco que ali aportara para lhes dar “melhores” condições de vida.
Por isso, às vezes era até ironizado pelo resto do pessoal da expedição pelo cuidado exagerado que tinha em preservar a natureza, pelo respeito que tinha pelos índios e sua cultura.
Quando partiu de volta para Fortaleza após aquela primeira expedição, Arumã e seu povo foram despedir-se de Faustino, tendo este prometido que voltaria em pouco tempo.
A amizade entre os dois ficou fortalecida quando Faustino realmente voltou à região, ainda como capataz de uma segunda expedição, em 1912. Foi recebido com alegria pelo cacique, que novamente colocou seus bravos à disposição. Faustino levou-lhe vários presentes, para ele e sua tribo, o que muito alegrou os índios. Foi dessa vez que ocorreram a picada da cobra em Arumã e a malária que acometeu Faustino.
E, agora, daquela vez, quando Morais avisou Arumã da próxima chegada do amigo branco, ainda mais acompanhado da mulher esperando criança, o índio preparou-se com cuidado para proporcionar-lhe uma recepção digna da amizade entre os dois.
Já se consideravam irmãos de sangue.