OS DESBRAVADORES
Capítulo 26
Calfilho
XXVI
Faustino só acordou por volta das dez horas.
Maria Teresa, que já estava de pé há bastante tempo,
vestira-se e fora até o andar inferior do hotel, onde pediu que o café da manhã
fosse servido no quarto. Com a evolução da gravidez, sentia fome logo que
acordava.
Tomou uma xícara de café com leite, comeu um pedaço de
pão com geleia.
Faustino, quando acordou, olhou para ela, sentada numa
cadeira mastigando uma banana.
– Puxa, Teresa, por que você não me acordou? –
perguntou.
Ela olhou para ele fixamente. Respondeu, num tom de
voz lacônico:
– Você estava dormindo tão profundamente, não quis te
acordar. A que horas você voltou?
– Sei lá, já era de madrugada – respondeu,
levantando-se. – Mas, acho que não era muito tarde não.
Ela sorriu interiormente. Ele pensava que ela estava dormindo quando ele entrou no quarto, mais
de quatro da manhã.
– Ganhou ou perdeu? – perguntou.
– Perdi uma mixaria – respondeu ele, enquanto escovava
os dentes. – Nada que vá abalar nossas finanças.
Sentou-se também numa cadeira, em frente à mesa.
Colocou um pouco de café preto numa xícara. Antes, bebeu um copo de suco de
mangaba.
Ela disse:
– Uma boa notícia, afinal. A chuva está parando. Falei
com o Morais lá embaixo, na hora em que fui pedir o café. Ele quer partir antes
do almoço.
– Ótimo – retrucou ele, levantando-se e dirigindo-se
até a janela. Realmente, agora chovia fino, sem a intensidade dos dias
anteriores.
Prosseguiu, voltando-se para a mulher:
– Então, vamos nos preparar. Você já tomou banho?
– Já – respondeu ela. – Já arrumei quase tudo, só
falta a roupa que você dormiu.
– Então, vou tomar um banho rápido. Pede a alguém lá
embaixo para vir buscar a mala.
Ele entrou no banheiro, passando-lhe a roupa de
dormir, um ceroulão branco, através do vão da porta.
Ela foi procurar alguém para ajudar com a bagagem.
Por volta das onze e meia, já no saguão do hotel,
Faustino despediu-se do dono do mesmo e de Florisvaldo. Pagou a conta e
dirigiu-se ao cais, de braço dado com Maria Teresa, que carregava um macaquinho
no ombro.
Na “Filomena”, todos já os aguardavam.
Faustino dirigiu-se a Pedro:
– Tudo certo, Pedro? Conferiu se houve algum problema
com a nossa mercadoria?
– Tudo certo, patrão. Podemos ir embora.
Faustino gritou para Morais, já em seu posto de
comando:
– Na hora que você quiser, Morais. Com o meu pessoal
está tudo certo.
Morais deu a ordem para que fossem desamarradas as
cordas que prendiam a embarcação ao cais. A “Filomena” começou a gemer, o motor
a girar, a embarcação afastando-se vagarosamente do atracadouro.
Em pouco tempo já estavam novamente no meio das águas
barrentas do rio-gigante. A chuva havia parado por completo, o sol voltara com
sua luz resplandecente, brilhando em toda sua intensidade.
Faustino foi fazer uma conferência no seu pessoal e na
mercadoria que transportava. Verificando que tudo estava em ordem, voltou para
perto de Maria Teresa. Enrolou vagarosamente um cigarro entre os dedos
amarelados.
Perguntou à mulher, em tom de provocação:
– Então, você não vai querer saber quanto perdi?
Ela olhou para ele, os dois olhos verdes cintilando
contra a luz forte do sol. Respondeu, com voz calma:
– Não, Faustino, não vou perguntar. Você já está bem
grandinho para saber controlar o seu dinheiro. Além do mais, se você mexeu no
que estava separado para a expedição, você sabe bem quais são as conseqüências.
Ele riu alto. Abraçou a mulher, deu-lhe um beijo na
testa.
– Por isso é que eu gosto da minha mulher. Tem total
confiança no marido.
Fez uma pausa, tirando uma profunda tragada do seu
cigarro. Continuou:
– Mas, fique tranquila, não perdi muito não. E não
mexi no dinheiro da expedição. Desculpe ter voltado tarde para o quarto, mas é
aquele negócio de jogador: a gente que está perdendo pensa sempre que vai
recuperar na próxima rodada.
– Eu nem vi a hora que você voltou – mentiu ela, que
estava bem acordada quando ele abriu a porta do quarto.
– Eu reparei – retrucou ele sorrindo, pois sabia que
ela estava acordada quando se deitou ao seu lado. – Bem, agora vamos entrar no
Amazonas. No Estado e não no rio – acrescentou, mudando de assunto.
A paisagem continuava praticamente a mesma: mata
cerrada de um lado e do outro do rio, a “Filomena” vencendo metro a metro a
correnteza forte, os pequenos botes dos habitantes ribeirinhos surgindo
velozmente a todo instante das margens, oferecendo suas mercadorias.
Maria Teresa já comprara um papagaio, uma arara e um
pequeno mico, que mantinha presos por pequenos pedaços de corrente fina junto à
sua rede.
Divertia-se durante o dia, alimentando os animais e
brincando com eles.
Na parte da frente da gaiola, os homens da equipe de
Faustino, sentindo que o fim da longa viagem se aproximava, batucavam e
cantavam alegremente.
Chegaram a Parintins dois dias depois, numa manhã
quente, o sol inclemente sobre suas cabeças.
No cais, já os aguardava Antonio Ferreira, o homem
contatado por Faustino e que iria mostrar-lhes a localização das terras que
arrendara. Sujeito baixo, gordo, vestido com um terno branco de linho, chapelão
de palha na cabeça, o que, aliás, era a moda masculina na região. Logo que a
“Filomena” atracou, subiu na embarcação.
Cumprimentou Morais, que fora o intermediário entre
ele e Faustino. O dono da gaiola fez as apresentações.
Os dois homens apertaram-se as mãos. Morais disse:
– Bem, agora que vocês já se conhecem, vou deixá-los a
sós.
Antonio disse, olhando para Faustino:
– Se o senhor preferir, podemos conversar num local
mais calmo, em terra.
Faustino concordou. Chamou Pedro e Maria Teresa,
apresentando-os a Antonio. Disse:
– Pedro, Teresa, vou sair por alguns minutos com o
“seu” Antonio aqui para resolvermos alguns assuntos sobre o local onde vamos
explorar. Se vocês quiserem podem dar uma volta pela cidade. Devo demorar uma
meia hora. Não vamos ficar muito tempo aqui, já combinei com o Morais.
Dirigindo-se a Pedro:
– Pedro, vê se os homens também querer descer um
pouco, esticar as pernas, comprar alguma coisa.
Depois à mulher:
– Teresa, fique junto do Pedro, não fique sozinha nem
um momento. Acho que tem umas lojas por aqui, vê se você quer comprar alguma
coisa para a criança.
Afastaram-se os dois, Faustino seguindo Antonio, que
se dirigiu ao restaurante do melhor hotel da cidade.
Sentaram-se em confortáveis cadeiras de palha, que
rodeavam grandes mesas de madeira de lei espalhadas pelo amplo salão. Um garçom
veio correndo atendê-los:
– Pois não, senhor Ferreira. O que deseja?
Antonio perguntou:
– Toma alguma coisa, “seu” Faustino?
– Uma cerveja, por favor.
O garçom afastou-se para cumprir o pedido. Voltou em
seguida, com uma garrafa de cerveja e dois copos, depositando-os sobre a mesa.
Antonio despejou a bebida nos dois copos, saboreando
vagarosamente o líquido amarelo e estalando a língua. Comentou:
– Nada como uma boa cerveja gelada para matar a sede
nesse calor, não é?
– Verdade, “seu” Antonio, verdade – retrucou Faustino,
enquanto examinava o homem.
Antonio tirou um mapa do bolso do paletó, abrindo-o
sobre a mesa.
– Bem, vamos logo aos negócios. O senhor não deve
querer perder mais tempo.
Faustino concordou com a cabeça.
Antonio continuou, apontando para um lugar no mapa.
– Sua gleba de terras fica aqui – mostrou com o dedo.
– Fica perto de Itacoatiara... quer dizer, mais ou menos perto – disse
sorrindo. – As distâncias por aqui são muito grandes, a gente nunca sabe
exatamente quais são.
Faustino olhava atentamente para o local indicado por
Antonio. Nas outras expedições anteriores, os locais de exploração eram mais
distantes, mais perto de Manaus, bem depois de Itacoatiara.
Perguntou:
– Bem, essas terras estão livres mesmo, não é?
Completamente desembaraçadas? Não quero ter problemas com ninguém depois de
sentar acampamento e começar a extração da borracha.
– Pode ficar tranqüilo, “seu” Faustino. As terras
estão devidamente registradas pelo proprietário que me autorizou a arrendá-las.
Tenho todos os documentos comigo, o senhor pode examiná-los com calma.
Tirou um calhamaço de papéis de uma pasta surrada de
couro, passando-os a Faustino.
– Tome, aqui estão. Os títulos de propriedade e a
autorização para o arrendamento. O senhor não precisa ficar preocupado, o
Morais me conhece há vários anos, sabe que eu já arrendei várias áreas pra
outros exploradores, nunca houve nenhum problema.
Faustino examinou os documentos. Apesar de precários,
todos escritos à mão, cheios de erros de português, como era comum na época,
pareciam ter validade.
– Bem, parece que estão em ordem – disse Faustino, com
voz firme. – Mas, se eu tiver algum problema, é com o senhor que vou me
entender, com mais ninguém está claro?
Antonio respondeu:
– Pode deixar, “seu” Faustino. A responsabilidade é
toda minha, pode me procurar se alguma coisa der errado. Inclusive, eu vou
acompanhá-los agora na viagem até o local onde estão situadas as terras
arrendadas, pode ficar tranqüilo. Vou lhes mostrar tudo.
– Então, está tudo certo. Só falta eu lhe pagar.
Tirou um maço de notas do bolso interno do paletó.
Contou o dinheiro, passando-o a Antonio.
– Tome, está aqui o preço combinado. Queira conferir,
por favor.
Antonio respondeu, colocando o dinheiro na pasta:
– Não é preciso, “seu” Faustino. Vê-se logo que o
senhor é um homem de bem.
Pediram mais uma cerveja.
Antonio preparou um recibo, passando-o a Faustino.
Este assinou uns papéis, o contrato de arrendamento.
Encerrada a transação, enquanto saboreavam a cerveja,
Antonio perguntou:
– O senhor já tem comprador para a sua borracha, “seu”
Faustino? Se não tiver, posso lhe arranjar alguém. Apesar do preço atualmente
estar em baixa, acho que ainda consigo quem pague um valor razoável.
Faustino perguntou, curioso:
– Mas, o preço caiu tanto assim? Ouvi falar, mas não
acreditei. Das vezes anteriores que estive por aqui, vendemos por um ótimo
preço.
– Caiu muito, sim. Depois que os ingleses
contrabandearam as sementes, por volta de 1912, a produção despencou. Eles
ainda não tiveram a primeira safra, por isso aqui ainda se consegue vender
alguma coisa. E, com a guerra lá na Europa, eles estão precisando cada vez mais
de borracha para fabricar pneus. Mas, nem se compara com os bons tempos, quando
só a gente mandava.
– É pena, lá se vai mais uma das riquezas do Brasil –
comentou Faustino. – Ainda bem que eu já vendi toda a minha produção
antecipadamente, lá em Fortaleza mesmo, não vou ter prejuízo. Agradeço sua
oferta, mas, como lhe disse, já comecei a viagem com a borracha toda vendida.
Infelizmente, essa deve ser minha última vinda para a Amazônia, pois daqui pra
frente não vai mais valer à pena extrair a borracha.
– É, as riquezas vêm e vão, somem por entre os nossos
dedos – filosofou Antonio, olhar triste, perdido no horizonte.
Acabaram de beber a cerveja, levantaram-se,
apertaram-se as mãos, despedindo-se.
Ao sair para a rua, Faustino viu Maria Teresa
acompanhada de Pedro, num armarinho ali perto.
Entrou na loja. Dirigiu-se a Pedro:
– Pedro, pode deixar que eu fico com ela. Já resolvi
tudo. Se você quiser fazer alguma coisa, ficar algum tempo lá com os homens,
pode ir.
– Então, está certo, patrão. Vou ver o que aqueles
caboclos estão fazendo.
Faustino acercou-se de Maria Teresa, abraçando-a
carinhosamente por trás. Ela enrubesceu, com vergonha da dona da loja, que
sorriu amigavelmente.
Maria Teresa perguntou:
– Resolveu tudo, Faustino?
– Tudo certo, Teresa. Até agora estava com medo de não
encontrar o homem aqui, foi tudo tratado por carta, nem sabia quem era ele. Só
tinha as informações que o Morais me passava. Mas, graças a Deus, correu tudo
bem. O Antonio me pareceu ser uma pessoa honesta, vai até nos acompanhar até as
terras para me mostrar o local exato. Isso até é bom, pois nessa imensidão de
mata e de água, era bem fácil eu me enganar e a gente acabar explorando a
borracha na terra dos outros.
A dona da loja se intrometeu:
– O senhor me desculpe eu dar minha opinião, mas o
“seu” Ferreira é uma pessoa muito bem conceituada aqui em Parintins. Todo mundo
fala muito bem dele, nunca vi ninguém falar mal. Acho que o senhor não vai se
arrepender, não.
Faustino olhava para a mulher, com uma expressão de
curiosidade. Respondeu:
– Obrigado, minha senhora, assim fico mais sossegado.
Virou-se para Maria Teresa.
– Então, Teresa, já escolheu o que vai comprar?
– Já, Faustino. Vou levar mais fraldas, alfinetes,
mais uma mamadeira. Só estou em dúvida quanto a esse conjuntinho para bebê –
respondeu ela, mostrando-o ao marido. – Não sei se levo azul ou rosa, não sei
se vai ser menino ou menina.
– Leva amarelo, assim não pode errar, serve para os
dois – retrucou ele.
– É, você tem razão. Vou levar o amarelo – disse,
dirigindo-se à dona da loja.
A mulher fez um embrulho, Maria Teresa pagou, deixando
o armarinho dependurada no braço do marido. Faustino, quando passou pela
tendinha onde estavam Pedro e os homens, fez-lhes um sinal com a mão direita,
indicando que estavam indo em direção à “Filomena”.
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