quinta-feira, novembro 24, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 33



OS DESBRAVADORES
Capítulo 33

Calfilho




XXXIII






Os dias transcorriam rapidamente.
Já agora perfeitamente entrosados, trabalhadores, índios, até Maria Teresa, a rotina do dia a dia seguia o planejamento elaborado por Faustino.
Cada equipe de homens voltava dos seringais no final do dia trazendo, cada uma, de sete a dez baldes de látex, com quinze quilos aproximadamente por unidade. Os índios ajudavam no transporte, apesar de alguns também já auxiliarem nos trabalhos de fazer sulcos nas seringueiras.
Aqueles que ficavam durante o dia na “colocação”, ocupados em tarefas secundárias, logo que chegavam os baldes com látex, assumiam o controle do serviço. Colocavam a seiva nos buiões, que já tinham as fogueiras acesas debaixo deles. Depois de atingido o ponto de quase ebulição, o látex fumegante era despejado nas baias embaixo dos barracões, onde era esfriado e se transformavam nas grandes pélas, as enormes bolas de borracha bruta, com quase quarenta quilos cada uma.
Depois de formadas, as pélas eram colocadas ao abrigo do sol e da chuva em outro barracão, cobertas por lonas de um tecido bem grosso e resistente. Ali aguardariam a chegada da gaiola do Morais, quando então seriam transportadas para Santarém e Belém.
As índias que assessoravam Maria Teresa, já acostumadas em ver um homem cozinhando, ficavam observando Mário preparar as refeições. Prestavam bastante atenção nos temperos utilizados, o tempo de cozimento das carnes, a limpeza do peixe e outros segredos culinários. Das vezes anteriores em que Faustino estivera na região elas já tinham visto um homem cozinhando, o que, inicialmente, causou-lhes muita surpresa, pois na tribo eram as mulheres as responsáveis pela preparação da comida. Mas, depois que tinham visto os cozinheiros trabalhando nas outras expedições, agora ver Mário preparando a refeição já não era mais novidade.
Maria Teresa, inclusive, incentivava-as a observar o trabalho do cozinheiro. Assim, elas poderiam depois utilizar o que aprendessem quando fossem preparar as refeições dos maridos e filhos.
Maria Teresa já estava no sexto mês de gestação, a criança agora já se mexia em seu ventre. Faustino quase chorou de emoção quando ela o chamou, certo dia pela manhã. Haviam acabado de acordar, ele já lavava o rosto na água da bacia.
– Faustino, Faustino, vem cá – chamou ela.
Ele, enxugando o rosto e as mãos numa toalha, dirigiu-se até a rede onde ela ainda estava deitada.
– O que foi, Teresa? Tá passando mal? – perguntou.
Estava escuro dentro da tenda, o dia ainda não havia clareado. Ele acendeu o lampião, enquanto ela puxava a mão direita dele e a colocava sobre sua barriga.
– Presta atenção – disse ela.
Ele esperou por alguns segundos. Nada aconteceu.
– O que é? Não estou vendo nada – perguntou ele.
De repente, sentiu uma forte batida na sua mão. Ficou emocionado.
– Ele me chutou, Teresa... ele me chutou – disse.
– Está vendo? – perguntou ela. – Eu não te disse que ia chegar a hora dele se mexer?
Ele ainda ficou por uns dois minutos com a mão sobre o ventre da mulher, enquanto o filho voltava a dar outros chutes.
– Que legal, Teresa... fiquei muito feliz – disse, não conseguindo esconder as duas lágrimas que rolaram de seus olhos.
Ela debochou:
– Quer dizer que o homem durão, que não tem medo de nada, agora chora só porque o filho chutou sua mão?
Ele, embaraçado, passou a mão pelo rosto, enxugando as lágrimas.
Voltou para a bacia, colocou a pasta de dente na escova. Depois, vestiu-se e colocou o chapelão na cabeça.
– Hoje, eu volto para almoçar com você. A gente vai comemorar o primeiro chute do “bichinho”.
Tomou café, juntou os homens, partindo para os seringais. Estava contente, mais leve, uma sensação de felicidade invadia-lhe o espírito. Fez a ronda matinal das seringueiras, deu ordens aos homens, conferia uma coisa aqui, outra ali. Estranhou, entretanto, a ausência dos índios naquela manhã. Nenhum deles apareceu para acompanhar os seringueiros, como faziam habitualmente. O que teria acontecido? Esperaria a hora do almoço e iria até a taba para ver o que ocorrera.
Por volta das onze horas, quando inspecionava o último dos seringais, preparava-se para dirigir-se até a taba dos índios. Chamou dois homens para acompanhá-lo. Nesse momento, Arumã surgiu, nervoso, falando apressadamente, atropelando as palavras. Agora mesmo é que Faustino não entendia nada do que ele falava.
– Calma, Arumã, calma. Fale bem devagar, não estou entendendo nada do que você está dizendo.
Fazia gestos com as duas mãos espalmadas para a frente, procurando tranquilizar o cacique. Este, ainda muito nervoso, apontava para a direção de sua taba, onde sua tribo estava acampada. Os índios que o acompanhavam também estavam muito nervosos, faziam gesto agitados, abriam os braços, falavam alto.
Finalmente, Faustino conseguiu entender alguma coisa.
– Akawé... Akawé... – repetia Arumã.
– Que é que tem os akawés, Arumã? Por favor, explique melhor, que ainda não consegui entender.
Faustino também já estava nervoso com a agonia do amigo. Arumã tentava ficar calmo, falar alguma coisa em português. Não conseguiu. As palavras enrolavam-se na língua, só saíam sons em aruak, a língua da tribo Deni. Por sorte, Auã estava ali perto, naquele grupo de seringueiros. Faustino pediu-lhe:
– Auã, vê se consegue saber o que ele está querendo dizer. Não estou entendendo porra nenhuma.
Auã dirigiu-se a Arumã em aruak, perguntando o que havia acontecido. Foi traduzindo para Faustino:
– Patrão, os akawés, tribo inimiga dos Deni, mataram de emboscada um índio da tribo do cacique. Um outro conseguiu fugir e foi correndo até a taba avisar o resto. Eles estão de prontidão, prontos para a guerra.
Arumã continuava a falar rápido, naquela língua ininteligível. Auã traduziu:
– O cacique está preocupado que eles tentem atacar o nosso acampamento. Não sabe quantos eles são, mas sabe que  estão nas redondezas.
Faustino pensou um pouco. Depois, decidiu. Falou para Auã:
– Diga a ele para pegar todos de sua tribo e se dirigirem para o nosso acampamento. Juntos, vai ser mais fácil a gente se defender.
Auã repetiu as palavras de Faustino. Arumã abraçou Faustino, fazendo-lhe uma saudação. Conseguiu afinal expressar seus sentimentos em português:
– Obrigado, amigo Fastino. Vou reunir minha gente.
Desapareceu em seguida, seguido de seus bravos. Faustino gritou para os seringueiros:
– Olhem bem, prestem atenção. Vou mandar distribuir um revólver para cada um. Fiquem de olhos abertos. E, só atirem se tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Mandou Venâncio, um dos homens que trabalhava naquele seringal, correr as outras áreas e avisar o pessoal sobre o que estava acontecendo.
Voltou rapidamente para o acampamento. No caminho foi pensando no motivo do ataque dos Akawés. Numa das vezes anteriores, em 1912, soube que eles estavam rondando o acampamento. Aquela outra expedição, entretanto, era muito bem armada e tinha muito mais homens que a atual. Talvez, por isso, tiveram receio em atacar. Arumã comentara que os Akawés eram muito hostis, ferozes, que tinham prazer em matar e humilhar seus inimigos. Já estavam usando armas de fogo, conseguidas com os brancos, e eram em maior número que os Deni, que estavam divididos em várias tribos diferentes, cada uma com sua própria chefia.
Ainda quando seu pai era vivo, os Akawés, algumas vezes, atacaram e mataram membros da tribo de Arumã. Os Denis sempre foram índios pacíficos, nunca procuraram armar-se para a guerra, só tinham o arco, a flecha, a faca e o machadinho, utilizados apenas como instrumentos de caça. Por isso, sempre mudavam de lugar quando eram ameaçados pela chegada do branco ou de outra tribo hostil. Preferiam deslocar-se, ficar pulando de lugar em lugar, a enfrentar uma guerra para a qual não estavam preparados.
Pedro olhou com curiosidade para Faustino, surpreso com sua fisionomia de espanto, de preocupação.
– O que foi, patrão? – perguntou. – Alguma coisa errada?
Faustino entrou correndo no acampamento, a respiração ofegante:
– A tribo de Arumã está sendo atacada. Avise todo mundo para se preparar para a defesa da “colocação”.
Foi até sua barraca, onde, do lado de fora, Maria Teresa estava também um pouco preocupada. Nenhuma índia viera ao acampamento naquela manhã.
– O que houve, Faustino? – perguntou ela. – Por que você voltou antes do almoço? Onde estão as minhas índias?
Ele relatou-lhe rapidamente o que estava ocorrendo, alertando-a para que permanecesse no interior da cabana. Ele entrou na mesma, acompanhado de Teresa. Debaixo de sua rede, coberta por uma lona, havia um grande baú de madeira, trancado com um cadeado. Faustino pegou uma chave do seu molho preso no cós da calça e abriu o baú. Eram as arma da expedição. Revólveres, carabinas e facões.
Pedro entrava na cabana naquele instante.
– Pronto, patrão, já alertei os homens.
Faustino fez-lhe um sinal com as mãos, mandando que ele se aproximasse.
– Tome, Pedro, pegue aqui alguns revólveres e munição, distribua-os para os homens. Mas, avise bem eles de que só atirem se tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Fez uma breve pausa. Continuou, ainda falando rápido:
– Outra coisa: mandei o Arumã e toda sua tribo virem para cá. Manda os homens que estão esperando a chegada das cacimbas ajudarem na construção das ocas deles.
Pedro ia separando os revólveres e os colocava numa grande bolsa de palha.
– Pode deixar, patrão, eu aviso eles – retrucou.
Saiu rapidamente, carregando a bolsa cheia de armas.
Faustino colocou mais balas na cartucheira que tinha no cinto da calça e apanhou um rifle na caixa de armas. Passou novamente o cadeado na mesma.
Virou-se para Maria Teresa.
– Teresa, acho melhor você ficar aqui dentro da tenda, por enquanto. Vou lá fora providenciar as acomodações para Arumã e sua tribo e verificar se todos os homens estão armados.
Ela perguntou, um pouco apreensiva:
– Mas, você acha que eles vão mesmo atacar a gente, Faustino?
– Não sei. Das outras vezes em que estive aqui, eles só ficaram rondando. Mas, nós éramos muitos, talvez tenham ficado com medo.
 Olhou para ela com ternura:
– Bem, Teresa, tome cuidado. Proteja-se bem e não vá fazer nenhuma besteira, nada que possa prejudicar o “bichinho”. Vou lá fora ver como estão as coisas.
Pedro já havia distribuído as armas e mandou alguns homens levar outras para as áreas de extração. Todas as recomendações foram dadas:
“– Só atirem em último caso, quando tiverem certeza de que estão sendo atacados”.
“– Não vão querer me iniciar uma guerra boba por aqui”.
Faustino colocou vigias nas entradas principais do acampamento, revisou todos os locais de um possível ataque. Achando que estava tudo em ordem, voltou para sua tenda. Antes, pedira a Mário para levar-lhes o almoço.
Tirou o chapelão da cabeça, lavou as mãos e sentou-se num caixote que servia de cadeira em frente a uma mesa também improvisada sobre um cavalete de madeira. Mário chegou com duas tigelas com feijão de corda, arroz, jerimum e carne de peixe. Faustino levantou-se e pegou uma garrafa de vinho guardada entre seus pertences. Sentou-se novamente.
– Bem, Teresa, vamos fazer o nosso almoço de comemoração pelo primeiro chute do “bichinho” na tua barriga.
– Primeiro, não – disse ela. – Eu já tinha sentido vários outros antes de você.
– Então, está bem – tentou brincar ele. – O primeiro que eu senti dar.
Estava sério, fisionomia fechada, não conseguia esconder a preocupação. Serviu o vinho branco em dois copos, dando um a Maria Teresa. Bateram os mesmos, num brinde ao futuro filho.
– Bem, minha mulher – disse, com voz triste. – Vamos brindar ao nosso filho e esquecer um pouco as preocupações do dia.
Ela nada respondeu. Até estranhou ele tê-la chamado de “minha mulher”, coisa que dificilmente fazia. “A coisa devia estar realmente muito ruim. Nunca o vi tão preocupado assim” – pensou ela. Almoçaram em silêncio.
Quando acabaram, ele levantou-se, dizendo:
– Bem, Teresa, vou ver se os índios já chegaram. Se as mulheres já tiverem chegado, mando elas te fazer companhia. Não saia da tenda por nenhum motivo.
Deu-lhe um beijo na testa, deixando a cabana.
Uma outra de suas preocupações era que os Akawés vissem Maria Teresa, se estivessem espreitando o acampamento. Os índios sempre achavam diferentes as mulheres brancas, ainda mais as que tinham olhos verdes e a visão dela ali iria aguçar-lhes a curiosidade.
Arumã chegava com os seus, pela parte posterior do acampamento. Eram aproximadamente uns quarenta, talvez um pouco mais, Faustino não chegou a contá-los. Falavam nervosamente, demonstravam na voz e nos gestos a revolta que deles tomara conta. Traziam com eles o companheiro que fora morto pelos Akawés, já que pretendiam render-lhe as últimas homenagens numa cerimônia fúnebre da tribo.
Faustino examinou o cadáver, constatando que o guerreiro fora morto por uma flecha envenenada. A grande marca roxa em volta do ferimento no ombro do índio não deixava dúvida quanto a isso. Se a flecha não estivesse com veneno, dificilmente ele morreria, já que não fora atingido em local vital do corpo.
Depois das saudações de praxe, Arumã e Faustino discutiram sobre qual a melhor área para os índios se instalarem. Decidiram-se pela parte final do acampamento, atrás dos barracões onde as pélas eram formadas e estavam estocadas.
Em pouco tempo, menos de quatro horas, já os Denis haviam preparado suas ocas, com troncos de madeira e folhas de paxiúba. Sabiam montar e desmontar com rapidez suas acomodações, nômades que eram por natureza.
Arumã colocou duplas deles nos extremos do acampamento, em situação de vigília. Faustino também distribuiu alguns de seus homens em pontos estratégicos, reforçando a vigilância.
As índias que anteriormente já faziam companhia a Maria Teresa voltaram para junto dela, levando com elas mais umas seis. Todas de meia-idade, a não ser uma mais jovem, menina de uns dez anos, filha de Arumã.
Mais fogueiras foram acesas, tornando bem claro o acampamento e seus arredores. Todos estavam um pouco nervosos, em estado de alerta, preocupados com o que poderia acontecer.
Depois de instalados em suas ocas, Arumã e sua tribo prepararam o funeral do guerreiro morto. Colocaram-no deitado junto a uma das grandes fogueiras, lavaram-no com água, passaram óleo por todo o seu corpo, envolveram-no em uma manta muito larga, parecendo uma grande mortalha. Enquanto faziam tudo isso, entoavam canções tristes, que demonstravam toda sua dor. A mulher e os filhos do morto ficaram durante todo o tempo ao lado do corpo, cabeças baixas, olhos lacrimejantes.
Os índios começaram a dançar em fila em torno do corpo, continuando a cantar, agora em tom mais alto e lamentoso, canto esse acompanhado por um triste som de tambores e chocalhos.
Faustino pegou Maria Teresa na tenda e, na companhia de Pedro e de alguns dos homens da expedição, compareceu à cerimônia fúnebre. Apresentaram as condolências à viúva e filhos do morto, ficando por algum tempo em companhia da tribo.
Retiraram-se por volta das dez da noite, continuando os índios madrugada adentro com seus cantos e lamentos, reverenciando o guerreiro morto. Não foi percebido, entretanto, entre eles, nenhum sentimento de vingança, de revolta. Apenas conformismo, talvez consciência imperceptível de que sua tribo era pacífica, sentimento esse já sedimentado através de várias gerações. Bem diferente dos Akawés, conhecidos por sua agressividade e por ser uma tribo guerreira.
Na manhã seguinte, Faustino mandou os homens para as áreas das seringueiras, escoltados por dois outros deles armados com revólveres. Nenhum incidente ocorreu durante o dia, mas o ambiente estava tenso, as pessoas preocupadas, olhando com desconfiança para a mata cerrada que as cercava.
Por volta das seis da tarde, quando os homens já havia retornado com os baldes de látex e os buiões estavam fumegando nos dois barracões, uma flecha com uma bucha de pano queimando em sua ponta atravessou o acampamento, indo cair no chão, perto da tenda de Faustino.
Foi Firmino quem primeiro a viu, dando o alarme:
– Estamos sendo atacados! Protejam-se!
Os homens tiraram os revólveres dos coldres, procurando em volta de onde tinha vindo a flecha. Faustino gritou:
– Calma, não atirem à-toa. Esperem para ver se conseguem divisar alguém.
Depois, ordenou:
– Pedro, pegue a flecha e vê se consegue descobrir alguma coisa.
Pedro obedeceu. Apanhou a flecha no chão, examinou–a com cuidado. Depois, gritou de volta:
– Não é da tribo de Arumã, patrão. Vou perguntar a ele se sabe de quem são.
Dirigiu-se com cuidado até a parte dos fundos do acampamento, depois dos barracões dos buiões, onde os índios estavam alojados. Procurou Arumã e, quando o encontrou, exibiu-lhe a flecha ainda com a bucha na ponta.
O cacique examinou-a com cuidado, bradando em seguida:
– Akawé... Akawé...
Estavam todos em estado de alerta, mas nada de novo aconteceu nos minutos seguintes.
Pedro voltou até onde estava Faustino, acompanhado de Arumã.
– Ele disse que a flecha é dos akawés, patrão.
Arumã estava nervoso, fazia gestos incompreensíveis e o que falava ainda menos ainda se compreendia. Novamente Auã foi o tradutor:
– Ele está dizendo que os akawés podem atacar a qualquer momento, patrão – disse.
Faustino mandou Pedro avisar os homens que se posicionassem nos pontos de vigília e ficassem atentos a qualquer movimento suspeito. Repetiu:
– Avisa pra eles que só atirem quando tiverem certeza de que estão sendo atacados.
Foi ver como estavam Maria Teresa e as índias no interior da tenda. Entrou com uma carabina numa das mãos e um revólver na cintura, o que assustou as mulheres. Estavam todas encolhidas no chão, espremidas umas contra as outras.
– Calma, vocês não precisam ficar nervosas – disse ele, tentando acalmá-las. – Não foi nada de mais, Teresa, só uma flecha incendiária que jogaram sobre o acampamento. Acho que só estão querendo nos assustar.
– Mas, eles não atacaram? – perguntou ela.
– Não, só atiraram a flecha e nada mais – respondeu. – Teresa, vê se acalma as índias, elas parecem estar apavoradas.
– E eu, por acaso, também não estou? – tentou brincar ela.
Pegou logo seu trabalho de renda e começou a bordá-lo, tentando distrair as índias. Essas, pouco a pouco, atraídas pela habilidade com que Teresa usava as mãos para dar os nós e laços na bela toalha, esqueceram-se do perigo que as preocupava. Faustino, vendo que as coisas estavam bem, deixou a barraca.
Do lado de fora, todos nervosos, fisionomias tensas, à espera do ataque dos akawés. Faustino e Pedro correram os pontos de vigília, verificando se os homens estavam bem localizados e como estava o estado de espírito dos mesmos. Uns mais sérios, outros com um sorriso amarelo nos lábios, estavam todos ansiosos, sem saber ao certo o que aconteceria.
Aquela noite, a maioria das pessoas do acampamento passou em claro. Poucos conseguiram dormir. Além dos homens encarregados da vigília noturna, os outros conversavam em voz baixa junto às fogueiras acesas. Olhos atentos na mata em volta, na expectativa de qualquer ruído suspeito. O canto de um pássaro noturno, o grito estridente de um mico numa árvore qualquer, tudo isto era considerado como um possível sinal dos akawés, comunicando-se entre eles e preparando o ataque.
Mas, não houve ataque algum naquela madrugada. A noite em claro só serviu para deixar os homens mais nervosos, irritados. Bem cedo, o sol despontando no horizonte, eles tomavam café junto às fogueiras, resmungando e extravasando o mau humor. Faustino, que passara a madrugada entre o interior de sua tenda, vendo como Maria Teresa reagia àquilo tudo, e a vigília ao lado dos homens do lado de fora, estava indeciso se mandava ou não os homens trabalhar naquela manhã.
Conversou com Pedro, depois mandou reunir os homens:
– Ouçam bem! – disse, em voz alta. – Não sei o que esses índios vão fazer, se vão atacar ou ficaram com medo das armas da gente. Por isso, quem não quiser ir para as seringueiras, eu vou compreender. Quem quiser, ganha mais um dia de trabalho. É isso aí.
Os homens se entreolharam, indecisos. Uns decidiram ir, outros ficaram. Faustino repetiu as recomendações anteriores, de só atirar se fossem realmente atacados. Tinha esperança de que os akawés, tendo visto que todos os homens da expedição estavam fortemente armados, desistissem e fossem embora.
Despachou aqueles que decidiram ir para os seringais, seguindo em companhia de um grupo, enquanto Pedro ficava no acampamento.
O dia transcorreu sem novos incidentes. Entretanto, a preocupação que pairava sobre o acampamento não desaparecera. Continuavam todos inquietos, nervosos, prontos para explodir a qualquer movimento suspeito que percebessem na mata que os cercava.
No final do dia, os homens voltavam com os baldes cheios de látex. Depois de despejada a substância nos buiões, reuniram-se com Faustino.
– E, então?  – perguntou ele aos homens sentados no chão. – O que viram de anormal?
Venâncio foi o primeiro a responder:
– Não sei não, patrão, mas acho que eles estavam vigiando a gente. Vi muito movimento no mato.
– Mas, você chegou a ver algum índio? – insistiu Faustino.
Venâncio hesitou.
– Não, acho que não – respondeu finalmente. – Mas, que o mato estava se mexendo isso tava.
– Quem mais viu alguma coisa? – novamente perguntou Faustino.
– Não sei, patrão, também vi movimento no mato, mas não cheguei a ver nenhum índio – respondeu João Paulo, que estava em outro local diferente de Venâncio.
– Quer dizer que ninguém chegou a ver nenhum índio rondando vocês?  – voltou a insistir Faustino.
Os homens se entreolharam. Ninguém respondeu à pergunta.
Faustino deu por encerrada a reunião. Disse:
– Andem, vocês podem se levantar, tomar seu banho e jantar.
Depois, comentou com Pedro, quando os dois estavam a sós:
– Acho que os akawés estão apenas sondando o ambiente. Devem ter visto nosso pessoal armado e estão em dúvida se atacam ou não.
– É, patrão, acho que o senhor tem razão. Mesmo que eles sejam mais numerosos, as nossas armas devem assustar.
Faustino foi até a taba improvisada de Arumã. O cacique conversava com outros índios, sentado junto a uma fogueira. Tinha o semblante fechado, demonstrando a preocupação que lhe ia na alma.
– Arumã, os homens voltaram do trabalho nas seringueiras. Disseram que não viram nenhum índio, apenas alguma movimentação na mata – disse Faustino.
– Eles estão por aí, chefe Faustino. Tenho certeza disso, eles estão rondando, esperando o melhor momento para atacar – respondeu o chefe, naquela sua língua enrolada.
– Bem, vamos ficar de sobreaviso, com o olho na mata – disse Faustino.
Aceitou o convite de Arumã para comer alguma coisa com os índios, que preparavam uma pasta de mandioca com carne de tatu. O gosto era horrível, mas Faustino fingiu que estava saboroso, elogiando a qualidade da comida.
– Suas mulheres estão cozinhando muito bem, Arumã – mentiu ele.
O chefe abriu um sorriso, dizendo em sua língua para as índias que ali perto cozinhavam que o chefe branco apreciara a comida. Elas agradeceram, rindo.
Depois de despedir-se dos índios, Faustino retornou à sua tenda, onde Maria Teresa ainda tagarelava com as índias ao seu redor.
Preocupada, ela olhou para o marido. Faustino tirou calmamente o cinto com o revólver, depositando-o em cima de um caixote que fazia as vezes de mesa. Foi até a bacia com água, lavando demoradamente o rosto e molhando os cabelos em desalinho. Pegou uma toalha, enquanto a mulher e as índias permaneciam em silêncio, olhando para ele. Enquanto se enxugava, virou-se para a mulher, dizendo:
– Teresa, é melhor você ainda não sair da tenda. A situação está indefinida, ninguém sabe o que pode acontecer.
Ela perguntou, a voz baixa, temerosa:
– Mas... o que houve? O que aconteceu? Você nem veio almoçar, passou o dia todo fora...
– Fiquei nos seringais, com os homens... Eles estão muito nervosos, não sabem o que fazer, nunca enfrentaram situação parecida... – respondeu. – Comi por lá mesmo.
– Mas, os índios chegaram a atacar? O que aconteceu na realidade? – indagou ela, nervosa.
– Não, ninguém atacou. Eles só ficaram observando, escondidos na mata. Pelo menos, foi isso o que os homens disseram. Eu mesmo não cheguei a ver nada. Mas, está todo mundo com os nervos em frangalhos, irritados, a ponto de explodir.
– Isso deve ser guerra de nervos por parte deles – sugeriu Teresa. – Devem estar querendo saber até onde a gente aguenta.
– É, pode ser – concordou ele. – Às vezes até eu acho melhor que eles atacassem logo. Assim, a gente definia logo a questão e poderia trabalhar em paz.
– Não sei não, Faustino. Pode morrer gente à-toa, sem necessidade. Enquanto eles estiverem apenas observando de longe, a gente só tem que tomar cuidado. Talvez eles desistam e vão embora.
– É, você tem razão. O duro é controlar essa gente toda, os nossos e os índios de Arumã. Está todo mundo sorrindo amarelo, disfarçando o medo de levar uma flechada de uma hora para outra.
Naquela noite tomaram os mesmos cuidados da anterior. Homens de vigia durante toda a madrugada, poucas horas de sono, conversas em tom baixo ao pé das fogueiras.
Mas, outra vez nada de anormal aconteceu.
Os homens, na manhã seguinte, todos eles, foram para as seringueiras, ficando no acampamento apenas aqueles responsáveis pelo cozimento do látex. Faustino novamente seguiu com eles, dando ordens expressas a Maria Teresa para que não saísse da tenda.
O dia também transcorreu sem novidades, tendo todos voltado para o acampamento no final da tarde, trazendo os baldes com o látex. Faustino fez outra reunião com os homens, tendo eles dito que não viram nenhum índio dos akawés, tendo percebido apenas movimento de gente na mata.
Mas, à noite, quando os homens jantavam em volta das fogueiras, uma outra flecha incendiária cruzou o céu, caindo no meio do acampamento. Arumã outra vez confirmou que se tratava de flecha dos akawés.
Faustino reuniu novamente todos os homens. Disse alto:
– Bem, vocês estão vendo que eles estão provocando a gente, mexendo com os nossos nervos. Se quisessem atacar, já teriam feito. Se não atacaram é porque têm receio de alguma coisa, têm medo de nos enfrentar. Eles querem que a gente perca o controle, faça alguma besteira. Portanto, muita calma, não vamos entrar no jogo deles. Vamos continuar o nosso trabalho normalmente, sempre com um olho na selva, mas sem nos apavorar, entrar em pânico. Se eles decidirem atacar, estamos prontos para reagir. Se desistirem e forem embora, melhor pra gente. Estão de acordo? Alguém quer dizer alguma coisa?
Ninguém retrucou. Faustino deu por encerrada a reunião e mandou os homens irem dormir. Colocou os vigias nos seus postos e voltou para sua tenda. Maria Teresa despediu-se das índias, que retornaram à sua taba.
A noite estava escura como breu. A copa das altas árvores não permitia que se visse as estrelas no céu. Faustino depositou o revólver no caixote ao lado de sua rede e disse para a mulher:
– Teresa, se você quiser tomar um banho, a melhor hora é essa. Os índios não costumam atacar de noite – brincou.
Ela concordou. Disse:
– Espera aí que eu vou apanhar uma roupa para trocar. E também uma toalha. Já estou sentindo a pele gordurosa.
Ela pegou uma muda de roupa e uma toalha. Saíram os dois da tenda.
– Vai, toma o seu banho que eu fico aqui for vigiando – disse ele.
Ela dirigiu-se para o cercado onde estava o chuveiro, enquanto ele ficava em volta de uma fogueira ao lado. Pedro estava de cócoras, comendo o seu jantar numa marmita de alumínio.
– E então, Pedro? O que você está achando? – perguntou.
Pedro engoliu uma garfada de carne seca com farinha. Respondeu:
– Não sei não, patrão. Mas, tenho o palpite de que eles não vão atacar. Acho que eles têm muito medo das armas de fogo.
– Eu também penso assim. Mas, a gente não pode relaxar a vigilância. Manter os olhos sempre abertos.
Depois que Maria Teresa saiu do banho e voltou para a tenda, Faustino também foi refrescar-se debaixo do chuveiro improvisado. Enquanto deixava a água cair sobre o seu corpo, meditava sobre que atitude deveria tomar.
Voltou para a sua rede e passou a noite sonhando com o ataque dos akawés.

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