segunda-feira, novembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 28



OS DESBRAVADORES

Capítulo 28

Calfilho





XXVIII






Lá pelas quatro da tarde, finalmente chegaram.
Quase dois meses depois que deixaram Fortaleza, quando embarcaram no “Rosamar”.
Faustino não cabia em si de contentamento. Com emoção na voz, perguntou:
– Que dia é hoje do mês, Morais? Você sabe? Eu me perdi.
O dono da gaiola consultou um calendário que tinha afixado na janela em frente ao timão. Os dias passados eram marcados com um “X” grande.
– 19 de julho, Faustino – respondeu.
– Puta que o pariu – praguejou Faustino. – Dois meses só vendo água. Primeiro a salgada, agora a doce.
Antonio Ferreira avisou Morais:
– Devagar, Morais. É ali na frente, naquela pequena clareira na margem esquerda.
Já vinham navegando há horas através daqueles pequenos filetes d’água, escondidos naquele emaranhado de cipós, vegetação aquática e mata cerrada, sem que se conseguisse ver direito o céu, nem o que viria mais à frente.
Morais diminuiu ainda mais a velocidade da “Filomena”, deixando-a praticamente deslizar pelas águas calmas do igarapé. Perguntou a Antonio:
– Será se tenho profundidade para encostar na margem?
– Tem sim, já testei isso em outras vezes em que estive aqui – respondeu.
O local era maravilhoso. Faustino deliciava-se com a beleza do lugar, deixando que os pulmões se enchessem daquele ar puro, sem poluição. Não se ouvia nenhum barulho, a não ser, é claro, o cantar intermitente dos pássaros e o alvoroço dos macacos pulando de árvore em árvore, brincando alegremente naquele fim de tarde amazonense.
Maria Teresa aproximou-se de Faustino, dando-lhe o braço esquerdo.
– O que você está achando, Teresa? – perguntou ele.
– Muito lindo, Faustino. Uma paz enorme, a gente se sente dominada por esse silêncio tão profundo, que parece que engole tudo. As coisas são tão grandes: as árvores, a mata, o rio, o cheiro de umidade. Você tinha razão quando se apaixonou por tudo isso.
Morais encostou a gaiola com maestria na margem do igarapé.
Pedro foi dando as primeiras ordens aos homens para o desembarque do material que trouxeram. Faustino pôs os pés em terra firme, dando a mão a Maria Teresa para que também desembarcasse. Olhou para a pequena clareira à sua frente, pensando com seus botões como teria que aumentá-la para que comportasse todas as tendas a serem armadas.
Uma hora depois já estava tudo no chão.
Faustino perguntou a Morais e Ferreira:
– Vocês vão passar a noite com a gente ou vão retornar logo?
Morais respondeu:
– Acho melhor a gente ficar com vocês. Assim, damos uma mãozinha na arrumação das coisas. Tá de acordo, Antonio?
O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Então, está certo – retrucou Faustino. – Pedro, vamos arrumar as tendas para dormir em primeiro lugar. Amanhã cedo, a gente começa a aumentar a clareira, para guardar o resto das coisas.
Rapidamente, seguindo as ordens de Pedro, os homens armaram cinco grandes barracas de lona, fincando-as fixamente no solo úmido. Ficaram elas, as duas da frente, a uns dez metros da margem do igarapé, distância considerada segura por Faustino na hipótese de alguma eventual enchente. As outras três ficaram mais atrás, a uns cinco metros das duas primeiras.
Uma dessas barracas foi ocupada por Maria Teresa e Faustino, sendo a outra destinada a Morais, seu auxiliar Miranda e Antonio.
Maria Teresa começou a arrumar as coisas no interior de sua barraca. Faustino auxiliou-a a armar as duas redes de dormir, enquanto ela varria o chão de terra. As roupas de ambos ficaram guardadas dentro do baú em que vieram até ser providenciado melhor lugar para as mesmas. Foi colocada uma bacia no chão, para uma precária higiene íntima e dois pinicos junto às redes.
– Amanhã ou depois, quando a gente se acomodar melhor, vou ver se consigo ajeitar isso aqui dentro – disse Faustino. – Vou ver se te arranjo um lugar melhor para você guardar as roupas, estender uma corda para colocar alguma coisa pra secar. Hoje, ainda está tudo meio bagunçado, amanhã a gente vai ver se melhora.
– Tá certo, Faustino, amanhã a gente vê com calma.
– Vou ver também se providencio a construção de um lugar pra gente tomar banho e outro para ir no banheiro quando der dor de barriga – emendou Faustino, rindo. – Vou lá fora ver como os homens estão se virando, está bem? Você está precisando de mais alguma ajuda agora?
– Não, pode ir, eu me viro – retrucou ela.
Do lado de fora da barraca, Faustino viu que os homens estavam em frenética movimentação. Alguns deles, com seus longos facões, cortavam cipós, bambus e outras vegetações, aumentando assim rapidamente o tamanho da clareira. Outros fixavam os ferros de sustentação das outras barracas. Pedro providenciava a armação de três pequenas fogueiras entre as duas filas das tendas de lona.
Faustino perguntou a Ferreira:
– “Seu” Antonio, o senhor chegou a contatar o cacique Amurã, como eu lhe pedi?
– Contatei sim. Avisei que o senhor deveria estar aqui mais ou menos por essa época. Só não disse o dia certo, porque eu mesmo não sabia quando vocês chegariam a Parintins. Mas, deve estar aqui por perto. Ele gosta muito do senhor, sabia disso?
– Ele é muito meu amigo. Engraçado, é que eu salvei a vida dele uma vez e ele salvou a minha, pelo menos no início da doença, quando peguei a malária – retrucou Faustino.
– Como foi que o senhor salvou a vida dele? – perguntou Antonio, curioso.
– Bem, foi mordida de cobra. Um dia ele estava me ajudando juntamente com alguns da sua tribo na extração da borracha. Ele foi mordido por uma bicha daquelas venenosas e começou a gritar, sua perna a ficar roxa. Ainda bem que eu estava ali perto. Chupei todo o veneno antes que ele começasse a fazer efeito de verdade. Dei-lhe também um pouco do remédio que tinha levado comigo e ele se recuperou em dois dias. Também, o bicho é forte como um touro e precisava mais que uma cobra para derrubá-lo – relatou Faustino.
Fez uma pausa, acendendo o cigarro que acabara de enrolar. Prosseguiu:
– Quando caí doente com a malária, ele mandou buscar uma velha índia lá na aldeia dele e foi ela quem tratou de mim com suas ervas e poções até o Morais chegar com a “Filomena” e me levar para Belém. Se não fosse ela, eu certamente teria morrido.
– É aquele negócio, não é, “seu” Faustino? Aqui, nesse fim de mundo, uma mão lava a outra. Se a gente não contar uns com os outros, poucos sobreviveriam.
– Isso mesmo, “seu” Ferreira. Essa lição de solidariedade foi uma das principais coisas que a selva me ensinou.
A noite começava a cair, enchendo de mistério a atmosfera que cercava o local. Os pássaros silenciaram o seu canto, os macacos recolheram-se aos galhos das árvores, só o ruído dos grilos e outros insetos não identificados enchiam o ar.
Faustino, as botas e a roupa branca sujas de lama, recolheu-se ao interior de sua tenda. Maria Teresa, atrás de uma cortina feita com um lençol grande, fazia precariamente sua higiene pessoal, lavando as axilas e outras partes do corpo com a água da bacia.
As fogueiras, do lado de fora da barraca, iluminavam a noite escura, de um preto de breu.
Quando Maria Teresa acabou de se lavar, Faustino fez o mesmo. Tirou o chapéu, as botas, a camisa e lavou-se como podia. Se não tomou um banho completo, pelo menos tirou um pouco de suor do corpo.
– Amanhã, vou ver se providencio logo a construção do chuveiro e da latrina – disse para a mulher. – Estou sentindo o corpo todo engordurado.
– Eu também – retrucou Maria Teresa, enquanto acabava de vestir uma camisola de dormir. – Meu cabelo está que é poeira só, parece que passei uma camada de banha no corpo.
Recolheu-se à sua rede, cobrindo-a com um mosquiteiro de véu branco.
Faustino vestiu uma camisa limpa, recolocou o chapéu na cabeça.
– Vou lá fora ver como estão os homens, preparar as coisas para amanhã – disse. – Volto logo, pode dormir se quiser.
Saiu, procurou por Pedro, combinaram as providências a serem tomadas para o dia seguinte. Decidiram colocar um homem de guarda durante a madrugada, revezando-se em turnos de quatro horas. Não conheciam direito o lugar, não sabiam que perigos a noite lhes reservaria.
 Enfim, sua grande aventura, o sonho acalentado por vários anos, começava a tomar forma.
Acendeu outro cigarro, encheu antes os pulmões do ar fresco da noite úmida, deliciou-se com aquele cheiro gostoso de mato e com o ruído das águas do riacho em frente ao acampamento.
A luz bruxuleante das lamparinas acesas no interior das barracas, as vozes dos homens conversando alegremente, prontos para o trabalho do dia seguinte, compunham o cenário daquela primeira noite a ser passada na selva amazônica.
Faustino esfregou as mãos, num gesto de satisfação interior. Um largo sorriso abriu-se em sua boca, enquanto tirava outra baforada de seu cigarro.

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