quarta-feira, novembro 23, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 31



OS DESBRAVADORES

Capítulo 31

Calfilho




XXXI






Faustino estava certo.
Com o passar dos dias, ainda mais depois que as índias souberam que Maria Teresa estava grávida – a barriga já começava a aumentar – elas não a deixavam ficar sozinha um só segundo.
Queriam ajudá-la a tomar banho, traziam-lhe a comida na barraca, na qual entravam sem qualquer cerimônia, a qualquer hora, sem ao menos olhar para Faustino que dormia na outra rede. Ajudavam-na a se vestir, ofereciam-lhe poções que diziam iriam fazer bem ao bebê.
O café da manhã passou a ser servido às cinco da manhã.
As índias entravam na tenda de Faustino e Maria Teresa, rindo alegremente, levando até a rede da grávida um balaio de frutas, uma xícara de café, bolo de mandioca e o que mais Mário havia acabado de preparar.
Aquela passou a ser a hora de todos acordarem no acampamento.
Em pouco tempo, Maria Teresa e seu séquito de índias já conseguiam se comunicar razoavelmente. Com as mãos, com a boca, faziam-se compreender, como dissera Faustino.
Aqueles primeiros dias de trabalho foram sem descanso, numa corrida frenética para o preparo do terreno e o início da extração do látex. Todos se movimentavam sem parar, ninguém parava para um momento de descanso, cada qual preocupado em executar suas tarefas, compenetrados, com toda a atenção fixada naquilo que tinham que fazer.
Os toqueiros, com seus facões, serras e foices, foram abrindo picadas mato adentro, conhecidas na região dos seringais como “varadouros”. Antes, iam os mateiros, que eram aqueles encarregados de selecionar as melhores áreas, onde estavam as seringueiras mais produtivas. Só depois de fixadas essas áreas, é que os toqueiros entravam em ação.
Como o pessoal de Faustino era constituído, em sua maioria, de mateiros inexperientes, ele mesmo era um daqueles que desempenhava as funções de escolher as melhores áreas. Além dele, somente Pedro e Auã tinham alguma experiência no assunto.
Partiam os três bem cedo do acampamento, acompanhados de uns quatro ou cinco homens, em direções diferentes, na tentativa de descobrir as melhores áreas de seringueiras. Ali, a qualidade e a quantidade das árvores tinham que estar conjugadas com a maior proximidade do acampamento principal, com a “colocação”, como ele era chamado pelos seringueiros. A área tinha que ser boa, produtiva, mas não podia ficar longe do ponto de partida. Caso contrário, depois de uma jornada de trabalho, não haveria tempo hábil para o retorno. Teriam, então, que dormir na selva.
Alguns dos índios de Arumã acompanhavam, divididos em grupos, os homens chefiados por Faustino. Pedro e Auã chefiavam dois outros grupos, que seguiam direções diferentes. Os índios forneciam-lhes indicações e trilhas até os seringais.
Demarcadas as áreas, retornavam eles, cansados, suados, roupas sujas de lama, suor impregnado do cheiro de mato. Aí, no dia seguinte, bastava que os toqueiros seguissem as trilhas semi-abertas pelos mateiros. Com seus instrumentos mais pesados, iam abrindo o caminho mínimo necessário para a passagem dos homens e do material que seria utilizado na extração do látex: cacimbas, carrinhos de mão, cordas, etc... Aquela rotina de homens indo e vindo, falando pouco e trabalhando muito, movimentando-se sem parar, passou a ser o dia a dia do acampamento. Fogueira sempre acesa, uma comida no fogo baixo, as vozes das pessoas sussurrando baixo, a cena só mudava quando a noite começava a cair, quando os homens, exaustos, voltavam para o acampamento.
Faustino dava ordens expressas aos toqueiros para que desbastassem somente o necessário para a passagem dos seringueiros. Detestava destruir vegetação inutilmente, defendendo com veemência a preservação da natureza. Mesmo assim, aquele pessoal ignorante cortava mais árvores que o necessário, acendia fogueiras sem utilidade, apenas para cozinhar um peixe ou um pequeno animal abatido. E, assim, a imensa floresta verde ia pouco a pouco perdendo uma parcela de sua grandiosidade. Mordida pelas beiradas, pedacinho a pedacinho.
Depois de quatro dias de trabalho duro, as áreas de extração estavam demarcadas, as trilhas para alcançá-las devidamente abertas. Agora, era só tirar o ouro viscoso das árvores, transformá-lo nas pélas, depois vendê-las ao comprador já previamente contratado. Seria trabalho demorado, suado, mas a recompensa seria farta.
Pedro, que ficava sempre próximo ao acampamento, zelando pela segurança dos que ali permaneciam, entre eles Maria Teresa, mandou que os homens derrubassem umas três árvores maiores, as quais foram transformadas em pequenas canoas, as chamadas pirogas. Assim, Mário e duas índias que passaram a ajudá-lo, saíam cedo para pescar, retornando por volta das dez horas com vários peixes nas pirogas: surubins, tucunarés, um ou outro pirarucu, se tivesse êxito o “marisco”. Naquela região, pescaria era chamada de “marisco”.
Faustino ficava o dia inteiro praticamente fora do acampamento, supervisionando o trabalho nas seis áreas escolhidas como aquelas de melhores seringueiras. Em cada uma dessas áreas, com umas vinte árvores em média cada uma, ficavam de cinco a seis homens. Um balde ou uma rudimentar cacimba era amarrado na parte inferior da árvore e, acima deles, o seringueiro fazia os sulcos em forma de um “V”. Uns seis sulcos mais ou menos. A seiva começava a escorrer lentamente dentro do recipiente e, no final do dia, este estava cheio. O seringueiro, então, lá pelas cinco da tarde, recolhia os baldes cheios de látex, que eram enfileirados numa espécie de varal de madeira.  Colocando-o sobre os ombros, dividindo o peso, ele os transportava para o acampamento. Outros faziam o transporte em carrinhos de mão, dependendo da maior ou menor facilidade de locomoção até a “colocação”.
Lá, nos barracões armados nos fundos, as duas grandes tinas de ferro, chamados de buiões, já aguardavam o material colhido durante o dia. Na parte inferior das mesmas, duas enormes fogueiras iriam defumar o látex, transformando-o nas imensas bolas de quase quarenta quilos cada uma, as pélas. Estas ficavam armazenadas nos barracões até a chegada da gaiola de Morais, que as conduziria para Belém.
Esta, a rotina da extração da borracha. Coisa rudimentar, que empregava muitos homens, exigia muito trabalho braçal, mas que, mesmo assim, dava um enorme lucro aos seus exploradores.
Foi com sua extração que Manaus tornou-se uma das mais prósperas cidades brasileiras daquela época, logo seguida de Belém, que servia de porto exportador para a mercadoria. A capital amazonense foi a primeira a ter iluminação elétrica no Brasil, assim como o bonde a trafegar em suas ruas. Também já havia água encanada e rede de esgotos. O teatro Amazonas, jóia da arquitetura, quase todo construído com material importado, como mármore de Carrara e lustres de cristal europeu, tornou-se um símbolo do fausto e riqueza da região.
Pena que, com o contrabando das sementes da “Hevea brasiliensis” pela Inglaterra, o preço internacional da borracha começou a cair vertiginosamente. Lá, nas suas colônias da Ásia, o país inglês, utilizando métodos mais modernos, começou a produzir a borracha em maior quantidade e a preço consideravelmente mais baixo.
Começou aí, infelizmente, o declínio da fase áurea da borracha no Brasil e, em consequência, a das cidades que com ela se desenvolveram rapidamente.
Faustino queria aproveitar o final daquela fase áurea. Enquanto ainda era possível...

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