OS DESBRAVADORES
Capítulo 24
Calfilho
XXIV
A imensidão de terra que era o Brasil a cada dia
impressionava mais Maria Teresa. Já navegavam há vários dias e noites, até
haviam deixado de contar, e ainda não haviam saído do estado do Pará, onde
iniciaram a viagem em Belém.
A cada dia em que acordavam, Faustino ficava meditando
sobre a terra que tanto amava. Acendia seu cigarro de palha, ficava assistindo
a gaiola vencer lentamente as águas barrentas do rio-mar e não se cansava de
comentar com Maria Teresa aquela sensação de insignificância, de pequenez que
sentia ante a grandiosidade da natureza.
– Sei lá, Teresa – dizia ele, emocionado. – Isso tudo
aqui me fascina, me deixa refletir que não valemos nada. Se toda essa maravilha
existe, realmente deve haver alguém superior a todos nós, alguém que criou essa
beleza de lugar, só para nos mostrar que nosso orgulho, nossa vaidade, riqueza,
dinheiro, poder, nada disso tem valor. Aqui o homem tem que mostrar o que
realmente vale, sem o conforto da cidade grande, aqui onde o dinheiro e o poder
pouco significam, onde um simples mosquito pode levar à morte o mais poderoso
dos homens. Aqui se descobre quem na realidade tem tutano, aquele que luta
contra todas as adversidades, contra todos os perigos. Quem sobrevive é aquele
que realmente pode dizer que viveu. O resto é vida artificial, para mim sem
valor algum.
Ela, braços dados com ele, ouvia fascinada e cada vez
mais se convencia de que ele tinha razão. Quanta futilidade naquela vidinha sem
graça de Fortaleza, quanta falsidade, quanta aparência. Fuxicos, mexericos, fofocas,
comentários maldosos sobre a vida alheia. Nada de real, de autêntico, de
sincero.
Quando, antes de partirem de Fortaleza, sentia-se
receosa pelo que poderia encontrar na viagem, agora achava que já deveria tê-la
feito há mais tempo, se tivesse conhecido Faustino anteriormente. Não sentia
nem uma ponta de arrependimento, não tinha nada do que reclamar. A cada dia uma
nova surpresa, uma nova descoberta naquela selva que se agigantava cada vez
mais, à medida em que iam avançando rio acima.
Pararam dois dias depois em Óbidos, cidade também de
porte médio, que ainda pertencia ao estado do Pará.
Mais uma vez, as mesmas providências de rotina.
Reabastecimento de combustível e víveres perecíveis, aqueles que se
deterioravam facilmente.
À medida que se aproximavam do destino final, mesmo
Faustino, habitualmente calmo e controlado, não conseguia esconder a ansiedade.
Fazia as refeições rapidamente, quase engolia a comida, ávido por observar em
que trecho da viagem estavam, se ainda faltava muito para que chegassem. Queria
logo arregaçar as mangas, abrir caminho no mato, escolher as melhores
seringueiras, ver o leite escorrendo de seus sulcos, encher os baldes,
transformá-lo em bolas enormes de goma, as pélas do ouro viscoso.
Por isso, apressava Morais a cada parada da
“Filomena”, pedindo para partirem logo.
– Morais, carrega só o necessário. Estou doido pra
chegar logo, já não aguento mais essa expectativa. Também estou com um pouco de
medo de cair uma chuva daquelas fortes e a gente ser obrigado a parar. Até aqui
a gente deu sorte, mas e se ela nos abandonar?
– Tá certo, Faustino, tá certo – retrucava Morais bem
humorado.
Faustino sabia perfeitamente que se não fosse Morais
na condução da gaiola, dificilmente teriam chegado aonde chegaram. O amigo
conhecia como ninguém todos os caminhos daquela região, podia chegar ao seu
destino até de olhos fechados. Cada canal, cada igarapé, os atalhos no meio da
selva fechada, o desvio das pequenas ilhas no meio do trajeto. Mesmo à noite,
quando fazia questão de ficar no comando da embarcação, quando a única luz
existente era a do lampião na proa da “Filomena”, sabia como se desviar de
troncos de árvores que flutuavam pelo leito do rio, dos numerosos bancos de
areia quando se aproximavam das margens e, às vezes, até de algum jacaré
perdido em busca de comida. Eram mais de 20 anos subindo e descendo o Amazonas,
transportando várias expedições como aquela, principalmente na fase áurea da
extração da borracha, quando não tinha tempo nem para pernoitar em Belém entre
uma ou outra ida e vinda. Se conseguira dar à família aquele relativo conforto
que tinham na capital paraense, era tudo devido à exploração do ouro branco.
Por isso, Faustino sabia que ir mais rápido seria
impossível. Mesmo assim, não se cansava de apressar o amigo.
– Vamos, vamos logo, Morais – falava, em tom de
brincadeira. – Olha só o céu, cheio de nuvens escuras, as chuvas vêm chegando.
Morais ria, tirando baforadas do seu charuto:
– Você devia estar viajando naquela minha antiga
gaiola, aquela primeira que você pegou em 1909. Só ia chegar lá daqui a três
meses.
O rio-mar, entretanto, ia sendo vencido, pouco a
pouco.
O último porto no Pará foi Juruti. Chegaram numa manhã
de chuva, o céu cinzento, as águas caindo torrencialmente. Lonas foram
estendidas sobre todo o convés da “Filomena”, protegendo parcialmente seus
ocupantes da água. Só parcialmente, porque a força da água que caía do céu
entrava pelos lados, não só por cima, e mesmo com o esforço de todos tentando
colocar as lonas para que não ficassem molhados, isto não ocorria.
Até Faustino ficou feliz com a chegada em Juruti.
Desembarcaram rapidamente, correram até um hotel com as roupas ensopadas e
tomaram um delicioso banho de água quente. Mandaram secar suas roupas no ferro
de carvão, enquanto outras eram para eles buscadas na “Filomena”.
Já vestidos, desceram para o restaurante.
Faustino pediu uma cerveja e um suco de jenipapo para
Maria Teresa.
– Está vendo, Teresa, a gente estava com muita sorte,
sem chuva até agora – disse, despejando o suco no copo da mulher.
– É mesmo, bem que você disse – retrucou ela. – Depois
de tanto sol durante aquele tempo todo.
Morais aproximou-se da mesa. Já havia também trocado de roupa. Pegou uma
cadeira, colocou o encosto virado para a frente e sentou-se. Serviu-se de um
copo de cerveja.
– Viu, Faustino, como não adianta correr tanto? –
debochou. – Aqui na Amazônia a gente tem que obedecer à natureza, não pode
modificar suas regras.
Faustino olhou para ele, ar desconsolado:
– Tomara que essa chuva não dure muito. A gente vai se
atrasar e isso não é nada bom.
Ele sabia perfeitamente que com aquele tempo não
poderiam prosseguir viagem. As águas do Amazonas ficavam nervosas, quase
furiosas, como se um demônio surgisse de suas entranhas e impedisse que
qualquer embarcação, por maior que fosse, por ele navegasse. A correnteza
ficava incontrolável, arrastando tudo que via pela frente. Teriam que aguardar
pacientemente que a chuva cessasse.
Mas, ela continuou forte, inclemente, durante toda
aquela tarde. Depois de repousarem um pouco no quarto do acanhado hotel,
Faustino e Maria Teresa, sentados em espaçosas cadeiras de palha na varanda,
contemplavam a chuva que caía sem parar, alagando toda a rua de barro à sua
frente. Era a via principal da cidade, divisava-se o cais mais adiante, a “Filomena”
e outros barcos ali ancorados.
Faustino não conseguia esconder a impaciência.
Enrolava um cigarro após o outro, gesticulava, falava alto. Chamou Pedro, que
estava no bar do hotel com os demais homens.
– Pedro, vem cá, por favor.
O capataz logo apareceu na porta. Faustino ordenou:
– Manda o Raimundo e o João Paulo irem lá na gaiola
ver se tudo está bem amarrado.Estou com medo de que alguma coisa se solte com
esse tempo e vá atrasar a gente ainda mais.
– Tá tudo sob controle, patrão. O índio e o português
ficaram na gaiola, não quiseram vir a terra. Mandei eles ficar de olho em tudo.
– Porra, essa chuva que não para – praguejou Faustino,
baixinho.
– Não adianta, patrão, não adianta. A gente não pode
fazer nada mesmo – retrucou Pedro, também em voz baixa.
– É, você está certo. Volta lá pra dentro com os
homens. Pede ao garçom pra vir aqui, por favor.
Pediu uma cerveja e um suco para Maria Teresa. Ficou
em pé, andando de um lado para o outro, de vez em quando colocava a mão para
fora da varanda, para ver se a chuva diminuía de intensidade.
Ela disse:
– Senta aqui, Faustino. Não adianta nada você ficar
inquieto desse jeito. Parece até uma onça acuada – brincou. – A chuva não vai
parar só porque você quer.
Ele obedeceu à mulher. Sentou-se, engoliu um gole de cerveja.
– Alguma coisa está te preocupando, não é? – perguntou
ela. – Não é só a chuva, não é?
Ele pensou um instante antes de responder. Olhou
fixamente para a mulher e não conseguiu conter o riso.
– Só mesmo você, Teresa – disse, apertando-lhe
fortemente a mão esquerda. – Como é que você consegue ler meus pensamentos?
Ela também sorriu. Perguntou:
– Vai me contar o que é?
Novo silêncio. Finalmente, ele respondeu, ainda
apertando fortemente sua mão:
– Vou sim, você merece. É que eu não queria te
preocupar com os meus problemas.
– Que também são meus, você se esqueceu? – emendou
ela. – Afinal de contas, qual a maluca que teria coragem de te acompanhar nessa
aventura?
Ele voltou a rir. Fez uma outra pausa. Respondeu:
– Foi a conversa que tive com o gerente do banco, lá
em Santarém. Ele me disse que o preço da borracha está caindo vertiginosamente
e que quase não há mais compradores atualmente, depois do contrabando das
sementes pelos ingleses. Eu já tinha ouvido falar disso por alto, mas sempre
acreditei que ainda tinha espaço pra mim, até por causa da minha experiência.
Fez outra pausa. Continuou, depois de outro gole de
cerveja:
– Já imaginou se o pessoal que ficou de comprar a
minha produção roer a corda? Talvez seja preferível para eles perder o dinheiro
que me adiantaram para a expedição e comprar a borracha bem mais barata da
Ásia... O meu trato com eles foi todo de boca, como sempre fiz. Sempre
cumpriram a palavra deles e eu cumpri a minha. Não tem nada escrito, não posso
reclamar nada, a não ser dar um tiro neles...
Ela, mesmo preocupada com o que acabara de ouvir, não
pode deixar de rir com a parte final de seu relato.
– E você vai dar tiro em alguém, Faustino? Vê se te
enxerga, homem de Deus... – disse, sorriso nos lábios. – E o “bichinho”, quem
vai tomar conta dele com você na cadeia?
– É, tem o “bichinho” – disse ele, com ar pensativo. –
Bem, deixa ele nascer primeiro, depois a gente vê como as coisas vão ficar.
Colocou a mão na barriga da mulher, acariciando-lhe o
ventre.
– Ele já está te chutando, Teresa?
– Não, Faustino, deve ter só uns quatro meses agora.
Falavam baixinho, quase em sussurros de namorados.
A chuva caía forte, fora da varanda. Os grossos pingos
que escorriam das extremidades das telhas, quase num filete contínuo, abriam
pequenos buracos no chão de terra em frente.
A noite vinha caindo lentamente, o céu, já escuro por
causa do mau tempo, agora começava ficar negro como breu.
O “bichinho” repousava tranquilo na barriga de Maria
Teresa, alheio aos problemas que atormentavam seu pai.
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