segunda-feira, novembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 27



OS DESBRAVADORES

Capítulo 27

Calfilho







XXVII





Aqueles três últimos dias de viagem só fizeram aumentar a ansiedade de Faustino e de seus homens. Estavam doidos para começar a trabalhar, sentirem a seiva viscosa do látex escorrer-lhes pelas mãos.
Maria Teresa também estava curiosa para ver os trabalhos começarem. Aquilo tudo seria coisa nova para ela. Já se imaginava dormindo no interior de uma barraca, rede dependurada, chão de terra batida. E o banho, como faria para tomar banho? Seria desconfortável, não resta dúvida, mas o importante era que ela estava ali, ao lado de Faustino, apoiando-o naquele que seria o grande empreendimento de sua vida. Tinha certeza de que, apesar da gravidez, das condições precárias de higiene, alimentação, perigos da selva e tudo o mais, saberia enfrentar a situação com dignidade, cumprindo assim o seu dever de esposa. “Aquela que deve ficar sempre ao lado do marido, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nos bons e maus momentos da vida”, como dissera o padre Eustáquio quando celebrou o casamento dos dois.
Os homens comandados por Pedro, tão irritados e nervosos durante a viagem de navio, agora pareciam alegres, animados. Brincavam entre eles, cantavam, sentindo chegar a hora do trabalho duro, àquilo a que estavam acostumados, eles que ficaram praticamente sem nada fazer durante toda a viagem até ali.
Faustino e Morais conversavam junto ao leme da “Filomena”. Antonio Ferreira juntou-se a eles.
– Não vejo a hora de chegar, Morais. Foi muita água que enfrentamos, primeiro a salgada, agora a doce. Já perdi até a noção do tempo, não sei mais há quantos dias estamos viajando – comentou Faustino.
– Já estamos chegando, “seu” Faustino – disse Antonio. – Acho que hoje à tarde estamos lá.
Realmente, se Antonio não tivesse vindo com eles, teria sido difícil encontrar o local exato da gleba de terras que Faustino arrendara. Mesmo Morais, acostumado a subir e descer o Amazonas, acabaria se perdendo naquele emaranhado de pequenos igarapés, de filetes d’água nos quais bravamente a “Filomena” ousava ingressar. Onde, por vezes, os homens tinham que cortar imensos cipós para que a gaiola pudesse prosseguir seu curso. Antonio permaneceu durante aqueles dois dias de viagem ao lado de Morais, orientando-o sobre o caminho a seguir, guiando-o por invisíveis marcos que só ele conseguia divisar naquela imensidão de água, de mata, de vegetação terrestre e aquática abundantes.
A paisagem realmente era de deixar qualquer um de boca aberta, sem saber o que dizer. Enormes vitórias-régias atravessavam o caminho da “Filomena”, árvores gigantescas nas margens dos riachos, mata cerrada dos dois lados da embarcação, o alvoroço do canto dos pássaros e dos macacos pulando de galho em galho nas árvores, como se participassem de uma interminável sinfonia da qual só eles conheciam a partitura. Quase não se via o azul do céu, nem o amarelo do sol, de tão densa a vegetação sobre eles.
Aquele já era o terceiro dia de viagem desde que deixaram Parintins. Faustino já não se lembrava mais em quantos igarapés entraram, quais os caminhos por que passaram, mesmo ele que se gabava de ter excelente memória, de saber guardar na cabeça um lugar e seus detalhes desde a primeira vez que o via.
Ali, entretanto, tudo era muito grande, tão imenso, tão fantástico, que ele se sentia diminuído, pequeno, quase um grão de areia perdido na grandiosidade da selva. Procurou rabiscar um mapa do caminho trilhado, para utilizar numa emergência qualquer, caso tivesse de sair dali correndo por qualquer circunstância imprevista. Pensou na mulher no momento da criança nascer, num possível ataque de índios hostis ou de uma picada de cobra, talvez um acidente qualquer. O mapa que fez, entretanto, era apenas um arremedo da realidade, parecendo, mas não sendo o caminho verdadeiro por eles percorrido. Ali, em cada entroncamento, se a direita fosse tomada em vez da esquerda, poder-se-ia acabar a mais de 30 ou 40 kms. do local pretendido.
Morais brincou com Antonio:
– É, meu amigo, quando eu tiver que voltar aqui, você vai ter que vir comigo. Realmente, por essas bandas estou perdido.
– E o pior é que a geografia daqui muda de vez em quando. Basta uma chuva mais forte, o volume das águas do Amazonas subir mais um pouco, e uma ilha é engolida, um novo igarapé surge mata adentro. Os mapas aqui não adiantam de muita coisa. Ainda bem que eu coloquei alguns pequenos marcos aqui e ali, numa árvore, numa entrada de um riacho e é por eles que eu me guio – retrucou Antonio.
– Mas que marcos são esses? – indagou Morais. – Não tou vendo nada.
Antonio sorriu.
– Mas, eu sei onde estão, Morais. Se estivessem muito visíveis, essa terra já estava invadida e quando eu voltasse aqui, já teria gente tomado posse dela. O que não falta aqui é um monte de aventureiros, um querendo passar a perna no outro. O contrabando aqui é uma praga, principalmente de madeira de lei. Devastam tudo, em pouco tempo a Amazônia vai virar um enorme deserto. A sorte é que tem muita água nessa região, mas com o desmatamento até os rios acabam secando – respondeu.
– Bom, se você sabe o caminho é o que importa. Eu nunca me aventurei por essas bandas, navego mais é pelo Amazonas mesmo – rebateu Morais.
A “Filomena” agora tinha que navegar mais vagarosamente. Driblava os cipoais e a vegetação dos riachos, que podiam embaraçar-lhe a hélice. Pedro na frente, os homens de Faustino viajavam na proa da embarcação, grandes facões nas mãos, olhos atentos na água adiante deles, prontos para cortar um cipó ou uma planta que pudesse impedir o curso da gaiola.
Faustino fazia um comentário aqui, outro ali, apontando com a mão para um trecho qualquer do caminho, mostrando um tucano, uma arara, um mico gritando no alto de uma árvore. Estava novamente em seu ambiente, o sangue voltava a pulsar-lhe mais forte nas veias, desfrutava daquela sensação gostosa de cheiro de mato, cantar de pássaros, rumorejar do rio, coisas que tanto lhe faziam bem.
Na popa da “Filomena”, Maria Teresa conversava com seus animais, dando-lhes um pedaço de banana ou de uma outra fruta qualquer.
Lá na frente, os homens começavam a gritar e a rir ruidosamente.
– Pega, Raimundo, pega ela – gritavam alguns.
– Pega, se não ela vai fugir – diziam outros.
– Peguei, já peguei – gritou Raimundo.
Puxou para dentro da gaiola, espetada na ponta de seu enorme facão, uma cobra de uns dois metros de comprimento, que ainda se contorcia nos estertores da morte. O facão atravessava-lhe o corpo, a boca aberta, dois enormes dentes prontos para morder alguém.
Pedro gritou:
– Cuidado, Raimundo, ela pode te ferrar. Se for venenosa, pode dar adeus.
Morais, com a roda do leme nas mãos, comentou com Antonio e Faustino:
– Tá parecendo uma sucuri...
– Não sei, tá muito gorda, pode ser uma jiboia... disse Faustino.
– É, tá parecendo mais uma jiboia, aquelas bichonas que engolem um boi inteiro – comentou Antonio.
Faustino gritou para os homens:
– Cuidado com isso aí, vocês. Não vão me arranjar ideia dela morder um de vocês. Por aqui não tem hospital, não.
Os homens continuavam pulando e brincando em volta da cobra. Pareciam crianças encantadas com um brinquedo novo.
Raimundo espetou o facão no chão da gaiola, com a cobra enfiada nele. Venâncio elevou o seu facão no ar e o desceu com violência, cortando a cabeça do réptil. Os homens continuavam rindo e pulando em volta do bicho, que era cortado em sucessivas fatias. Mesmo assim, ainda se contorcia, como se não quisesse despedir da vida. Raimundo gritou para o cozinheiro:
– Mário, olhe aqui a nossa carne para o almoço. Pode colocar na panela.
Pegaram uma caçarola grande e ali depositaram os vários pedaços da cobra, afinal morta de vez.
Mário disse, pegando a panela:
– E eu sei lá como se prepara isso? Nunca fiz carne de cobra...
– Tira o couro e faz ela ensopada – disse Pedro. – Fica muito boa.
No almoço, pela primeira vez na vida, Maria Teresa comeu um gostoso ensopado de carne de cobra, acompanhado de um pirão de farinha de mandioca. Mário, com a habilidade costumeira, temperou a comida de tal forma, que ela nem parecia o que realmente era.

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