sábado, outubro 27, 2007

MANEQUINHO DO LICEU...

MANEQUINHO DO LICEU


CALF



Conheci-o em 1958.
Eu, no segundo científico. Ele, no quarto ginasial.
Timidamente, aproximou-se do pessoal do Grêmio, interessado em participar de suas atividades, principalmente as esportivas.
Cabelo castanho-claro cacheado num topete caído na testa, tipo Elvis Presley, um dos seus ídolos. Vivia cantarolando uma musiquinha ou outra do então “rei do rock”.
Seu outro grande ídolo era Almir, o “Pernambuquinho”, então estrela máxima do Vasco, supercampeão de 1958.
O Brasil, naquele ano, respirava futebol por todos os poros, após a inesquecível campanha da Suécia, que nos deu o primeiro título de campeões do mundo.
E, para Luiz Carlos, Almir só não participara daquela seleção porque estava contundido. O topete que usava também era uma homenagem ao craque vascaíno, que ostentava um semelhante caído na testa.
A propósito: seu nome verdadeiro era Luiz Carlos, mas todo o mundo o chamava carinhosamente pelo apelido: Maneco ou Manequinho.
Enturmado no Grêmio, passou a participar de suas atividades. Ia ao colégio todas as tardes, depois das aulas do turno da manhã e de uma rápida passada em casa para um almoço ligeiro, para ajudar na confecção das balizas de futebol de salão. Lixou a madeira dos postes e travessão, pintou-os de amarelo, a cor escolhida após votação entre os liceístas.
No dia de inauguração, uma festa num sábado á tarde.
O severo diretor não queria permitir a abertura do colégio aos sábados. Foi convencido a muito custo pelos alunos do Grêmio que se comprometeram a levar um professor de Educação Física para ficar responsável pela preservação do colégio.
Apesar de ser uma festa do Grêmio, até então freqüentado apenas pelos rapazes, várias meninas compareceram. Inclusive atraídas pela promessa de formação de uma equipe de vôlei feminino. Mas, a maioria delas acompanhava um ou outro craque do então embrionário time de futebol de salão do Liceu. Era a namorada do Irapuam, do Telúrio, do Regê, e Verinha, que então flertava com Manequinho. Além de outros casaizinhos de jovens alunos que nada tinham a ver com o futebol, mas que começavam a ter a oportunidade de curtir um pouco mais o seu colégio, fora dos dias de aula.
Realmente, foi uma festa. Recebemos o Plínio Leite, para uma partida amistosa contra os nossos dois times de futebol de salão.
O segundo, com Irapuam no gol, Carrano de parado, Eduardo e Carlinhos nas alas e Manequinho de pivô. Ganhamos de 5 X 3. Três gols de Maneco, um de Eduardo, outro de Carlinhos.
O primeiro time, com Maia no gol, Paulinho Massa de parado, Antonio Matheus e Sérgio Frigideira de alas e Ronaldo de pivô. Liceu 10 X 2.
Depois, quase todos os sábados, já agora com a aquiescência do nosso diretor (o professor Aldo só tinha fama de mau, por dentro era possuidor de um enorme coração), realizávamos festivais vespertinos, com partidas de futebol de salão, vôlei masculino e feminino e basquete.
O ano letivo terminou e, mesmo nas férias de início de ano, conseguimos reunir aqueles que não viajaram para alguns sábados à tarde no Liceu. Sempre com a presença do professor Alber, de Educação Física, e de Azer Ribeiro, que abria os vestiários para o pessoal.
Voltamos às aulas em março de 1959, meu último ano de científico e que também deveria ser o derradeiro no Liceu.
As atividades do Grêmio se intensificaram. Além dos esportes, continuamos com a “Hora do Grêmio”, nos recreios dos turnos da manhã e tarde. As excursões, culturais e esportivas: Quinta da Boa Vista, Volta Redonda (para visita à Cia. Siderúrgica), Angra dos Reis ( Colégio Naval), Marambaia e Cachoeiro do Itapemirim, entre outras.
Na época das festas juninas, organizamos quermesses e arraiais no pátio, com danças de quadrilha e outras típicas (o quentão era vendido escondido dos professores). Muita gente comparecia, já agora com as meninas em número maior, a maioria delas acompanhadas das mães severas, zelando pelo bom nome das filhas.
Manequinho participava de todos aqueles acontecimentos com intensidade. Dos torneios e jogos de futebol de salão, das festas e bailes, das excursões.
Adorava as brincadeiras que o pessoal fazia uns com os outros. Mesmo quando era ele a vítima. Uma vez, no início de 59, fizemos uma excursão ao Colégio Naval, em Angra dos Reis. Levamos os dois times de futebol de salão, vôlei, basquete, futebol de campo, até water-polo, mesmo sem nunca termos jogado esse esporte. Na ida para o Colégio, pegamos uma lancha da Marinha, um “aviso”, como era conhecida dos militares. Alguns dos alunos colocaram suas mochilas no chão e deitaram sobre elas, curtindo o maravilhoso sol daquela manhã de setembro.
Manequinho começou a cochilar. Eu e outros desmiolados lambuzamos seu cabelo com pasta de dente. Ele não acordava. As meninas que foram com a gente riam à vontade. Quando ele acordou, todo mundo fingiu que nada tinha acontecido. Bebeu uma coca, conversou animadamente, enquanto os risinhos escondidos eram dados às suas costas.
Em determinado momento, despreocupadamente, pediu-me o pente:
– Carlinhos, me empresta teu pente. Meu cabelo deve estar um gracinha...
Com cara de cínico, contendo o riso, passei-lhe o pente. Quando ele o passou pelos cabelos, tentando arrumar seu topete, olhou desolado para o mesmo, todo sujo de pasta de dente. Todo mundo ria à vontade, inclusive nosso professor de Educação Física.
Ele olhou para o pente todo sujo, depois para o pessoal que continuava a rir. Esboçou um sorriso. Somente disse, em voz baixa:
– Sacanagem de vocês. Pode deixar que eu vou à forra...
Nada mais que isso. Nenhuma demonstração de raiva,. de irritação. À noite, já no Colégio, não se lembrava de mais nada. Ria e brincava alegremente, como se nada tivesse acontecido.
Continuava sua idolatria por Elvis e Almir. Naquela época, foi lançado um LP de Presley, com as músicas de seu último filme, ainda em preto e branco: “King Creole”. Manequinho vivia assoviando e cantando pelos corredores uma das músicas do LP, intitulada “Young Dreams”...
Seu porta-caderno (naquele tempo era o que os alunos costumavam usar, um porta-caderno de folhas soltas) estava repleto de fotos dos seus dois ídolos.
Era a alegria em pessoa. Sempre brincando, rindo, extravasando bom-humor, amor pela vida.
Certa vez, no final de 1959, quando a cumeeira da casa que meu pai estava construindo no Saco de São Francisco ficou pronta, chamei-o para me acompanhar para tomar um chope lá na obra. Meu pai havia comprado dois barris para os operários. Eu esperava ainda encontrar alguma sobra de cerveja por lá. Era um final de tarde sábado. Deviam ser quatro e meia, cinco horas. Pegamos o trolley nas Barcas e em Icaraí, Verinha subiu. Os dois já não namoravam mais, mas continuavam bons amigos. Convidei-a também para nos acompanhar. Ela topou.
Chegamos na obra, ali na General Rondon, os operários já estavam de porre. Eu conhecia todos eles, pois nos últimos meses acompanhava de perto o andamento da construção. Sentamo-nos em banquinhos improvisados com tijolos e um dos pedreiros, o chefe deles, Joaquim, veio nos trazer os copos de chope. Ficamos a uma certa distância deles, que, respeitosamente, passaram a conversar em voz baixa, apesar de, vez em quando, lançarem um olhar com o rabo de olho para aquela morena bonita que nos acompanhava. Mas, permaneceram onde estavam, não falaram palavrões e por volta das seis horas, despediram-se e foram embora.
Joaquim ainda disse, virando-se para mim:
– “Seu” Carlinhos, ainda tem quase meio barril de chope sobrando. Podem acabar com ele, senão vai ficar choco.
– OK. Joaquim – respondi. – Obrigado e até segunda.
E, ficamos os três ali, iluminados apenas por uma luz de velas que achamos num canto da obra, até às nove da noite, acabando com o resto do barril e jogando conversa fora.
O tempo passou, saí do Liceu, entrei para a Faculdade. Manequinho ali permaneceu até o fim de 1961, quando terminou o científico.
Apesar de distante do dia-a-dia do colégio, continuava mantendo contato com os amigos mais íntimos. Manequinho era um deles. Ainda jogávamos uma partida de futebol de vez em quando, tomávamos um chope na Gruta, íamos a festas ou bailes de Carnaval no Canto do Rio, Gragoatá ou Regatas.
No início de 1962 ele foi servir o Exército, alistando-se no NPOR, lá no Terceiro Regimento de Infantaria, na rua Dr. March, na Venda da Cruz.
Já não o via há uns dois meses. No final de março, Sérgio, um ex-colega de Liceu, me encontrou na rua, e, com a fisionomia triste, me disse:
– Porra, Carlinhos, acabei de saber ontem...
Olhei para ele, ar de surpresa:
– O que foi, Sérgio?
Ele, procurando as palavras com cuidado, despejou no meu rosto:
– Manequinho está com câncer. Leucemia...
Levei um susto:
– O quê? – gritei na Amaral Peixoto, as pessoas olhando para mim.
– Isso mesmo, leucemia. Soube ontem pela mãe dele – retrucou João.
Fiquei um instante sem saber o que dizer. Passados alguns segundos daquele silêncio idiota, consegui falar:
– Meu Deus, Sérgio, isso é verdade mesmo? Eu falei com ele há pouco tempo atrás, jogamos uma pelada na praia, ele estava tão bem, esbanjando saúde...
Sérgio quase não conseguia conter as lágrimas.
– É verdade, sim. Está internado no Hospital Central do Exército, lá no Rio.
Despedi-me dele ainda atordoado, sem saber o que fazer. Chegando em casa, telefonei para outros colegas, que me confirmaram a notícia.


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Num domingo do início de abril, eu, João e Verinha pegamos o bonde no Rio e fomos até a Triagem, onde ficava o HCE.
Ele estava deitado numa cama, sua mãe ao lado.
Sorriu de alegria quando nos viu. Eu e João o abraçamos, Verinha o beijou no rosto. Conversou conosco por mais de meia hora, brincando muito, perguntando sobre o resultado do jogo do Vasco, se Almir tinha jogado bem. Estava apenas um pouco abatido, com aquele avental de hospital cobrindo-lhe o corpo. Mas não emagrecera, sua fisionomia era a mesma alegre de sempre.
Despedimo-nos dele, prometendo voltar no próximo domingo, dia de visita.
Do lado de fora do quarto, sua mãe, tentando manter o controle, não conseguiu esconder as lágrimas. Ainda perguntei:
– Qual é a gravidade? Ele vai se recuperar?
Ela, agora chorando copiosamente:
– Não... não... ele vai morrer... ele vai morrer...



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Na quarta-feira seguinte, 12 de abril, ouço tocar a campainha da casa. Havíamos nos mudado para São Francisco desde maio de 1961.
Minha mãe me chamou no quarto.
– É pra você. Um rapaz e uma moça.
Levantei-me da cama, saí do quarto e olhei pelo vidro da janela. No portão estavam João e Verinha.
Mandei-os entrar, falei que sentassem no balanço de ferro que havia na varanda.
– Péra aí que vou escovar os dentes – gritei.
Fui até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, coloquei um short e uma camisa.
Abri a porta da sala, descendo o degrau da varanda. Os dois estavam com os olhos cheios d’água.
Nem precisei perguntar. Verinha, soluçando, disse:
– Morreu, Carlinhos, morreu...
Dei um abraço nos dois e ficamos em silêncio, sem encontrar as palavras que exprimissem nossa dor...



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Eu já havia tido contato com a morte antes...
Quando meu avô morreu, em 1954, estava no segundo ano ginasial do Liceu, no turno da tarde. Era a hora do recreio. De repente, vejo meu pai e Da. Coralina, os dois em pé, junto àquela escadinha que dá acesso ao pátio. Estranhei, a princípio, mas logo caí em mim.
Meu avô materno já estava doente há vários meses, fora operado de um câncer no estômago, os médicos abriram e nem mexeram, dada a gravidade do caso. Meu pai, que era médico, assistira à operação que foi lá em São Paulo. Nos últimos dias, estava internado no Hospital Santa Cruz, da Beneficência Portuguesa. A morte era questão de dias. Por isso, apesar do choque, chorei o que devia chorar, já estava preparado para a notícia.
Quando cheguei perto do meu pai e da inspetora, ele apenas disse:
– Seu avô faleceu. Pegue seu material e vamos embora.
Acompanhei velório, enterro com relativa tranqüilidade. Era inevitável, a gente esperava...
Depois, soube da morte de alguns colegas do Liceu, durante o ginasial e o científico: Jorge Chocolate, Benedito, Noel, Terezinha, que a gente apelidou de Diacuí, por ser ela descendente de índios. Também alguns professores: Amaro, Vieira, Padre Carneiro, Dona Estefania. Mortes tristes, mas de pessoas um pouco distantes do nosso cotidiano.
Com Manequinho foi diferente. Ele era parte da gente, convivia o dia-a-dia com a nossa turma, partilhava das nossas alegrias e tristezas. Era como se nos tivessem amputado uma parte do nosso corpo...



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Ele parecia sorrir dentro do caixão. O topete caído na testa estava impecavelmente arrumado. Vestido com a farda de aspirante do NPOR, verde-oliva reluzente, tinha nos lábios aquele sorriso maroto de menino alegre e brincalhão que nunca desaparecia de seu rosto. As bandeiras do Grêmio, do Liceu, da FESN e do Vasco estavam ao lado do caixão.
A salinha da casa da Conselheiro Paulino, lá no bairro de Fátima, onde tantas vezes conversei com ele, estava cheia de gente. Todos chorando, não conseguindo conter as lágrimas por aquela perda que não tinha dimensão...
Só faltava estar tocando ao fundo uma balada de Elvis e Oduvaldo Cozzi narrando um gol de Almir Pernambuquinho...




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Quarenta e cinco anos depois da sua morte, você deve estar dando um sorriso de satisfação ao saber que tinha tantos amigos, ao constatar a falta que você faz para nós...








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sábado, outubro 13, 2007

O MAGISTRADO...

O MAGISTRADO

CALF



Era juiz no interior do Estado.
Tinha 56 anos, recusara por várias vezes a promoção para a Capital. Era, há muitos anos, o primeiro na lista de antigüidade, já poderia ser desembargador há muito tempo.
Preferiu ficar em Silvermado, comarca pequena, vida calma, tranqüila e metódica. Ali já estava por mais de 22 anos, sua primeira e única lotação desde que fora promovido a juiz titular.
Homem de rígidos princípios morais e éticos chegava diariamente ao Fórum às onze horas, início do expediente judiciário, conforme constava do Código de Organização da Justiça Estadual. Dali saía exatamente às 5 da tarde, como também determinava o referido Código. Tivesse ou não mais trabalho a fazer (exceto nos julgamentos prolongados do Tribunal do Júri). A população da cidade costumava dizer que os relógios das pessoas eram acertados pela "hora em que o Dr. Mario entra e sai do Fórum".
Vestia-se formalmente, com extrema sobriedade... Terno escuro (cinza ou preto), sempre bem passado colete, gravata discreta e um indefectível relógio, que trazia no bolsinho dianteiro da calça, preso a uma corrente de ouro.
Era casado com Maria há 32 anos, mulher de educação tradicional, feita sob medida para ele... Mario e Maria...
Residiam numa casa bonita, bem no centro da pequena cidade, jardim cheio de bem cuidadas roseiras e outras flores, dois andares, cômodos espaçosos, bem claros e ventilados...
Não tinham filhos (porque assim o decidiram).
Mas, gostavam sinceramente um do outro, passando reciprocamente uma atmosfera de carinho e compreensão pouco vista em outros casais. Se já não se amavam loucamente, com a paixão própria da juventude que já se perdera no tempo, respeitavam-se e se derramavam em atenções mútuas. Espontaneamente, sem afetação, quer estivessem sozinhos ou na presença de estranhos.
Dormiam em quartos separados, no segundo andar ("para preservar a privacidade de cada um").
Mas, religiosamente, a cada quinze dias, Mario ia ao quarto de Maria, onde mantinham conjunção carnal, dever sagrado entre um casal unido pelo matrimônio.
Antes, Mario preparava-se para todo o ritual que antecedia o ato sexual. Tomava um longo banho, perfumava-se discretamente, passava álcool nas mãos com cuidado... Maria, também, sabedora de que era chegado o dia, preparava-se com esmero para receber o marido, colocando um belo roupão cor-de-rosa e soltando os longos cabelos já começando a ficar grisalhos, normalmente presos no alto da cabeça.
Carnaval de 1976.
Mario começou a assistir o desfile das escolas de samba na televisão, na sala da casa, no primeiro andar.
Maria, em seu quarto, após o demorado banho, já vestindo o roupão cor-de-rosa, esperava pelo marido. Era o dia...
Às 9 da noite em ponto, Mario subiu.
A porta do quarto da mulher estava apenas encostada, como costumava acontecer a cada quinze dias (marcados no calendário dependurado na cozinha).
Mario entrou, tirou o pijama, abriu o roupão da mulher com delicadeza e, sem dizerem qualquer palavra, consumaram o ato sexual. "Papai e mamãe", é claro.
Após a satisfação da função biológica, Mario torna a vestir o pijama, dizendo para Maria:
- Até amanhã, Maria, durma bem.
Ela, ainda um pouco ofegante, respondeu:
- Até amanhã. Durma bem você também.
Após Mario sair do quarto, Maria levantou-se, tomou uma rápida chuveirada, trancou a porta e deitou-se outra vez, logo caindo no sono (como habitualmente fazia).
Mario foi até seu quarto, tomou outro banho, vestiu um outro pijama e, sem sono, decidiu descer para continuar assistindo o desfile das escolas.
Ligou a televisão, sentou-se no confortável sofá, pegou um refrigerante e biscoitos.
Desfilou o Salgueiro, depois a Mangueira, veio a Beija-Flor...
Mulatas exuberantes, seios à mostra, praticamente nuas, uma minúscula tanguinha, fingindo cobrir-lhes as partes íntimas, cabelinhos enrolados aparecendo na região pubiana, cheiro de pecado no ar, parecendo querer sair da tela de 20 polegadas...
Mario foi ficando excitado, o pênis começou a enrijecer, o pijama foi ficando molhado por um líquido viscoso saído ninguém sabe de onde.
Não conseguindo conter o desejo que o dominava, incontrolável, sobe as escadas e, voz suplicante, murmura, batendo na porta do quarto de Maria:
- Maria... Maria...
A mulher desperta do sono recém-iniciado. Ainda meio sonolenta, voz arrastada, reconhece a voz do marido. Pergunta, um pouco preocupada:
- Sim, Mario. O que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Ele, gaguejando, voz meio sem graça, responde, perguntando:
- Maria, você se incomodaria... se incomodaria... de me adiantar uma quinzena?
A mulher pula da cama, e já sem qualquer peça de roupa no corpo, abre prazerosamente a porta do quarto...
Após a noite sem limites que tiveram (ela chegou a ficar de quatro para a penetração por trás), a primeira em tantos anos de vida em comum, na manhã seguinte, o relógio da igreja matriz da cidade, pela primeira vez, deu onze horas antes que o Dr. Mario chegasse ao Fórum...


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quarta-feira, outubro 10, 2007

NAMORO NO LICEU...


CALF





Verinha olhou para o relógio.
Faltavam apenas dois minutos para tocar a sirene.
Não poderia esperar mais, tinha que ir para a sala. “Ele não chegava, porra” , praguejou mentalmente.
Seu coração disparava, não conseguia esconder a ansiedade estampada em seus olhos. Silmara, sua colega de carteira desde o primeiro ano do ginásio, chegou perto dela. Puxou-a pelo braço, dizendo:
– Vamos, ele deve ter se atrasado, ou não tem a primeira aula. Por isso se atrasou.
A sirene tocou, convocando os alunos para mais um dia de aulas. Sete e quinze da manhã, em ponto.
O pátio começou a se esvaziar, os alunos das várias séries do turno da manhã procuravam suas salas,
Verinha, já no corredor, nervosa, ainda deu um último olhar para trás, em busca de Rogério. O uniforme azul e branco do Liceu cintilava em seu corpo, limpinho, engomado. como sua mãe gostava que ela fosse para o colégio todas as manhãs.
Não conseguia se concentrar na aula. A professora de história falava sobre a vida de Joana D’Arc, mas seu pensamento passeava por aquelas tardes que ela e Rogério, de mãos dadas, caminhavam calmamente pela calçada da Praia de São Francisco.
Aquela era a fase mais deliciosa da sua vida.
Aproveitava cada minuto, cada segundo, não deixava nada escapar-lhe das mãos. Curtia o seu Liceu, era boa aluna, diretora do Grêmio, fora, a pedido de Carlinhos, quem redigira o seu primeiro estatuto. Adorava passar as manhãs, quando não tinha aula, naquela salinha apertada do Grêmio, lá no fundo do corredor, junto à escada que dava para aquela ruazinha atrás do Liceu.
A turma, ali, era muito gostosa de estar junto. Carlinhos, Josa, Irapuam, Carrano, Joãozinho, Silvinho e alguns outros que ali apareciam de vez em quando.
De menina, só ela.
Independente, resoluta, não tinha satisfações a dar de sua vida. Por isso, era a Verinha do Saco (de São Francisco). Gostava de fazer o que queria, ajudar os meninos do Grêmio na confecção de carteirinhas, programação de esportes, excursões, etc... Pouco se importava com que os outros diziam.
“Verinha só anda com aquele pessoal do Grêmio, gente que não gosta de estudar, que só pensa em festas, beber cuba-libre e hi-fi”.
“Dali, não vai sair ninguém que se aproveite, ninguém vai se formar, vão ficar por aí parasitando”, era o que os outros alunos e até professores comentavam.
Era apaixonada por Rogério, seu deus encantado. Moreno, alto, estudava numa série antes da dela.
Apaixonou-se à primeira vista.
Foi numa parada de Sete de Setembro.
O Liceu, impecável, uniforme azul e branco, fazia o aquecimento da bateria no Jardim São João, perto da Catedral de Niterói.
A bateria, comandada por Azer, fazia rufar os tambores. Bumbo, surdos, caixas e taróis repicavam sob o comando do apito do velho zelador, em estado de graça no seu uniforme de gala, calça azul marinho, camisa branca de mangas compridas, o reluzente LNP bordado no bolso esquerdo.
“LICEU, CAMINHEMOS A CANTAR...” – os alunos ensaiavam, cantando em voz baixa o hino do colégio...
Verinha, no auge dos seus dezesseis anos, era a porta bandeira do colégio. Orgulhosa, vestindo saia azul (era a única que tinha a saia acima dos joelhos) e blusa branca, o escudo do Liceu no ombro esquerdo, a gravata azul frouxa no pescoço, agitava nas mãos a bandeira grande do colégio, só usada em ocasiões especiais. Enorme, azul escuro, com a inscrição LNP em letras brancas em losango, no meio.
“LICEU, PATRIMÔNIO A RESGUARDAR...”, continuavam os alunos a cantar baixinho, aquecendo as vozes para o desfile.
Rogério, um menino de quinze anos, ficou encantado com a coreografia de Verinha, que fazia girar a bandeira do colégio em volteios graciosos, cheios de graça.
Aproximou-se dela , timidamente. Disse:
– Puxa, tá muito bonita essa bandeira. Onde você aprendeu a fazer tudo isso, fazer ela rodar assim?
Ela, rainha do Grêmio, olhou para ele pela primeira vez. Olho no olho, encantou-se pelo rapaz. Parecia com Elvis Presley, seu ídolo máximo. Ainda tentou manter sua posição de veterana, estrela da bateria:
– Gostou?
Ele olhava para ela, extasiado, ar de encantado, sem nada dizer.
– De que série você é? – ela perguntou.
– Quarta. Do ginásio – conseguiu ele responder, ainda sem tirar os olhos dela, admirando suas evoluções com a bandeira.
Amor à primeira vista.
Começaram a namorar, ele ia todas as terças, quintas, sábados e domingos a São Francisco, àquela época um bairro distante e esquecido de Niterói. Não havia água encanada, esgoto, calçamento só na Quintino Bocaiúva, a rua da praia. Ele, para chegar lá, tinha que pegar o trolley 5, dirigido por Roberto, um negão forte, que conhecia quase todos os ainda poucos moradores do bairro.
Verinha morava na Tapuias, na primeira quadra, num dos poucos edifícios de quatro andares que ali existiam.
O namoro era conhecido de todo Liceu. Nos intervalos de aula, no recreio, Rogério e Verinha passeavam de mãos dadas pelos corredores, pela pista de terra, quadra de basquete, dividiam uma merenda num dos bancos de cimento do enorme pátio coberto de telhas, trocavam um beijo escondido junto ao coqueiro da quadra de vôlei.
Sim, porque o Liceu tinha tudo isso naquela época: quadras de vôlei e basquete, campo de futebol, pista de atletismo, um enorme pátio para o passeio dos alunos. “Hora do Grêmio” no alto-falante no recreio, tocando músicas dos The Platters, Elvis, Little Richard...
Só não curtia o colégio quem não queria. Ele tinha tudo a nos oferecer.
A sirene tocou, encerrando a aula de História. A professora saiu, alguns alunos e alunas foram ao banheiro fumar um cigarro escondido.
Dez minutos depois, o som estridente outra vez. Ia começar outra aula. Dª. Nícia, professora de Matemática, sempre com aquele sorriso bondoso na boca, cumprimentou os alunos.
“Nada de Rogério” – pensou Verinha, já irritada.

***

Verinha não casou com Rogério.
Rogério não casou com Verinha.

Será se ainda estão apaixonados um pelo outro?



***
















quinta-feira, setembro 27, 2007

Não ter vontade de vencer...

Sinceramente, cansei...
Acho que o meu Botafogo não é o mesmo que eu vi jogar...Perdeu a vontade de vencer... Acomoda-se, tem o jogo na mão, entrega tudo de mão beijada, conforma-se em perder....
Chega...

quarta-feira, setembro 19, 2007

AS DUAS PATETAS...

AS DUAS PATETAS

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Três horas da tarde de sexta-feira... Sol escaldante, calor asfixiante... Copacabana fervia naquele início de verão... As ruas, cheias de gente... Turistas e nativos... As praias, lotadas... O comércio, o legalizado e o clandestino, vendendo de tudo...
Saí com as duas, Ana Lúcia e Nícia Maria... A primeira, minha mulher; a segunda, menina de Lambari, interior de Minas, pouco mais de vinte anos, que viera ao Rio acompanhando Ana Lúcia para comprar parte de seu enxoval de casamento...
Passamos antes numa farmácia da Santa Clara, onde comprei algumas coisas... Peguei o dinheiro que estava na pequena bolsa que Ana Lúcia trazia consigo a tiracolo, já que eu estava de bermuda e camisa sem bolsos...
Paguei, e já íamos voltar para casa, quando Ana Lúcia disse:
- Vamos dar uma volta pela Galeria Menescal, p'ra Nícia Maria ver as lojas?
Concordei, apesar de não estar passando muito bem. Estava doido p'ra tomar os remédios que acabara de comprar, p'ra ver se melhorava da dor de cabeça e da ardência que sentia no estômago e no fígado...
Atravessamos lentamente a galeria, depois de nela entrar pela Barata Ribeiro. Eu, mais à frente, as duas atrás, de braços dados, parando deslumbradas diante de todas as vitrines...
Nícia Maria, que vinha pela primeira vez ao Rio, olhava tudo com uma expressão misto de espanto, admiração e uma ponta de desconfiança, de um certo receio, atitude própria de mineiro, ainda mais do interior... Nunca vira tanta gente junta, tantos carros na rua... Acostumada à tranqüilidade da pequena Lambari, a cidade das águas virtuosas, onde não havia sinal de trânsito, elevador, um montão de ônibus cortando uns os outros loucamente em alta velocidade. Lá, onde fazia tudo a pé, onde as pessoas costumavam cumprimentar-se umas às outras, para ela, tudo aquilo era novidade...
Chegamos ao fim da galeria, depois de quase meia-hora. Esperei as duas e, quando chegaram, perguntei-lhes:
- Vocês querem voltar por onde? Pela galeria ou pela av. Copacabana?
Ana Lúcia respondeu:
- Pela Nossa Senhora... Vamos ver as novidades dos camelôs...
A avenida estava apinhada de gente... Pessoas que se moviam com dificuldade pelas calçadas, tomadas de um lado e de outro, junto ao meio-fio e a entrada das lojas, pelas barracas dos camelôs, coladas umas nas outras...
A multidão transitava lentamente através do corredor formado pelas barracas, arrastando-se passo a passo, esbarrando-se as pessoas umas nas outras, as que subiam com aquelas que desciam....As duas, ainda de braços dados, andavam a passo de tartaruga, parando em cada barraca, examinando as mercadorias, perguntando o preço...
As pessoas continuavam no seu interminável ir e vir, empurrando-se e empurrando-me...
Eu, com o saco de remédios numa das mãos, a cabeça me doendo, o estômago e o fígado me ardendo, sentia-me sufocar... Segui mais à frente, tentando desvencilhar-me da multidão...
Quase perto da esquina de Santa Clara, onde diminuiu a intensidade do movimento de pedestres, parei e fiquei aguardando as duas...
Vinham elas bem lá atrás... Ana Lúcia mostrando a Nícia Maria as novidades dos camelôs... Brincos, pulseiras, prendedor de cabelo, um creme que dizia ser importado e outras bugigangas mais... Nícia Maria olhava tudo com cara de deslumbrada, tudo queria comprar...
Passavam em frente à Casa Mattos, onde era mais intensa a aglomeração do povaréu...
Alguns alunos saíam de um curso que ali existe ao lado, fazendo algazarra na calçada... As pessoas se espremiam, procurando um lugar livre no chão onde pudessem colocar os pés...
Ana Lúcia, bolsa a tiracolo, braço dado com Nícia Maria, procurava me localizar mais à frente...
Um elemento abriu os braços diante dela... Assustou-se, tentou recuar, não conseguiu... Atrás delas, havia um montão de gente que a empurrava para frente, naquela maré humana que se arrastava pela calçada...
Conseguiram sair daquele nó de corpos que se espremiam, daquele cheiro pouco agradável de suor humano vespertino...
Foi então que ela se lembrou da bolsa a tiracolo... Sentiu-a mais leve, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Estava aberta... Enfiou a mão... Vazia, ou melhor, só restava uma nota de cem... Seus documentos (carteira funcional do Tribunal de Justiça e carteira de motorista), bem como o cartão magnético do BANERJ, e aproximadamente oitocentos cruzeiros, haviam sumido...
Estourando de raiva, ela me divisou ao longe, parado em frente a uma loja, quase na esquina. Fez sinal com a mão. Aguardei...
- Fui roubada - disse nervosa, exibindo a bolsa vazia...
Olhei para ela, surpreso.
- Como foi isso? - perguntei.
- Sei lá, eu não vi. Deve ter sido agora, quando passei naquele monte de gente lá atrás...
As duas tinham o ar de duas patetas... Nícia Maria, espantada com tudo aquilo... Em Lambari não tem disso não, uai... Ana Lúcia, apesar de estar acostumada com a violência da cidade e de ver bandidos perigosos de perto (trabalhava numa Vara Criminal do Rio de Janeiro), estava "fula" da vida por ter "entrado naquela".
Ela insistiu em voltar ao lugar onde achava que o fato ocorrera. Tinha esperança, ao menos, de encontrar seus documentos no chão, talvez jogados fora pelo ladrão...
Eu lhe disse:
- Isso é besteira... Você não vai achar nada, no meio dessa gente toda...
Ela insistiu e voltou lá com Nícia Maria...

* * *

.Em casa, meia hora depois, ela ainda tentando conter a revolta, analisamos com mais calma a situação. O irmão mais velho também ali estava, tinha ido visitá-la e não sabia de nada...
Bem, o cartão magnético do banco não poderia ser usado... Não tinha sua assinatura e só funcionava quando digitada a senha, que só ela sabia... Em todo caso, era bom telefonar p'ro banco, comunicando o acontecido.
Ana Lúcia, volta e meia, desabafava. Criou idéia fixa de que iria pegar o cocô de sua cachorra, colocá-lo dentro da bolsa e, no dia seguinte, voltar ao lugar do furto, para que o ladrão, ao abrir novamente sua bolsa, enfiasse a mão na merda canina... Tentei demovê-la da idéia, dizendo-lhe que o dia seguinte era um sábado, e os ladrões não costumavam trabalhar aos sábados, já que são adeptos da semana inglesa...
O dinheiro subtraído, em torno de oitocentos cruzeiros reais (denominação horrível para a nossa moeda), era mixaria, não iria fazer grande falta... Não adiantava esquentar a cabeça por causa dele...
O que preocupava eram os documentos... A carteira funcional, além do retrato, tinha sua assinatura... Seria fácil uma cúmplice do ladrão ir até uma loja, exibir a carteira do Tribunal de Justiça, abrir um crediário e falsificar sua assinatura... Vendedor nenhum iria duvidar da autenticidade de uma carteira da Justiça...
A habilitação para dirigir, também... Apesar de vencida há quase um ano, ela não tinha cópia da mesma e não sabia o número do prontuário para providenciar a renovação...
Ainda pensei em recriminar sua falta de cuidado. Quantas vezes já lhe dissera, quando saíamos juntos pelas ruas de Copacabana ou do Centro da cidade (até mesmo em Buenos Aires, Amsterdam ou Paris):
- Cuidado com essa bolsa. Não fica dando bobeira. Aqui não é Lambari...
E ela, sempre autoconfiante:
- Pode deixar. Eu me garanto.
Tinha uma dose de razão. Quem foi criada e vivia no Rio de Janeiro, tem que aprender a se defender. Talvez seja a população mais prevenida do mundo.
Mas, mesmo assim, nunca era demais tomar certos cuidados. Bolsa, sempre com fecho-éclair, com alça atravessada no peito (para as mulheres). Para os homens, carregar pouco dinheiro, sempre dividido entre os bolsos da calça, da camisa, do paletó. Nada de usar carteira...
Naquela tarde, ela carregava a bolsa presa pela alça em um dos ombros... E, pior, uma bolsa fácil de abrir, um simples fecho, sem o zíper... Foi muito moleza para os larápios...
Enquanto um abria os braços à sua frente, assustando-a, o outro, por trás, abria-lhe a bolsa com destreza e surrupiava-lhe o conteúdo... "Entrara"...
Decidi não criticar, compreendendo o seu estado de espírito.
Ela, entretanto, voltou a bater na mesma tecla:
- Amanhã, eu boto o cocô da Kate na bolsa e volto lá... Aquele miserável vai sujar a mão toda...

* * *

Telefonou p'ro banco, foi até a l2ª Delegacia, onde registrou a ocorrência... Lá, outros vários fatos idênticos estavam sendo registrados... O policial de plantão disse-lhe que a média de furtos semelhantes era de vinte por dia, só naquele trecho, entre Siqueira Campos e Santa Clara... Orientou-a a procurar a COMLURB e os Correios... Se alguém achasse os documentos talvez fizesse a boa ação de encaminhá-los a um daqueles órgãos...

* * *

Passaram-se o sábado e o domingo.
Na segunda, elas foram até o posto da COMLURB em Copacabana e ao l9º Batalhão da Polícia Militar, na esperança de que os documentos tivessem sido encontrados... Nada...
Avisaram a alguns garis da COMLURB que varriam as ruas próximas, bem como aos guardas de trânsito das cercanias do local do evento... Talvez o ladrão, apoderando-se do dinheiro, não viu qualquer valia nos documentos, e os tivesse atirado fora, num bueiro qualquer ou numa cesta de lixo...
Terça-feira, feriado, sem notícias...
Quarta-feira, ela iria ao Tribunal providenciar a 2ª via da carteira funcional. A renovação da habilitação para dirigir era bobagem providenciar agora: o DETRAN estava demorando mais de seis meses para entregar a nova carteira.
Ia ser uma chateação. Tirar retrato, pegar a certidão da ocorrência na Delegacia, ir ao Tribunal dar mil explicações, esperar um tempo enorme, ficar sem documentos...
O que mais lhe dava raiva era saber que o ladrão tinha tudo dela nas mãos: nome, filiação, nº do CPF, retrato, assinatura, podendo fazer o que quisesse daquele documento...
Imagina se ele assalta alguém e é preso com sua carteira funcional... Será se iam pensar que ela era sua cúmplice?
Bem, não adiantava ficar preocupada por antecipação. Talvez ele não assaltasse ninguém... Talvez fosse esperto demais para ser preso... Ah! mas ela ia se vingar... Ia colocar o cocô da cachorra na bolsa e ia voltar ao local do furto... O criminoso não volta sempre ao lugar do crime?

* * *

Quarta-feira, pela manhã...
Vesti-me para ir à cidade. Tinha dentista às onze horas... Ana Lúcia e Nícia Maria também se aprontaram para ir ao Tribunal.
Desci antes delas... Conversava com o porteiro, apanhava a conta do telefone para pagá-la no Centro... Quando já ia subindo de volta, dois garis chegaram no portão de ferro, perguntando pela moradora do 201. O porteiro me chamou, já junto da porta do elevador...
Fui ver o que era.
- O senhor é parente da moradora do 201, dona Ana Lúcia?
- Sim - respondi. Sou o marido dela.
- É que ela nos avisou que roubaram seus documentos...
Fez uma pausa. Continuou:
- Nós achamos eles dentro de uma cesta de lixo...
E me entregou um saco plástico...
Abri-o rapidamente, exultando de satisfação. Lá estava tudo: carteira funcional, habilitação e o cartão magnético, quebrado ao meio... Tudo, menos o dinheiro, é claro...
Não consegui disfarçar o meu contentamento. Procurei nos bolsos algum dinheiro para gratificá-los... Estavam vazios... Pedi que aguardassem... Fui até o apartamento e peguei dois mil cruzeiros (reais)... Dei mil a cada um, agradecendo-lhes calorosamente.
Voltei ao apartamento...
Ela, bem como Nícia Maria, não escondiam a satisfação...
Mesmo assim, ela reclamou:
- Mas, você deu muito p'ra eles... Quinhentos para cada um estava muito bom... Eu só vou dar mil p'ros dois... Você deu mais mil porque quis.
E eu, sem ter nada a ver com aquilo tudo, acabei "entrando" em mil cruzeiros (reais)...
Dentro do saco plástico, a fina ironia... Junto com os documentos, o meliante ainda teve a consideração de juntar um pequeno folheto impresso com a oração de "SÃO DIMAS - O BOM LADRÃO...".

* * *

Ficou ele, como produto do furto, com oitocentos cruzeiros (reais)... Os garis, que nada furtaram, ficaram com mais que ele, mil cruzeiros (reais)... E eu, com menos mil cruzeiros (reais)...
Essa, a aritmética do crime...
Ainda bem que ela desistiu de colocar o cocô da cachorra na bolsa...

* * *

O HOMEM DO ÉTER...


O HOMEM DO ÉTER...

Calfilho



               Dele, todos zombavam, faziam chacota...
               Perambulava pelas ruas de Copacabana, barba crescida, cabelos na altura do ombro... As pernas, sempre trôpegas, exibiam várias feridas, já purulentas... As roupas, simples farrapos...
               Carregava sempre nas costas um saco de farinha sujo, já preto por falta de lavagem...
               Cheirava fortemente a éter... Era o que mais chamava a atenção das pessoas... Aquele cheiro característico que dele exalava, ao longe...
               Era como o chamavam na Santa Clara e adjacências... "O homem do éter...".
               Dormia nas calçadas, cheirava o seu éter, mas, engraçado, não perturbava ninguém... Não era indelicado, as feições, mesmo maltratadas, indicavam que não deveria ter mais de trinta e cinco anos...
                E, respeitoso...
                Certa vez, minha mulher comprava cigarros num botequim da Santa Clara, esquina com Cinco de Julho, e eu, no balcão, pedi um chope. Ela pagava na caixa os maços pedidos e o garçom tirava o meu chope. Ele aproximou-se dela, o cheiro do éter dominando o ambiente...
                Fiquei de sobreaviso (será se ele está armado?). Os empregados e fregueses riram dele, fizeram piadinhas...
                - Olha o "homem do éter", tá mais p'ra lá que p'ra cá...
                Ele, cambaleando, as pernas inchadas, sangrando as feridas, olhou para ela, distraída, de costas para ele, conferindo o troco:
                - A senhora pode me ceder um cigarro?
                Ela, surpresa, olhou para ele, ficou um pouco nervosa, temerosa ao ver sua aparência. Dirigiu um rápido olhar para mim, já sentado num tamborete, tomando o meu chope. Fiz-lhe um sinal com a cabeça, concordando... Apanhou o cigarro, afastou-se, dizendo apenas:
                - Muito obrigado...
               Olhou para mim e agradeceu, baixando, imperceptível e reverenciosamente, a cabeça... Como se dissesse: "Ele pensa que eu não o vi...".
               As pessoas no botequim riram mais uma vez quando ele se afastou...
               Alguns até disseram:
               - Vai dormir, "cachaça"...
               O dono disse para minha mulher:
               - A senhora desculpe o incômodo... Mas, ele anda sempre por aqui... A gente não pode fazer nada...
               Um outro freguês, sentado ao meu lado, disse para mim:
                - Cara folgado... Você não devia ter deixado que ela desse o cigarro...
                E, com ar de filósofo de botequim:
                - É isso que acostuma mal essa gente...
                Eu, virando o último gole do meu chope:
                - Tá tudo bem...

                                              * * *

               Dez anos antes, num hospital público do Rio de Janeiro...
Plantão de sábado para domingo... Movimento intenso de feridos, mortos, baleados, acidentados...
               Só um médico de serviço... Três enfermeiras, dois serventes... Uma loucura total... Um corre p'ra cá, outro p'ra lá, esbarrando-se nos corredores estreitos, empurrando macas, carregando frascos de soro...
               Na sala de cirurgia, mal iluminada, sem refrigeração, calor de mais de quarenta graus, o jovem médico fazia uma operação delicada... A barriga da vítima de disparo de arma de fogo já estava aberta, tripas à mostra... A enfermeira, nervosa, suando em bicas, tinha dificuldade em achar o instrumento cirúrgico solicitado... Um tumulto total, gente entrando e saindo a todo o momento, parentes de vítimas chorando pelos corredores, outros discutindo em voz alta, críticas ao governo, lamentações, desespero...
               O servente, sandália de dedo nos pés, vassoura nas mãos, coçava o nariz, tirava uma meleca que o incomodava, e, encostado na porta, assistia à cirurgia....O médico começava a extrair o projétil... Cuidadoso, mãos hábeis e sensíveis, procurava-o com extrema precisão... Suava abundantemente... Mal ou bem, mesmo diante de todas aquelas dificuldades do local, fazia-se silêncio no interior da sala... Uma incisão mais profunda, uma artéria pinçada...
                Entra na sala, esbaforida, uma das outras enfermeiras de plantão...
                 - Doutor, doutor, urgente, um outro caso de cirurgia...
                 Ele olha para ela, ainda com o bisturi na mão, o suor escorrendo-lhe pela testa...
                  - Bota na fila, não tá vendo que eu ainda não acabei com este...
                 Ela, já sem a máscara na boca, nervosa:
                 - Mas, doutor, é urgente...
                 Já descontrolado, por não ter conseguido estancar uma pequena hemorragia do baleado de barriga aberta, ele reponde, aos berros:
                  - Porra, vê se não enche o meu saco... Eu sou um só... Será que é só o seu caso que é urgente? Esse aqui também não é?
                  A enfermeira afastou-se, cabeça baixa. Deixou a sala, os olhos vermelhos, as lágrimas escorrendo-lhe pela face...
                  Não teve coragem de dizer-lhe...
                  O outro caso, o "urgente", era o filho dele, que agonizava na sala de espera da cirurgia... Sofrera um acidente de automóvel momentos antes... Três anos de idade... A mãe morrera no local... Ele acabou morrendo no hospital, coitado...
                 Tinha ido buscar o pai no trabalho para fazer-lhe uma surpresa...

* * *

                  O jovem cirurgião largou a profissão... Procurou refúgio no éter...

* * *

quarta-feira, agosto 15, 2007

A SABIDINHA...

A SABIDINHA ...

CALF


Considerava-se a dona da verdade...
Da vida, sabia tudo...
Trabalhava, ganhava bem, morava sozinha, dirigia seu próprio carro...
Era auto-suficiente, moderninha... Não dependia de ninguém, nem da família ou dos amigos...
Desde cedo, saíra de casa, ainda com 17 anos... Fez concurso para o Banco Central, fora aprovada em terceiro lugar... Formou-se depois em Direito, entrou para o corpo jurídico do banco... Falava inglês e espanhol, arranhava francês e alemão... Escolhia suas amizades, não dava bola p'ra ninguém... Amores na vida, nenhum... Uma trepadinha aqui, outra ali, fins-de-noite passageiros que se perdiam no esquecimento do dia seguinte... Tudo sem compromisso, descartável, só p'ra gozar...
Decidira passar as férias daquele ano em Salvador... Tudo planejado, bem programado... Reserva no hotel, uma parada em Vitória... Iria de carro, ela mesmo dirigindo...
Só, sem ninguém ao seu lado para chateá-la... Antes só que mal acompanhada...
Falaram-lhe maravilhas da capital da Bahia, a dourada cidade das praias mágicas, das igrejas, das mulatas, candomblé, comida de primeira... Por isso, queria curtir a cidade sozinha, conhecer todos os seus cantos e encantos... Poderia, talvez, ter levado sua mãe ou um "noivo"...
Não, preferiu ir sem ninguém...

* * *

Viagem cansativa... Mas, tudo bem, estava valendo a pena... Pernoitara em Vitória, que não conhecia... Deu uma entradinha em Ilhéus, a cidade que a encantara pelas cenas passadas na televisão, quando da exibição da novela "Gabriela".
Chegou a Salvador pouco depois do meio-dia. Foi direto p'ro hotel, no Corredor da Vitória... Perguntou aqui e ali, chegou lá... Deixou o carro na garagem, tomou um banho e dormiu um pouco...
Depois, saiu... Elevador Lacerda, Mercado Modelo, Bonfim, Itapagipe... Tudo no primeiro dia... Foi de táxi, já que não conhecia o trânsito da cidade... No dia seguinte, as praias... Porto da Barra, Farol, Ondina, Amaralina, Rio Vermelho, Boca do Rio, Piatã, Itapoã... Um pulinho até Abaeté... Muito acarajé, caruru, água de coco...
No terceiro dia, passeio de escuna até Itaparica. Deslumbrante... Salvador realmente correspondia a tudo o que dela falavam...
No quarto dia, já mais habituada com a cidade, decidiu sair de carro... Foi até Arembepe, praia linda, ainda primitiva e selvagem, distante quase uma hora de Salvador... A sensação de ouvir o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o ambiente de paz, tranqüilidade, realmente a deixaram emocionada...
Já no quinto dia de Bahia, começou a se soltar um pouco mais... Saiu à noite, foi jantar num dos vários restaurantes da Barra, sempre cheios de gente. Adorou a comida baiana...
Experimentou de tudo... Vatapá, siri mole e catado, caranguejo, lambreta, caldo de sururu, abará, feijoada (que lá é feita com feijão manteiga), sarapatel... Um pouquinho de cada coisa, só para provar, como lhe disse o garçom, uma bicha baiana... Tomou uma caipirinha e três chopes.
Numa mesa ao lado, quatro rapazes começaram a reparar nela, sozinha, comendo tudo o que tinha direito, conversando animadamente com "Nega", o garçom... Fizeram sinal, quiseram puxar conversa... Ela, irritada, já que detestava aquele tipo de coisa (porra, será que uma mulher não pode jantar sozinha num restaurante?), pediu a conta, assinou o cheque, despediu-se de "Nega" e deixou o lugar...
Pegou o carro e tomou o caminho do hotel. Subiu a Ladeira da Barra e parou numa sinaleira, próximo à igreja da Vitória... Os quatro chegaram rápido, ela nem percebeu.
Emparelharam com o carro dela, três deles desceram e um foi logo encostando o cano do revólver em sua cabeça...
- Chega p'ra lá, minha sobrinha, isso é um assalto...
Olhou para o cara, surpresa... Obedeceu automaticamente, sem ter tempo para pensar em alguma coisa. Um deles tomou a direção, os outros dois também entraram no seu carro... O outro veículo os seguiu.
Ela perguntou, ainda espantada:
- Mas, o que é que é isso? O que vocês estão fazendo?
Um dos caras perguntou:
- Diga aí, minha irmã, o que é que você tem p'ra dar p'ra gente?
Aí, ela caiu na real...
Tentou conversar:
- Só o carro e isso que eu tenho na bolsa.
Um deles riu. Riso cínico, debochado...
- Só isso? A gente quer mais...
Apontou o revólver para ela. Disse, com o característico sotaque baiano, falando quase cantando:
- Olha, a gente já viu a placa do teu carro. É do Rio, não é? ... A gente sempre ouviu dizer que carioca é doida por uma sacanagem... Você quer dar p'ra gente, não quer?
Ela suou frio, gelou... Pela primeira vez na vida ficou com medo... Não conseguia manter o autocontrole... Logo ela, tão independente, tão confiante, que sabia lidar com todas as situações, por mais difíceis que fossem... Agora, estava apavorada... Nem no Rio, com toda sua violência, ela passara por situação igual... Não, eles deviam estar brincando, não teriam coragem...
Iam levar o carro, sua bolsa e deixá-la em qualquer lugar... Afinal de contas, ela sempre ouvira falar bem da hospitalidade baiana... Foram p'ro alto de Ondina.
Ali, enquanto um a segurava pelos ombros, outro lhe abria as pernas... O terceiro a penetrava, o quarto ria e aplaudia, com uma garrafa de conhaque Dreher na boca (o filho da puta poderia ter melhor gosto)...
Tudo era silêncio... Ninguém ouvia nada... Além do mais, um deles tapava-lhe a boca... Ela tentava reagir, gritar, espernear... Nada... Olhava aterrorizada para os quatro, que se revezavam, na ânsia de possuí-la... Todos eles a tiveram mulher, abertinha, por trás e pela frente, sem que ela nada pudesse fazer...
Desmaiou... Quando acordou, já o dia clareando, viu que fora largada sem carro, sem uma peça de roupa, completamente pelada, lá em cima do morro, com uma deslumbrante vista para a praia lá embaixo...
Conseguiu voltar para o hotel... Como, não se lembra direito...
Chegou, apenas...
Perdera oitenta por cento de sua autoconfiança...

* * *

sexta-feira, agosto 03, 2007

AMOR INFELIZ...

A M O R I N F E L I Z ...





Sílvio mais uma vez delirava...
Era essa sua rotina atual... Trancava-se em seu apartamento, abria uma garrafa de whisky (Teacher's, era a marca) e, depois da quinta dose, deitado na cama, começava a delirar...
Sua mente vagava por outras paisagens, por outras épocas...
Lembrava-se dos primeiros dias... Vinte anos atrás... Tudo felicidade, tudo cor-de-rosa...
Liliane era, realmente, a mulher de sua vida... Namoro bastante difícil, devido à resistência dos pais de ambos... Os dela, pessoas da alta sociedade carioca, achando que ele, advogado recém-formado, filho de família de classe média, sem nada de sólido ou estável a oferecer, estaria dando o golpe do baú... Os dele, pais de filho único, enciumados pela possibilidade dele deixar-lhes a companhia, à qual estavam tão acostumados e até mesmo, inconscientemente, dela dependiam... Afinal, com seus 30 anos de idade, era ele, Sílvio, quem resolvia todos os problemas da casa... Fazia pagamentos, comparecia às reuniões do condomínio (onde mantinha discussões que fizeram história com os demais condôminos, estando todas elas registradas nas atas das assembléias), levava ambos, pai e mãe, ao médico, ao dentista, ao barbeiro, à manicure... Talvez, por essa inconsciente dependência, à qual se habituaram, seus pais tinham medo do seu casamento, medo de perdê-lo...
Sílvio preparou outra dose, ainda deitado. Riu um pouco, riso nervoso, quase histérico... Analisava o seu relacionamento com o pai... "Seu" Silvano era um coroa simpático...
Fechado, sisudo, dava-lhe broncas homéricas... Nunca disse para ninguém, mas Sílvio já descobrira com um amigo mais velho, que ele já fora um dos maiores e mais respeitados boêmios da Copacabana dos anos 30/40... E, agora, depois de aposentado, cabelos grisalhos, próximo dos 65 anos de idade, não queria perder a pose dos tempos antigos... Isso mesmo, não queria perder a pose... Por isso, quando Sílvio, sentindo que o pai já se esquecia de alguma coisa, deixava de pagar esta ou aquela conta de luz ou gás, ele tomava a frente de tudo, resolvia as coisas, e aí surgiam as broncas...
- Você pensa que eu sou algum irresponsável? Quem é que você pensa que é?
Virou mais um gole duplo (puro, sem gelo)...
Com os pais de Liliane, o relacionamento era frio, distante, desconfiado... Ela, a mais nova das três filhas, era tratada a pão e mel. Toda mimada, toda cheia de cuidados... Mas, engraçado, ela, pessoalmente, não dava muito valor àqueles paparicos... Era franca, independente, às vezes até grossa demais....Apaixonaram-se loucamente... Colegas de faculdade, sentiram-se atraídos um pelo outro depois de alguns encontros casuais que tiveram no barzinho onde os alunos costumavam reunir-se. Iniciaram o namoro e, já quando Sílvio foi pela primeira vez à casa dela, sentiu a hostilidade de seus pais.
Era 1968, época em que ainda o namorado tinha que ser apresentado aos pais da namorada e obter o consentimento para o namoro. Tinha ela 19 anos e ele 23 (atrasou-se um pouco nos estudos, malandro de praia que fora). A apresentação foi formal, seca, para não dizer ridícula...
O pai dela, político importante da época, amigo íntimo de vários militares que então governavam o país, olhou-o de alto a baixo, examinando-o cuidadosamente, expressão no rosto misto de curiosidade e já de reprovação antecipada. Estendeu-lhe a mão com displicência:
- Muito prazer, senhor Sílvio (enfatizou o "senhor", como se quisesse manter distância). Então o senhor é o amigo de quem Liliane tanto fala...
Sílvio cumprimentou-o, reverenciosamente.
Apresentou-lhe a mulher, enchendo a boca:
- Esta é minha "esposa" (enfatizou a palavra), mãe de Liliane.
Sílvio riu interiormente. Achava "esposa" uma das palavras mais escrotas do nosso vocabulário...
Mas, educado, beijou a mão da "esposa"...
É claro que não se sentiu à vontade, completamente fora do seu ambiente. As poucas palavras que lhe dirigiram durante o jantar foram "o senhor é de qual família?", "quem são seus pais?", "o senhor trabalha onde?"...
Daí para frente, cada vez que ia à casa dela, sentia-se constrangido. A mesma frieza, as mesmas indagações, algumas indiretas disfarçadas, a mesma desconfiança... Mesmo assim, ia...
E, por isso, ele, que a amava loucamente (e tinha certeza de que era correspondido), teve que agüentar dos pais dela, quanto a um casamento para breve:
- É melhor vocês se formarem antes...
- Acho que, depois da formatura, vocês estarão mais maduros, terão refletido mais...
- Senhor Sílvio, o senhor já está trabalhando?
E ele agüentou... Porque a adorava...
Foi securitário, bancário, agente de viagens... Nenhum desses empregos conseguiu convencê-los... Queriam o melhor para a filha (até insinuavam com outros pretendentes, com melhor posição social e financeira)...
Concluíram o curso... Ele, primeiro que ela, que teve uma hepatite e foi obrigada a trancar a matrícula.
Agora, de diploma na mão, finalmente tomou coragem de pedi-la em casamento (também, às vezes, ele se achava meio covarde, meio devagar... Por que não a comeu logo?... Oportunidades não faltaram...).
E, mesmo com o diploma, ainda encontrou resistências... Ele, já 29 anos, ela com 25...
Finalmente, os respectivos pais decidiram e acabaram aceitando o casamento...

* * *

A festa foi linda (não para o seu gosto)... Riquíssima, cheia de convidados importantes, numa das igrejas mais badaladas do Rio de Janeiro... A recepção, então nem se fala...
Saiu em todas as colunas sociais... Afinal, noiva parenta de Governador não se encontra todo dia...
Mesmo que fosse do MDB, para dar uma aparência de escolha democrática, apesar de ter sido ele indicado pelos militares (a época era 1974, lembrem-se bem).
Felizes, tudo cor-de-rosa... Lua de mel em São Pedro d'Aldeia, os dois sozinhos, um mês só deles...
"Mais um whiskynho, que eu não sou de ferro", pensou em voz alta...
Duplo, sem gelo...
* * *

Um ano depois, nasceu Silvana... Nome difícil de ser escolhido... Ela não gostou, a princípio... Ele insistiu, bateu pé...
Ela ainda argumentou:
- É o nome daquele cientista maluco do Capitão Marvel... Doutor Silvana...
Ele retrucou:
- É também o nome do meu pai.
Ele não cedeu, sendo bastante egoísta, reconheceu depois. Mas, queria colocar na filha um nome que tivesse algo dele e de seu pai.
A família dela chiou... "Que nome feio..." Ele irritou-se, pela primeira vez rebelou-se...
Era aquele e pronto... Ficou sendo Silvana...

* * *

Foi nesse episódio que percebeu o primeiro momento em que Liliane, ao surgir uma desavença entre ele e os pais dela, ficou do lado dos pais.
Daí para frente, começou o seu martírio.
Liliane disse-lhe um dia, resoluta:
- Não quero mais ter filhos.
Ele:
.- Por quê? Eu quero três ou quatro...
Ela:
- Não vou engordar, ficar cheia de filhos p'ra criar... Uma só e basta...
Tudo degenerou... Da loucura, da adoração recíproca, começaram as brigas, as discussões. Motivos: nenhum, ou sem importância alguma... Tudo era pretexto para iniciarem uma batalha... Ofensas, xingamentos, baixaria...
Silvana crescendo... Sílvio, prendendo-se cada vez mais a ela, como a única tábua de apoio para a sua angústia de vida, para a sua solidão interior...
Enquanto isso, sua vida profissional deslanchava... Seu talento indiscutível começou então a aflorar. Rápido, em velocidade supersônica, o sucesso veio-lhe as mãos.
Com três anos de formado, já era considerado um dos melhores advogados do Rio, sendo chefe de um dos mais conceituados escritórios da cidade e ocupando cargo de maior relevância na administração estadual (obtido por concurso)...
Fez-se fácil, fácil, amigo de Promotores e Juízes. Privava da intimidade e do relacionamento pessoal com vários deles... Com eles debatia altas teses jurídicas, quer profissionalmente, dentro dos autos, quer socialmente, acompanhando-os no chope do "Chamego do Papai" ou nas extensões noite adentro que aquelas conversas proporcionavam...
Era respeitado e querido...
Nada daquilo, entretanto, o satisfazia...
Saía correndo do trabalho para ver Silvana, com ela brincar, sentir sua infância desabrochar a cada momento, a cada instante...
Oito anos durou o casamento... As brigas tornaram-se mais sérias, as ofensas mais graves, até porrada recíproca ocorreu...
Separaram-se... "amigavelmente"...
No dia da audiência, quando o juiz perguntou como seria feita a divisão de bens, Sílvio, de porre, respondeu:
- Eu não quero coisa nenhuma. Fica tudo p'ra elas (e já tinham apartamento próprio, casa em São Pedro, dinheiro na poupança, etc...).
Liliane, coitada, tinha feito o rol de todos os bens para a divisão. Até pregador de roupa ela relacionou... Olhou, frustrada, para o seu advogado, com a lista dos bens nas mãos... O advogado, que se preparara arduamente para uma verdadeira batalha jurídica, também frustrado, guardou na pasta de executivo, a brilhante sustentação que iria fazer...
Sílvio, embriagado, falava com voz arrastada, as palavras escorrendo-lhe pela boca. O juiz, seu conhecido, compreendeu. Sabia que Sílvio era bastante sensível e que adorava a mulher e a filha. Confidenciara-lhe esse amor pelas duas numa das inúmeras conversas de fim-de-noite no "Chamego"... Sabia que ele não iria, de cara limpa, admitir separar-se de Silvana e ficar discutindo bobagens sobre divisão de bens. Mesmo assim, ainda perguntou-lhe:
- O senhor tem certeza de que é isso mesmo que o senhor quer fazer? Vai abrir mão de todos os seus bens? O senhor sabe, como advogado que é, que tem direito à metade...
Sílvio respondeu rápido, a voz pastosa arrastando-se pela sala:
- É isso mesmo, meritíssimo. Fica tudo p'ra elas. Eu não quero nada.
O juiz ainda fez uma última tentativa:
- E o senhor vai viver de quê? Vai morar aonde?
- Eu me arranjo - respondeu com ar de triunfo, o rosto vermelho como um camarão, o cheiro de whisky exalando por todos os seus poros, tomando conta do ambiente e fazendo com que Liliane, a toda hora, levasse a mão ao nariz, procurando dele escapar. Detestava cheiro de bebida...

* * *

Daí em diante, para Sílvio começou o sofrimento...
Bebia todo dia, a toda hora, a qualquer momento... Afastou-se de tudo e de todos...
Trancava-se no quarto e, sozinho, procurava estancar o sangue que jorrava das feridas de sua imensa dor... "Silvana"... "Silvana, minha filhinha, quero você...".
Delirava, delirava, rolava na cama, tinha alucinações...

* * *

"O tempo é o único e melhor remédio para curar o sofrimento da alma", como já dizia minha avó...
E o tempo começou a curá-lo...
Devagar, bem lentamente. Uma ferida que secava aqui, mas reabria mais adiante, até fechar definitivamente... Uma cicatriz ali, outra acolá...
Pouco a pouco começou a absorver a dor da separação de Silvana. Absorver, talvez não fosse a palavra correta: administrar, cairia melhor... Via-a uma vez por semana, de quinze em quinze dias, às vezes... Os pais de Liliane, sentindo-se donos da situação, tomaram conta de tudo e, sempre que podiam, procuravam atormentar-lhe a vida... Criavam obstáculos, faziam insinuações, tentavam jogar Silvana contra ele...
Mas, ele melhorava... Resistia, não se entregava...
Voltou para o trabalho (pulou de repartição em repartição, é certo, dado o seu temperamento difícil, brigando sempre com chefes e superiores, discutindo e não aceitando cumprir ordens imbecis). Retomou seu lugar no escritório, investindo, agora, numa advocacia interestadual (São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul). Passou a viajar com freqüência.
Reativou suas amizades no Judiciário. Dr. Caulo, velho amigo, juiz do cível. Dr. Marlos, juiz do Tribunal do Júri. Inscreveu-se como jurado, tendo funcionado efetivamente durante dois anos (l986 e l987). Fez novas amizades, principalmente com os jurados. Funcionou como vogal em apurações nas eleições de l982 e l986, sendo esta última em Nova Iguaçu, quando auxiliou o Dr. Marlos. Nesta, inclusive, transportou em seu carro várias escrutinadoras que moravam no Rio, todas elas com mais de 50 anos de idade. Daí porque seu carro foi apelidado de "O Comboio da Saudade". Divertia-se muito com esse apelido...
Mais uma dose, sorvida vagarosamente...
Engraçado, sentia-se bem quando estava com seus amigos. Fazia questão de organizar almoços, de programar reuniões e saídas noturnas, enfim, de conviver com as pessoas que lhe eram queridas. Definitivamente, não era uma pessoa amarga, daquelas consideradas de mal com a vida. Era prestativo, solidário, leal àqueles de quem gostava...
Certa vez acompanhou o Dr. Marlos a um casamento de um advogado militante do Júri, filho de um Procurador de Justiça. Ao final da festa, solidário como sempre, fez questão de levar o juiz seu amigo até Jacarepaguá, onde este residia. O juiz ainda ponderou que não fosse, pois sentiu que ele estava meio sonolento, meio de pilequinho. Ele insistiu, fez questão... Na volta, dirigindo, tonto de sono, deu uma senhora porrada com o carro, fraturando o nariz e outras coisas mais... Só mesmo ele...

* * *

Sorria novamente...
Lembrava-se de Silvana, em seus primeiros dias de vida... Como gostava de curti-la...
Trazia em sua carteira várias fotos dela, nas diversas fases de sua vida... Tinha, agora, doze anos de idade...
Mostrava aqueles retratos a todo mundo, a toda hora, sob qualquer pretexto...
Notava nela, atualmente, alguma diferença no tratamento que lhe dispensava... Um pouco mais fria, talvez mais distante... Será se ela estava passando por algum problema? Não, devia ser coisa de adolescente... De qualquer forma, iria conversar com ela amanhã, quando fosse vê-la, aproveitando o feriado de segunda-feira.
Iria a São Pedro, onde ela estava com a mãe e a levaria para passear e conversar. Já poderiam ter uma conversa mais adulta...

* * *

Passara quinze dias em São Paulo, onde fora resolver alguns problemas do escritório.
Mas, também fora refrescar a cabeça.
Nas suas últimas idas e vindas à capital paulista, fizera um novo grupo de amigos, que o faziam esquecer um pouco de suas amarguras no Rio.
Chegara de volta cerca das três da tarde. Ligou a secretária eletrônica. Vários recados.
Deu alguns telefonemas, conversou com vários amigos, tomou um banho e abriu a garrafa de whisky. Deitou-se na cama e pôs-se a divagar.
Tomou seus cinco comprimidos da tarde, aos quais já se habituara a ingerir por conta própria, três vezes ao dia. Vitaminas, desintoxicantes para o fígado, tranqüilizantes leves... Abriu seu terceiro maço de cigarros do dia. Queria parar de fumar (estava tossindo muito), mas adiava sempre o momento da decisão...
Em meio às suas divagações, ora sorria ao lembrar dos momentos bons de sua vida, ora as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, ao recordar-se dos maus. Chorava convulsivamente quando a imagem de Silvana vinha-lhe à mente.
Às 10 da noite, levantou-se, meio cambaleante, meio de pileque. Decidiu sair para jantar.
Costumava fazê-lo numa churrascaria de Copacabana, no posto 5, onde já conhecia todo mundo, do dono ao cozinheiro. Uma vez, meio de porre, acompanhado de uma dama da noite, quis ali jantar, à meia-noite, vestindo uma bermuda. Ponderaram com ele que o traje não era adequado para a noite. Ele insistiu e, como era conhecido de todo mundo, acabou entrando.
"Assim era ele", pensava consigo mesmo. Ganhava todo mundo na simpatia.

* * *

Chegou, cumprimento o garçom, sentou-se à mesa de sempre.
Picanha com fritas e farofa...
Comia devagar...
Divagava mais uma vez...
Tomou mais um gole do seu chope...
A dor veio forte, rasgando-lhe as entranhas.
Levou a mão ao peito, apertando-o com força...
Sorriu... Sentiu que era a hora...
A imagem de Silvana veio-lhe mais uma vez à mente... Forte, nítida, em todo o seu esplendor...
A cabeça, já sem vida, tombou sobre a mesa...* * *

quarta-feira, julho 25, 2007

COISAS DE GÊNIO...

COISAS DE GÊNIO





Era o maior time da época... Talvez, do mundo todo, só o Santos de Pelé conseguia enfrentá-lo de igual para igual... Manga, Cacá, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Pampolini e Didi; Garrincha, Amarildo, Quarentinha e Zagalo... (alguns nomes podem estar errados, mas esse era o time-base).
O ano era 1962... O Brasil se sagrara, recentemente, bicampeão do mundo no Chile...
E, a maior estrela da seleção pertencia ao Botafogo... MANÉ GARRINCHA... Fez gol de cabeça, de falta, entortou todo mundo, chegou até a ser expulso... Ele, logo ele, que não ofendia ninguém, que não brigava em campo, que apanhava dos medíocres laterais esquerdos sem reclamar, sem revidar... Mas, com a contusão de Pelé, logo no segundo jogo da Copa, chamou ele para si a responsabilidade de conduzir a seleção... E isso, numa equipe que tinha Gilmar, Djalma Santos, o monstro Nilton Santos, o maestro Didi, o guerreiro Zito e outros inesquecíveis bicampeões...
Garrincha fez de tudo... Foi craque, gênio, moleque, responsável e também não...
E, no Brasil, todos comemoramos o bicampeonato mundial...
Voltou ele à rotina do seu Botafogo... O time, que já havia sido campeão em 1961, estava embalado na luta pelo bi... Garrincha, "acabando" a cada jogo... Era o maior jogador brasileiro da época, apesar de Pelé, com seus apenas 21 anos...
As torcidas iam aos campos só para vê-lo jogar... Todas as torcidas, não só a do Botafogo... Tarde de domingo, Garrincha em campo, os pais preferiam levar os filhos aos estádios do que ao cinema, ao circo, ao Jardim Zoológico, ou a qualquer outro divertimento... O "show" de bola que ele dava nos gramados suplantava, de longe, qualquer outro espetáculo... Foi por causa dele que a torcida do Botafogo cresceu tanto... Os meninos que acompanhavam os pais para ver Garrincha jogar, são os botafoguenses fanáticos dos dias de hoje...
Todos os torcedores, todos os jogadores sabiam o que ele ia fazer quando tinha a bola dominada em seus pés... O drible rápido para a direita, a corrida fulminante que ninguém conseguia parar, o cruzamento certeiro para o meio da área... Ali, quase sempre, Quarentinha ou Amarildo conferiam... Às vezes, até, era irreverente... Não contente com o primeiro drible, o lateral esquerdo já batido, ultrapassado, ele parava no meio do pique para o gol, dominava a bola com delicadeza e chamava o adversário para um novo drible (Coronel, do Vasco, que o diga...).
Em novembro de 1962, o Botafogo foi a Teixeira de Castro enfrentar o Bonsucesso, pelo Campeonato Carioca. Estadinho pequeno, lotado, torcida praticamente dentro do campo, um frágil alambrado a separar as arquibancadas da linha lateral... Os torcedores, a maioria botafoguenses, mas também em grande número, a torcida do Bonsucesso, clube de prestígio na época...

* * *

VESTIÁRIO DO BOTAFOGO: acanhado, sem conforto, o time, já uniformizado, fazia o aquecimento... Nilton Santos comandava o polichinelo... Todos já transpiravam, prontos para o jogo...
Menos Garrincha... Sozinho, sentado num banco de madeira, sem camisa, colocava as meias... Assobiava, fora daquilo tudo... Pegou uma das chuteiras, bateu com as travas no chão, olhou distraidamente para todo aquele movimento... Seus companheiros continuavam com o polichinelo, gritando em voz alta: “um, dois, três, quatro, cinco, seis, o Bonsuça é "freguês"... Os dirigentes, eufóricos com a campanha da equipe, davam entrevistas às estações de rádio, distribuíam tapinhas nas costas dos jogadores...
- "Vamos lá, vamos lá, é p'ra ganhar...".
- "Não pode perder, perder p'ra ninguém...", cantavam outros o trechinho do hino do clube...
Garrincha, sério no seu canto, sem parar de assobiar, calçava agora suas chuteiras...
Vestiu a camisa nº 7, a gloriosa... Nilton Santos, seu compadre, que já conhecia bem suas manhas, chamou:
- Anda Mané, vem logo, "esquenta" um pouquinho...
Ele, que não gostava de fazer exercícios físicos, bateu com as chuteiras no chão e fez um aceno com a mão direita:
- Já vou, espera aí, essa chuteira tá apertada...
Nilton sorriu, sabia que ele iria "enrolar"...

* * *

Entraram no vestiário vários dirigentes do Bonsucesso. O Presidente, o Diretor de Futebol, o técnico e outros mais... Dirigiram-se aos colegas botafoguenses... Enquanto conversavam em voz baixa, olhavam todos para Garrincha, que, em seu canto, urinava tranqüilamente... Pareciam ter algum receio de se dirigir a ele... Olhavam-no com respeito, para o maior jogador de futebol do mundo, que, humildemente, mijava num vestiário de quinta categoria, de um pequeno clube de subúrbio carioca... Ah! se Garrincha estivesse jogando na Europa...
Os dirigentes do Botafogo chegaram até perto dele. Um deles falou:
- Mané, o pessoal do Bonsucesso veio pedir p'ra gente falar com você não forçar muito em cima do lateral esquerdo deles...
Garrincha olhou para eles, coçou a orelha e perguntou:
- Ué, por quê? O que é que eu faço?
Um dos dirigentes respondeu:
- É que esse lateral a gente tá pensando em contratar, já que o Rildo vai p'ro Santos... -- E, eles estão doidos p'ra vender... Ele tem 19 anos e promete muito...
Mané olhou novamente, já agora desconfiado... O dirigente logo emendou, temeroso de sua reação, inclusive se ele fosse comentar com Nilton Santos, indiscutivelmente o grande líder da equipe, com total ascendência sobre os outros jogadores:
- Finge que você sentiu alguma coisa, passa a mão no joelho, cai no chão, mas não parte p'ra cima dele... Como eu te disse, ele promete e o preço do passe não vai custar caro...
Garrincha coçou novamente a orelha direita... Perguntou, sério:
- O resto do time sabe disso? Olha o bicampeonato...
- Não, ninguém vai saber. Além do mais, o jogo é fácil...
- Bem, se valer a pena p'ro Botafogo... tudo bem - completou, fazendo um aquecimento de mentirinha...


* * *

Os times entraram em campo... O estadinho quase veio abaixo... A torcida do Bonsucesso, fanática, provocava a do Botafogo... Antigamente, antes da maldição da caixa d'água que desabou sobre o futebol carioca, os jogos dos times pequenos contra os grandes, nos estádios daqueles, eram uma verdadeira festa... Não havia clube pequeno sem torcida... Bonsucesso, Madureira, Canto do Rio de Niterói, Olaria, São Cristóvão... Hoje, o deserto, os estádios vazios, os clubes falidos...
Garrincha é vaiado logo ao sair do vestiário, próximo à torcida leopoldinense...
Todos torciam pela nova estrela do Bonsuça... Rápido, ágil, um crioulinho atrevido, todos confiavam que ele iria parar Mané... Jordan, Altair, Coronel, grandes laterais esquerdos, até com passagem pela seleção, esses não conseguiram, mas a cria da casa conseguiria... Até onde ia o fanatismo das torcidas...
Foguetes, torcida empolgada, todos felizes da vida, afinal de contas éramos bicampeões do mundo... O centro mundial do futebol era aqui... Todos tinham que se render à evidência maior...
O jogo começa... Didi lança Garrincha... A bola sai pela lateral... Cacá aprofunda, procurando Mané (estava tão acostumado, fazia aquilo de olhos fechados)... O lateral do Bonsucesso, revelação do ano, domina a bola, passa por ele e sai jogando... O gênio parecia desligado, fora do jogo... Terceira, quarta, vigésima jogada e ele se deixa dominar...
Praticamente, não tocou na bola... Ela, mágica, enfeitiçada, caprichosa, parecia fugir dos seus pés... Procurava, apenas, a jovem revelação...
O lateral se empolgou... Era a maior figura em campo... Ao final do primeiro tempo, outra bola lançada para Garrincha, procurando por ele... O gênio, esquivo, fugindo dela, não vai...
O lateral domina no peito, faz dois balõezinhos e joga por cima dele, apanhando-a do outro lado...
Termina o primeiro tempo... Zero a zero... A torcida do Bonsucesso, em delírio, aplaude seus atletas, principalmente o lateral... Gritam alguns:
- Garrincha, tu não é de nada...
Voltam para os vestiários. Garrincha e o lateral se cruzam no caminho, a torcida do Bonsucesso provocando o craque, ele bem longe daquilo tudo...
O lateral, olhos de menino, sorriso de deboche, ofegante, diz p'ra ele:
- Você já acabou, mascarado... Vou te enfiar uma bola debaixo das pernas no segundo tempo...
Mané, ainda desligado, mas sério, baixou o olhar na sua timidez característica (talvez procurasse uma pipa perdida, ou uma bola de gude)... O coro da torcida contrária gritava alto contra ele... As vaias eram intensas... Levantou os olhos...
Disse para o lateral, quase num sussurro:
- Eu acho que você não quer jogar no Botafogo não...
O menino ficou surpreso, não entendeu... Voltou para o vestiário meio abobalhado, sem ter compreendido direito o que o gênio lhe dissera... Ficou matutando, enquanto tomava o banho do intervalo...

* * *

No segundo tempo, ele compreendeu...
Humilhado, driblado, caído, sentado no chão, após levar mais uma bola por entre as penas, no auge dos seus 19 anos, só tinha tempo para olhar para trás, vendo o gênio, bola escrava entre os pés, quase junto à linha de fundo, mais uma vez levantar o braço esquerdo e com os dedos indicar a Amarildo ou a Quarentinha onde o centro da direita iria parar...
BOTAFOGO 5 X 0...
É, gente boa, o lateral acabou sendo contratado pelo Glorioso... A pedido de Garrincha...


* * *

E DAÍ...

E DAÍ...




O nome dela: Jane.
O dele: Márcio.
Nenhum dos dois tinha certidão de nascimento... Não foram registrados, não conheceram direito o pai e a mãe... Deles, somente restaram lembranças vagas, imprecisas, de uma infância miserável, faminta, maltratada...
Chamavam-se por esses nomes quando se conheceram, apenas para ter algum nome para um se dirigir ao outro... Dormiam nas calçadas, em Araruama, lá no interior do Estado do Rio...
Ele, com quinze anos; ela, com treze...
Chegaram à Tonelero, em Copacabana... Pediam uma coisa aqui, outra ali...
Sobreviviam...
Era tão bonito quando eles pediam alguma coisa e você dava... Um pedaço de pão, uma roupa velha, até uma oração...
" Crianças, isto é o que eu posso fazer por vocês...".
Eles... tão distantes, tão descrentes de tudo e de todos... Olhares tristes, sem esperança, sem presente, sem futuro... Araruama, bem longe... Nada a ver com Copacabana, aonde vieram parar pensando conseguir algo melhor... Onde viemos parar?
Deixaram rolar as coisas... Uma migalha aqui, outra ali... A vida, tão difícil em Copacabana, decidiram voltar para Araruama... Pediram a você dinheiro emprestado para a passagem, você deu...
Araruama, pior ainda... Fome. Frio. Sede... Sem ninguém para lhes dar a mão, para ajudar... Preconceito contra a pobreza, pior que no Rio... Nem ao menos as migalhas de Copacabana...
Voltaram... A pé, de carona... Tonelero, outra vez...
Juntaram-se a um outro grupo de abandonados, da mesma idade que eles, que já tinham tomado conta de seu antigo ponto na calçada, debaixo da marquise daquele edifício, quase esquina com Santa Clara...
Quatro meninos e duas meninas, todos sujos, maltrapilhos e subnutridos...
Durante o dia, perambulavam pelas ruas, pediam aqui e ali, comiam o que conseguiam arranjar... Um pão duro, um café com leite, quando tinham alguma sorte...
À noite, reuniam-se todos embaixo da marquise, dividiam entre si oito cobertores velhos, aqueciam-se nas madrugadas frias dormindo encostados uns nos outros, os corpos sujos e magros embolados, gozando inconscientemente, até sem perceberem....Jane engravidou... O pai, talvez não fosse o Márcio, não sabia em quem encostara... E daí?
Márcio morreu... assassinado por um segurança de um cara rico, todo poderoso, grande industrial, morador da Tonelero, que nem sabia onde ficava Araruama... Márcio pediu uma esmola ao segurança, este não gostou, Márcio respondeu com um palavrão... No dia seguinte, pela manhã, seu corpo estava estirado no chão, junto ao túnel da Pompeu Loureiro, com duas balas na cabeça...
E daí?
Jane, hoje continua embaixo de uma marquise, morando em uma calçada... Arranjou um novo companheiro, Reginaldo... Está com uma barriga de sete meses...
Tonelero jamais, distância dela...
Ali mataram o Márcio...
Santa Clara, agora...
E daí?

* * *

quarta-feira, julho 18, 2007

O 484...

O 484 ...




Silvinha chorava... Choro sentido, sofrido, remoído... Duas pequenas lágrimas, somente duas, rolaram por seu rosto... Procurou controlar-se... Pegou o lenço YES, enxugou o arranhão na maquiagem e foi em frente...
A Nossa Senhora de Copacabana estava cheia, gente às pampas andando de um lado p'ro outro, de cima para baixo e vice-versa... Era pouco mais de meio-dia...
Fez sinal para o 484, o COPACABANA - OLARIA. Passava na Praça XV, ali ela ia descer para encontrar-se com Sérgio, seu noivo.
Ainda bem que o ônibus não estava muito cheio... Detestava viajar em pé... Pagou a passagem, sentou-se num dos primeiros bancos...
Pouco tempo depois, sentou-se ao seu lado um elemento não muito simpático, até mal encarado... Sentou-se e foi logo abrindo as pernas, encostando a dele na dela, que usava uma mini-saia.
Silvinha retraiu-se e começou a ler aquela revistinha de sempre (a que usualmente carregava em sua bolsa), evitando olhar para o elemento. Este, olhos vermelhos, mas, ao mesmo tempo, com cara de sono, fingia dormir. Abria e fechava os olhos, a cabeça cambaleava, procurava encostar-se cada vez mais junto a Silvinha...
Ela afastou-se, chegou mais p'ro canto... Já estava cansada, passara a noite em claro, tinha chorado muito, tudo o que tinha direito, já havia ressecado suas lágrimas...
- "Cara chato", pensou...
Sua mente divagava, tudo para ela estava tão longe... Perdera a pessoa de quem mais gostava, Joaquim, seu irmão... Morrera tão depressa, tão frágil, sem avisar, sem mandar notícias...
Só soubera de sua morte pelo telegrama... Três simples palavras... "SEU IRMÃO MORREU...".
Aí, para ela, tudo desabou... Sempre foram tão amigos... Quanto ela sofreu, desde que seu pai e sua mãe morreram naquele maldito desastre, em l975... Joaquim e ela, ele três anos mais velho, os dois sozinhos no mundo, combinaram não recorrer a ninguém, a qualquer parente...
Largaram todos eles de lado, deram-se os dois as mãos e foram à luta... Ele, o grande "play-boy", o aproveitador da vida... Quem diria...
Os dois decidiram que cada um iria levar a sua vida, mas sempre comunicando um ao outro o que iriam fazer... Um sabendo os passos que o outro iria dar....Foram treze anos... Joaquim foi para Roma, Silvinha continuou no Rio. Mas, sempre se telefonavam, se falavam, se curtiam...
O elemento arregalou os olhos. Encostou-se mais junto a ela... O 484 já trafegava pelo Aterro...
Silvinha deu-lhe um empurrão... O elemento, doidão, acreditou que ela correspondera ao seu "encostão"... O ônibus, em velocidade, fez uma curva em que quase derrapou... Silvinha acabou encostando sua perna na do elemento... Ele teve a certeza de que ela gostou e se empolgou... Apertou a mão, com força, na perna de Silvinha... Levantou-se rapidamente, os olhos esbugalhados, saliva escorrendo pela boca, já com o "trezoitão" na mão direita...
- Isto é um assalto - gritou...
Todos olhavam para ele... Olhos injetados, suor pingando pela face, a respiração apressada, o "38" numa das mãos, expressão alucinada no rosto...
Ordenou a Silvinha:
- Vai logo... pega tudo desses babacas...
Apontou-lhe o revólver, ante sua hesitação:
- Vai logo, senão eu te mato...
Ela, até então desligada de tudo aquilo, não entendendo direito o que se passava, voltou à realidade... Olhou para o elemento, ainda ao seu lado, em pé, com o revólver ameaçando todo mundo...
O motorista não sabia o que fazer... Diminuiu a velocidade, estavam em frente ao EBONY'S... O trocador, apavorado, apanhou todo o dinheiro que havia na caixa, mostrou-o ao elemento e gritou, lá do fundo do ônibus:
- Toma, toma, pega logo, é todo seu...
Todos estavam apavorados, quase em pânico, apesar de ser aquela uma cena quase diária, atualmente, no Rio de Janeiro...
Silvinha continuava onde estava. sentada, enquanto o elemento da arma na mão estava ao seu lado, em pé, junto à porta do ônibus, ainda espumando, nervoso...
Ele deu-lhe um tapa no rosto...
- Vai, sua piranha, me ajuda, pega logo o dinheiro desses babacas...
Ela ainda pensava em Joaquim, na sua morte sem sentido... Seu corpo agora estava dentro de um caixão, numa capela do Caju... Viera de Roma, embalsamado, pronto para ser enterrado no jazigo da família... Grande família... Aquela que nunca ela teve... E Joaquim, seu irmão, por que fora morrer longe dela?
Olhou para o elemento, os olhos verdinhos e cintilantes, duas outras lágrimas escorrendo-lhe pela face... Lágrimas de raiva...
- Deixa de ser idiota, seu imbecil... Tu não vê que eu tenho mais problemas que você?
- 'MEU IRMÃO MORREU, SABIA?"- gritou... “VÊ SE NÃO ENCHE O MEU SACO...".
O elemento olhou para ela, espantado, cara abobalhada, os olhos ainda esbugalhados...
Todos no ônibus, aterrorizados, olhavam para os dois...
Ele, ainda em transe, olhava para ela, tentando encarar o seu olhar... Não conseguia...
Ela, olhos de fera, encarava-o firmemente, rangendo os dentes... Todo o seu corpo tremia... O dele, também... Pobre coitado, 28 anos, preto, sem infância, sem pai e mãe conhecidos, rememorou rapidamente o que fora sua vida até ali... Favela, rua sem dono, início, meio e fim no.crime... Prisão, rua, prisão, Delegacia de Polícia... Um "ganho" aqui, outro ali, um prato de comida... Bandidinho vagabundo, nada mais que isso, é o que ele fora durante toda sua vida...
Não agüentava mais aquele olhar dela, tenso, agressivo... Não suportava todo no mundo no ônibus olhando para ele, olhares de medo, mas também de censura...
Abaixou a cabeça e chorou... Chorou com a arma na mão...
Olhou novamente para ela, olhar agora gelado, sem expressão...
Deu-lhe dois tiros, bem no meio da testa...
Depois, levou a arma à cabeça e fez um único disparo...

* * *

O 484 parou na rua Santa Luzia, esquina com Graça Aranha, 3ª DP...
Saiu do seu itinerário, não passou pela Praça XV...
Ali, Sérgio, nervoso, esfregando as mãos, esperava por Silvinha...


* * *

terça-feira, julho 10, 2007

DODÔ, o craque...

Dodô, o craque...
Lamentável o recente acontecimento envolvendo o excelente jogador de futebol DODÔ, do Botafogo de Futtebol e Regatas.
Atleta de passado imaculado, pessoa tranqüila dentro e fora do campo, consciente de suas responsabilidades profissionais, não é crível que tenha intencionalmente usado substância proibida que, em tese, iria beneficiar o seu rendimento dentro dos gramados.
Jogador de carreira vitoriosa, chefe de família, pai recente, não seria agora, quase no final de sua jornada como atleta profissional, que iria manchá-la com a vergonhosa pecha de ter jogado dopado.
Ao contrário, a impressão que ele nos dá quando o vemos em campo é a de ser até sonolento demais, de pouco se empenhar nos jogos que disputa.
Dono de uma técnica invejável, o denominado "autor dos gols bonitos" não precisaria de qualquer estímulo para desempenhar suas funções dentro das quatro linhas.
Não discutimos a existência da referida substância no exame a que foi submetido. O que não podemos aceitar é que ele a tenha ingerido conscientemente. E, se ela foi colocada por alguém mal-intencionado em sua alimentação, o que não é tão difícil de acontecer, tendo em vista que a maioria das refeições dos jogadores profissionais é feita em hotéis e restaurantes por esse Brasil afora? Alguém talvez incomodado com a brilhante campanha que o Botafogo vem fazendo neste campeonato brasileiro?
A afirmação pode ser até considerada fantasiosa, considerando-se que parte de um botafoguense, mas não é tão inverossímil assim. O que não é crível é que o jogador tenha ingerido a referida substância intencionalmente, sabendo que poderia ser flagrado facilmente num exame anti-doping. Ainda mais que ele já foi submetido a vários desses exames este ano.
No final das contas, o maior prejudicado, além do atleta, é o próprio Botafogo, que vai disputar vários jogos sem a sua importante participação em campo.
Será que o pobre do Botafogo não pode fazer uma campanha um pouquinho melhor sem despertar a inveja de seus concorrentes e de outros que não admitem vê-lo campeão? Será que a acusação de doping vai recair logo sobre o melhor jogador do time
O caso de DODÔ merece uma profunda investigação e punição dos verdadeiros culpados, para que pessoas inocentes não fiquem à mercê de uma legislação ultrapassada e nem que os clubes que os empregam sofram prejuízos irreparáveis em suas campanhas.
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Histórico
2007
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terça-feira, julho 03, 2007

ADEUS...

A D E U S ...





É uma sensação estranha, não resta dúvida, a de saber-se condenado à morte... E, pior ainda, com prazo certo. Sérgio sorriu consigo mesmo. Apertou displicentemente o botão do elevador, com o pensamento ainda preso ao passado próximo, de há poucos minutos atrás.
Acendeu um cigarro e ajeitou-se melhor dentro do paletó. Aí, então é que reparou como estava magro. Sorriu novamente, um sorriso amarelo, um pouco sem graça. Encostou-se lá no fundo, apagando o cigarro com o salto do sapato, ante o olhar de censura do ascensorista. De andar em andar, aquele cubículo foi-se enchendo de gente, até completar sua lotação. As pessoas que ali estavam continuavam a viver suas vidas, alheias ao drama que lhe ia na alma Umas conversavam alegremente, outras continuavam a discussão sobre negócios iniciada no escritório, outras apenas esperavam com impaciência a chegada ao térreo. Sérgio olhava no mostrador os andares se sucederem rapidamente nas luzinhas vermelhas, numa descida do infinito para o nada... Pareciam representar a contagem regressiva de seus dias de vida...
Sentia-se um pouco abafado, mas, surpreendentemente, estava num estado de calma em que nunca estivera antes... Finalmente, chegaram... Abriram-se as portas e aquele pessoal precipitou-se rapidamente para fora, com uma pressa incomum. Sérgio ficou vagando a esmo, sem ter a plena consciência do que estava fazendo. Esbarrava, de quando em vez, em um ou outro transeunte que passava, pedia desculpas, seguia caminhando. As calçadas, àquela hora da manhã, quase nove, fervilhavam de gente. Os homens procuravam ansiosamente os locais de trabalho. As mulheres começavam a fazer suas compras, exibindo, com elegância, as últimas novidades da moda...
Recordou-se de como o médico lhe dera a notícia... Meio sem jeito, com cuidado...
Perguntou-lhe se tinha esposa, filhos... Era um dos maiores especialistas do Brasil naquele tipo de doença e, por isso, foi procurá-lo... Vários exames, depois a consulta, agora o diagnóstico...
Esposa, filhos... Bem que poderia ter tido. Mas, namoradas firmes só tivera duas... E, quando o namoro começou a ficar perigoso, encaminhando-se para o inevitável casamento, tirara o corpo fora... Não queria se prender a ninguém. Ou tinha medo? Bem, vamos dizer que preferia a liberdade...
O médico procurava as palavras com cuidado para dar-lhe o diagnóstico. Sérgio logo percebeu que a coisa era grave. Abortou os rodeios do médico, pedindo-lhe que fosse direto e franco, por pior que fosse a notícia..Ele, então, foi cruel... Disse-lhe, as palavras atingindo Sérgio como uma chicotada, que ele estava com câncer no estômago... No último grau... Três meses de vida, mesmo assim, com boa vontade...
Operação? Inútil...
As dores que sentia ultimamente tinham sua razão de ser...
Relembrou seu passado. Trabalho normal, que lhe permitira comprar e mobiliar seu apartamento e ter uma vida financeira estável, sem maiores problemas. Não ficara rico, nem deixaria nada quando se fosse. Também, deixar p'ra quem?
Seu apartamento de solteiro... Se aquelas paredes falassem, passariam uma eternidade contando histórias da carochinha... Histórias de amor e ternura, de copos tilintando à meia-luz, com o fundo de uma música de Ray Coniff em surdina na alta-fidelidade...
Bárbara, sua primeira namorada... Sua figura veio-lhe claramente ao pensamento, como se já não houvessem transcorrido onze anos que a deixara. Tinha ele dezoito naquela época, ansiava por conhecer a vida. Gostava muito de Bárbara, até que ela fez a bobagem. Depois de apenas dois meses de namoro, convidou-o a conhecer seus pais e passar a falar com ela em casa...
Ora, namoro em casa era prenúncio de noivado e ele achou muito cedo para assumir um compromisso... Afinal, ela não era bem o seu tipo...
Esqueceu-se logo da primeira "gamação" nos braços de Mônica... Depois, vieram Sylvia, Sônia e Suely, a trindade dos "S" de sua vida. Amara a todas com o mesmo carinho, com a mesma ternura, sem distinção de uma para outra. O amor, para ele, era constituído de momentos, pouco importando se continuasse ou não. E, os momentos de amor que tivera, soubera aproveitá-los ao máximo...
Pensou de novo na morte. Era tão triste ir embora, quando havia ainda tanta coisa a tirar da vida. O estômago pareceu-lhe pesado, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Seria essa a sensação da morte?
Continuava a vagar pelas ruas sem rumo, sem direção, como um autômato. Não via o que se passava à sua volta, esbarrando, agora, mais amiúde, em tudo e em todos...
Lembrava-se de Regina, Marlene, Nilza, Célia e também das passageiras, daquelas de um fim-de-noite qualquer. Sentiu-se um pouco frustrado. Por quê? Talvez por não ter encontrado aquela que o completasse, que o fizesse esquecer a vida boêmia para formar um lar e viver só para ele... Aquela que, se lhe fossem dadas mil vidas mais, queria só uma guardar para vivê-la toda sempre ao lado dela... Era sua deusa sonhada... Talvez loura? Talvez... Talvez morena? Poderia ser... Quem sabe ruiva? Não importava... O que realmente era importante é que seria a "sua", e por ela viveria e morreria...
Sorriu novamente... Sinceramente, achava que não daria certo naquele tipo de vida. A monotonia da felicidade conjugal acabaria por entediá-lo. E ele acabaria voltando para os botequins, para os puteiros, para a noite que tanto amava... Acabaria por fazer a infelicidade de sua mulher, impedindo que ela encontrasse um outro que a compreendesse, que quisesse viver uma vida rotineira, do dia-a-dia comum, enfim, uma vida normal, igual a de todo mundo... Isso era algo que absolutamente não conseguiria fazer... Preferia, assim, viver como um lobo solitário, aproveitando na sofreguidão de um momento de amor, a beleza que a liberdade lhe dava... Sem satisfações, sem cobranças, sem amanhã... Dono do seu nariz, dos seus atos, das suas noites de lua cheia... Quantas noitadas alegres passara em companhia de seus amigos e amigas, daqueles que a sociedade chamava de irresponsáveis... Esses momentos, dele ninguém poderia tirar...
Fez as contas: três meses mais e já estaria dentro da primavera. Ótimo, já era um consolo. Primavera que, para ele, com as flores começando a desabrochar, com os pássaros chilreando alegremente na copa das árvores, seria a estação do adeus... O crepúsculo de uma vida que muitos considerariam inútil... "Morreu, coitado... Também, não fez nada que prestasse... Só sabia cair na farra...", diriam os puritanos, donos da verdade.
Continuava a andar, tão absorto em seus pensamentos que, ao atravessar a rua, não viu o enorme ônibus que avançava velozmente, a fim de preencher o espaço por ele ocupado no mundo, naquela fração de segundo do tempo...