quarta-feira, julho 18, 2007

O 484...

O 484 ...




Silvinha chorava... Choro sentido, sofrido, remoído... Duas pequenas lágrimas, somente duas, rolaram por seu rosto... Procurou controlar-se... Pegou o lenço YES, enxugou o arranhão na maquiagem e foi em frente...
A Nossa Senhora de Copacabana estava cheia, gente às pampas andando de um lado p'ro outro, de cima para baixo e vice-versa... Era pouco mais de meio-dia...
Fez sinal para o 484, o COPACABANA - OLARIA. Passava na Praça XV, ali ela ia descer para encontrar-se com Sérgio, seu noivo.
Ainda bem que o ônibus não estava muito cheio... Detestava viajar em pé... Pagou a passagem, sentou-se num dos primeiros bancos...
Pouco tempo depois, sentou-se ao seu lado um elemento não muito simpático, até mal encarado... Sentou-se e foi logo abrindo as pernas, encostando a dele na dela, que usava uma mini-saia.
Silvinha retraiu-se e começou a ler aquela revistinha de sempre (a que usualmente carregava em sua bolsa), evitando olhar para o elemento. Este, olhos vermelhos, mas, ao mesmo tempo, com cara de sono, fingia dormir. Abria e fechava os olhos, a cabeça cambaleava, procurava encostar-se cada vez mais junto a Silvinha...
Ela afastou-se, chegou mais p'ro canto... Já estava cansada, passara a noite em claro, tinha chorado muito, tudo o que tinha direito, já havia ressecado suas lágrimas...
- "Cara chato", pensou...
Sua mente divagava, tudo para ela estava tão longe... Perdera a pessoa de quem mais gostava, Joaquim, seu irmão... Morrera tão depressa, tão frágil, sem avisar, sem mandar notícias...
Só soubera de sua morte pelo telegrama... Três simples palavras... "SEU IRMÃO MORREU...".
Aí, para ela, tudo desabou... Sempre foram tão amigos... Quanto ela sofreu, desde que seu pai e sua mãe morreram naquele maldito desastre, em l975... Joaquim e ela, ele três anos mais velho, os dois sozinhos no mundo, combinaram não recorrer a ninguém, a qualquer parente...
Largaram todos eles de lado, deram-se os dois as mãos e foram à luta... Ele, o grande "play-boy", o aproveitador da vida... Quem diria...
Os dois decidiram que cada um iria levar a sua vida, mas sempre comunicando um ao outro o que iriam fazer... Um sabendo os passos que o outro iria dar....Foram treze anos... Joaquim foi para Roma, Silvinha continuou no Rio. Mas, sempre se telefonavam, se falavam, se curtiam...
O elemento arregalou os olhos. Encostou-se mais junto a ela... O 484 já trafegava pelo Aterro...
Silvinha deu-lhe um empurrão... O elemento, doidão, acreditou que ela correspondera ao seu "encostão"... O ônibus, em velocidade, fez uma curva em que quase derrapou... Silvinha acabou encostando sua perna na do elemento... Ele teve a certeza de que ela gostou e se empolgou... Apertou a mão, com força, na perna de Silvinha... Levantou-se rapidamente, os olhos esbugalhados, saliva escorrendo pela boca, já com o "trezoitão" na mão direita...
- Isto é um assalto - gritou...
Todos olhavam para ele... Olhos injetados, suor pingando pela face, a respiração apressada, o "38" numa das mãos, expressão alucinada no rosto...
Ordenou a Silvinha:
- Vai logo... pega tudo desses babacas...
Apontou-lhe o revólver, ante sua hesitação:
- Vai logo, senão eu te mato...
Ela, até então desligada de tudo aquilo, não entendendo direito o que se passava, voltou à realidade... Olhou para o elemento, ainda ao seu lado, em pé, com o revólver ameaçando todo mundo...
O motorista não sabia o que fazer... Diminuiu a velocidade, estavam em frente ao EBONY'S... O trocador, apavorado, apanhou todo o dinheiro que havia na caixa, mostrou-o ao elemento e gritou, lá do fundo do ônibus:
- Toma, toma, pega logo, é todo seu...
Todos estavam apavorados, quase em pânico, apesar de ser aquela uma cena quase diária, atualmente, no Rio de Janeiro...
Silvinha continuava onde estava. sentada, enquanto o elemento da arma na mão estava ao seu lado, em pé, junto à porta do ônibus, ainda espumando, nervoso...
Ele deu-lhe um tapa no rosto...
- Vai, sua piranha, me ajuda, pega logo o dinheiro desses babacas...
Ela ainda pensava em Joaquim, na sua morte sem sentido... Seu corpo agora estava dentro de um caixão, numa capela do Caju... Viera de Roma, embalsamado, pronto para ser enterrado no jazigo da família... Grande família... Aquela que nunca ela teve... E Joaquim, seu irmão, por que fora morrer longe dela?
Olhou para o elemento, os olhos verdinhos e cintilantes, duas outras lágrimas escorrendo-lhe pela face... Lágrimas de raiva...
- Deixa de ser idiota, seu imbecil... Tu não vê que eu tenho mais problemas que você?
- 'MEU IRMÃO MORREU, SABIA?"- gritou... “VÊ SE NÃO ENCHE O MEU SACO...".
O elemento olhou para ela, espantado, cara abobalhada, os olhos ainda esbugalhados...
Todos no ônibus, aterrorizados, olhavam para os dois...
Ele, ainda em transe, olhava para ela, tentando encarar o seu olhar... Não conseguia...
Ela, olhos de fera, encarava-o firmemente, rangendo os dentes... Todo o seu corpo tremia... O dele, também... Pobre coitado, 28 anos, preto, sem infância, sem pai e mãe conhecidos, rememorou rapidamente o que fora sua vida até ali... Favela, rua sem dono, início, meio e fim no.crime... Prisão, rua, prisão, Delegacia de Polícia... Um "ganho" aqui, outro ali, um prato de comida... Bandidinho vagabundo, nada mais que isso, é o que ele fora durante toda sua vida...
Não agüentava mais aquele olhar dela, tenso, agressivo... Não suportava todo no mundo no ônibus olhando para ele, olhares de medo, mas também de censura...
Abaixou a cabeça e chorou... Chorou com a arma na mão...
Olhou novamente para ela, olhar agora gelado, sem expressão...
Deu-lhe dois tiros, bem no meio da testa...
Depois, levou a arma à cabeça e fez um único disparo...

* * *

O 484 parou na rua Santa Luzia, esquina com Graça Aranha, 3ª DP...
Saiu do seu itinerário, não passou pela Praça XV...
Ali, Sérgio, nervoso, esfregando as mãos, esperava por Silvinha...


* * *

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