terça-feira, julho 03, 2007

ADEUS...

A D E U S ...





É uma sensação estranha, não resta dúvida, a de saber-se condenado à morte... E, pior ainda, com prazo certo. Sérgio sorriu consigo mesmo. Apertou displicentemente o botão do elevador, com o pensamento ainda preso ao passado próximo, de há poucos minutos atrás.
Acendeu um cigarro e ajeitou-se melhor dentro do paletó. Aí, então é que reparou como estava magro. Sorriu novamente, um sorriso amarelo, um pouco sem graça. Encostou-se lá no fundo, apagando o cigarro com o salto do sapato, ante o olhar de censura do ascensorista. De andar em andar, aquele cubículo foi-se enchendo de gente, até completar sua lotação. As pessoas que ali estavam continuavam a viver suas vidas, alheias ao drama que lhe ia na alma Umas conversavam alegremente, outras continuavam a discussão sobre negócios iniciada no escritório, outras apenas esperavam com impaciência a chegada ao térreo. Sérgio olhava no mostrador os andares se sucederem rapidamente nas luzinhas vermelhas, numa descida do infinito para o nada... Pareciam representar a contagem regressiva de seus dias de vida...
Sentia-se um pouco abafado, mas, surpreendentemente, estava num estado de calma em que nunca estivera antes... Finalmente, chegaram... Abriram-se as portas e aquele pessoal precipitou-se rapidamente para fora, com uma pressa incomum. Sérgio ficou vagando a esmo, sem ter a plena consciência do que estava fazendo. Esbarrava, de quando em vez, em um ou outro transeunte que passava, pedia desculpas, seguia caminhando. As calçadas, àquela hora da manhã, quase nove, fervilhavam de gente. Os homens procuravam ansiosamente os locais de trabalho. As mulheres começavam a fazer suas compras, exibindo, com elegância, as últimas novidades da moda...
Recordou-se de como o médico lhe dera a notícia... Meio sem jeito, com cuidado...
Perguntou-lhe se tinha esposa, filhos... Era um dos maiores especialistas do Brasil naquele tipo de doença e, por isso, foi procurá-lo... Vários exames, depois a consulta, agora o diagnóstico...
Esposa, filhos... Bem que poderia ter tido. Mas, namoradas firmes só tivera duas... E, quando o namoro começou a ficar perigoso, encaminhando-se para o inevitável casamento, tirara o corpo fora... Não queria se prender a ninguém. Ou tinha medo? Bem, vamos dizer que preferia a liberdade...
O médico procurava as palavras com cuidado para dar-lhe o diagnóstico. Sérgio logo percebeu que a coisa era grave. Abortou os rodeios do médico, pedindo-lhe que fosse direto e franco, por pior que fosse a notícia..Ele, então, foi cruel... Disse-lhe, as palavras atingindo Sérgio como uma chicotada, que ele estava com câncer no estômago... No último grau... Três meses de vida, mesmo assim, com boa vontade...
Operação? Inútil...
As dores que sentia ultimamente tinham sua razão de ser...
Relembrou seu passado. Trabalho normal, que lhe permitira comprar e mobiliar seu apartamento e ter uma vida financeira estável, sem maiores problemas. Não ficara rico, nem deixaria nada quando se fosse. Também, deixar p'ra quem?
Seu apartamento de solteiro... Se aquelas paredes falassem, passariam uma eternidade contando histórias da carochinha... Histórias de amor e ternura, de copos tilintando à meia-luz, com o fundo de uma música de Ray Coniff em surdina na alta-fidelidade...
Bárbara, sua primeira namorada... Sua figura veio-lhe claramente ao pensamento, como se já não houvessem transcorrido onze anos que a deixara. Tinha ele dezoito naquela época, ansiava por conhecer a vida. Gostava muito de Bárbara, até que ela fez a bobagem. Depois de apenas dois meses de namoro, convidou-o a conhecer seus pais e passar a falar com ela em casa...
Ora, namoro em casa era prenúncio de noivado e ele achou muito cedo para assumir um compromisso... Afinal, ela não era bem o seu tipo...
Esqueceu-se logo da primeira "gamação" nos braços de Mônica... Depois, vieram Sylvia, Sônia e Suely, a trindade dos "S" de sua vida. Amara a todas com o mesmo carinho, com a mesma ternura, sem distinção de uma para outra. O amor, para ele, era constituído de momentos, pouco importando se continuasse ou não. E, os momentos de amor que tivera, soubera aproveitá-los ao máximo...
Pensou de novo na morte. Era tão triste ir embora, quando havia ainda tanta coisa a tirar da vida. O estômago pareceu-lhe pesado, um calafrio percorreu-lhe a espinha... Seria essa a sensação da morte?
Continuava a vagar pelas ruas sem rumo, sem direção, como um autômato. Não via o que se passava à sua volta, esbarrando, agora, mais amiúde, em tudo e em todos...
Lembrava-se de Regina, Marlene, Nilza, Célia e também das passageiras, daquelas de um fim-de-noite qualquer. Sentiu-se um pouco frustrado. Por quê? Talvez por não ter encontrado aquela que o completasse, que o fizesse esquecer a vida boêmia para formar um lar e viver só para ele... Aquela que, se lhe fossem dadas mil vidas mais, queria só uma guardar para vivê-la toda sempre ao lado dela... Era sua deusa sonhada... Talvez loura? Talvez... Talvez morena? Poderia ser... Quem sabe ruiva? Não importava... O que realmente era importante é que seria a "sua", e por ela viveria e morreria...
Sorriu novamente... Sinceramente, achava que não daria certo naquele tipo de vida. A monotonia da felicidade conjugal acabaria por entediá-lo. E ele acabaria voltando para os botequins, para os puteiros, para a noite que tanto amava... Acabaria por fazer a infelicidade de sua mulher, impedindo que ela encontrasse um outro que a compreendesse, que quisesse viver uma vida rotineira, do dia-a-dia comum, enfim, uma vida normal, igual a de todo mundo... Isso era algo que absolutamente não conseguiria fazer... Preferia, assim, viver como um lobo solitário, aproveitando na sofreguidão de um momento de amor, a beleza que a liberdade lhe dava... Sem satisfações, sem cobranças, sem amanhã... Dono do seu nariz, dos seus atos, das suas noites de lua cheia... Quantas noitadas alegres passara em companhia de seus amigos e amigas, daqueles que a sociedade chamava de irresponsáveis... Esses momentos, dele ninguém poderia tirar...
Fez as contas: três meses mais e já estaria dentro da primavera. Ótimo, já era um consolo. Primavera que, para ele, com as flores começando a desabrochar, com os pássaros chilreando alegremente na copa das árvores, seria a estação do adeus... O crepúsculo de uma vida que muitos considerariam inútil... "Morreu, coitado... Também, não fez nada que prestasse... Só sabia cair na farra...", diriam os puritanos, donos da verdade.
Continuava a andar, tão absorto em seus pensamentos que, ao atravessar a rua, não viu o enorme ônibus que avançava velozmente, a fim de preencher o espaço por ele ocupado no mundo, naquela fração de segundo do tempo...

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