quarta-feira, setembro 19, 2007

O HOMEM DO ÉTER...


O HOMEM DO ÉTER...

Calfilho



               Dele, todos zombavam, faziam chacota...
               Perambulava pelas ruas de Copacabana, barba crescida, cabelos na altura do ombro... As pernas, sempre trôpegas, exibiam várias feridas, já purulentas... As roupas, simples farrapos...
               Carregava sempre nas costas um saco de farinha sujo, já preto por falta de lavagem...
               Cheirava fortemente a éter... Era o que mais chamava a atenção das pessoas... Aquele cheiro característico que dele exalava, ao longe...
               Era como o chamavam na Santa Clara e adjacências... "O homem do éter...".
               Dormia nas calçadas, cheirava o seu éter, mas, engraçado, não perturbava ninguém... Não era indelicado, as feições, mesmo maltratadas, indicavam que não deveria ter mais de trinta e cinco anos...
                E, respeitoso...
                Certa vez, minha mulher comprava cigarros num botequim da Santa Clara, esquina com Cinco de Julho, e eu, no balcão, pedi um chope. Ela pagava na caixa os maços pedidos e o garçom tirava o meu chope. Ele aproximou-se dela, o cheiro do éter dominando o ambiente...
                Fiquei de sobreaviso (será se ele está armado?). Os empregados e fregueses riram dele, fizeram piadinhas...
                - Olha o "homem do éter", tá mais p'ra lá que p'ra cá...
                Ele, cambaleando, as pernas inchadas, sangrando as feridas, olhou para ela, distraída, de costas para ele, conferindo o troco:
                - A senhora pode me ceder um cigarro?
                Ela, surpresa, olhou para ele, ficou um pouco nervosa, temerosa ao ver sua aparência. Dirigiu um rápido olhar para mim, já sentado num tamborete, tomando o meu chope. Fiz-lhe um sinal com a cabeça, concordando... Apanhou o cigarro, afastou-se, dizendo apenas:
                - Muito obrigado...
               Olhou para mim e agradeceu, baixando, imperceptível e reverenciosamente, a cabeça... Como se dissesse: "Ele pensa que eu não o vi...".
               As pessoas no botequim riram mais uma vez quando ele se afastou...
               Alguns até disseram:
               - Vai dormir, "cachaça"...
               O dono disse para minha mulher:
               - A senhora desculpe o incômodo... Mas, ele anda sempre por aqui... A gente não pode fazer nada...
               Um outro freguês, sentado ao meu lado, disse para mim:
                - Cara folgado... Você não devia ter deixado que ela desse o cigarro...
                E, com ar de filósofo de botequim:
                - É isso que acostuma mal essa gente...
                Eu, virando o último gole do meu chope:
                - Tá tudo bem...

                                              * * *

               Dez anos antes, num hospital público do Rio de Janeiro...
Plantão de sábado para domingo... Movimento intenso de feridos, mortos, baleados, acidentados...
               Só um médico de serviço... Três enfermeiras, dois serventes... Uma loucura total... Um corre p'ra cá, outro p'ra lá, esbarrando-se nos corredores estreitos, empurrando macas, carregando frascos de soro...
               Na sala de cirurgia, mal iluminada, sem refrigeração, calor de mais de quarenta graus, o jovem médico fazia uma operação delicada... A barriga da vítima de disparo de arma de fogo já estava aberta, tripas à mostra... A enfermeira, nervosa, suando em bicas, tinha dificuldade em achar o instrumento cirúrgico solicitado... Um tumulto total, gente entrando e saindo a todo o momento, parentes de vítimas chorando pelos corredores, outros discutindo em voz alta, críticas ao governo, lamentações, desespero...
               O servente, sandália de dedo nos pés, vassoura nas mãos, coçava o nariz, tirava uma meleca que o incomodava, e, encostado na porta, assistia à cirurgia....O médico começava a extrair o projétil... Cuidadoso, mãos hábeis e sensíveis, procurava-o com extrema precisão... Suava abundantemente... Mal ou bem, mesmo diante de todas aquelas dificuldades do local, fazia-se silêncio no interior da sala... Uma incisão mais profunda, uma artéria pinçada...
                Entra na sala, esbaforida, uma das outras enfermeiras de plantão...
                 - Doutor, doutor, urgente, um outro caso de cirurgia...
                 Ele olha para ela, ainda com o bisturi na mão, o suor escorrendo-lhe pela testa...
                  - Bota na fila, não tá vendo que eu ainda não acabei com este...
                 Ela, já sem a máscara na boca, nervosa:
                 - Mas, doutor, é urgente...
                 Já descontrolado, por não ter conseguido estancar uma pequena hemorragia do baleado de barriga aberta, ele reponde, aos berros:
                  - Porra, vê se não enche o meu saco... Eu sou um só... Será que é só o seu caso que é urgente? Esse aqui também não é?
                  A enfermeira afastou-se, cabeça baixa. Deixou a sala, os olhos vermelhos, as lágrimas escorrendo-lhe pela face...
                  Não teve coragem de dizer-lhe...
                  O outro caso, o "urgente", era o filho dele, que agonizava na sala de espera da cirurgia... Sofrera um acidente de automóvel momentos antes... Três anos de idade... A mãe morrera no local... Ele acabou morrendo no hospital, coitado...
                 Tinha ido buscar o pai no trabalho para fazer-lhe uma surpresa...

* * *

                  O jovem cirurgião largou a profissão... Procurou refúgio no éter...

* * *

11 comentários:

Maria Inês disse...

Rio 06/09/2020. Ontem um amigo e conterraneio Paulo César Toscano, escreveu um texto sobre um acontecimento com um filho dele quando era criança. Interessante, como acontecem coisas iguais nao muito comuns com as pessoas. Eu e uma das minhas filhas passamos também por essa experiência em 1983. Na época morávamos em Copacabana e como de costume todas as tardes levava a filha menor para passear. Nesse dia fui direto a Ótica Brasil na Miguel Lemos/N.S. de Copacabana, receber umas lentes de contato.Enquanto aguardava as lentes notei a entrada de um morador de rua muito conhecido do bairro de Copacabana e Ipanema. ( Era um tipo afro, alto 1.85, uns 90kl mais ou menos, roupas pretas rasgadas, descalço e o pior era viciado em éter. Por onde passava exalava puro éter. Nao incomodava ninguem, pedia dinheiro se nao desse, tudo bem. ) Ele entrou e veio direto falar com a minha filha Viviane que tinha dois anos de idade branquinha, olhos azuis, cabelos cacheados que vinham até a cintura dela, parecia uma boneca. Ele estirou os braços pra ela e ela foi sorrindo e ficou olhando admirada para os cabelos e a barba enorme dele. As pessoas que estavam na loja me perguntavam como? a senhora nao vai fazer nada? é sua filha nao tem medo? ele fede...Eu olhava para a cara de felicidade daquele homem... fedido e execrado por todos e só conseguia sentir dó. Me senti agradecida a Deus por poder oferecer mesmo que por alguns instantes um pouco de felicidade aquele homem através da minha filha. Abraçado a minha filha fez gracinhas para ela ri, depois deu mais um abraço e lagrimas pesadas rolaram no seu rosto. Devolveu a minha filha e saiu enxugando as lagrimas. Uns anos depois ele sumiu das ruas e conversando com um comerciante local ele me informou que o dito senhor tinha falecido. Ele tinha grandes varizes nas pernas que sempre estouravam ia ao hospital faziam uma sutura, enfaixavam a perna e ele voltava para as ruas. Numa dessas hemorragias ele nao voltou mais. O curioso e que depois que ele faleceu ficamos sabendo que ele era médico. Foi despedido do hospital onde trabalhava e expulso de casa pela família que também morava em Copacabana, por causa do vício. Finalizando, continuo pensando do mesmo jeito ninguem é melhor nem pior do que ninguem. O que nao somos poderemos um dia ser. Tanto pra mais como pra menos. Na verdade sempre tive uma espécie de imã para atrair os execrados, doidos, bebados, prostitutas, moradores de rua, sei lá eles abrem aquele sorrisão pra mim e la vou eu kkkkk. Na continuação entra a experiência fantástica do meu amigo. Digo fantástica porque ele sentiu no ato a presença Divina naquele encontro do filho com o visitante.

Calfilho disse...

Só hoje, 8/3/2021, li seu comentário. Desculpe. A história que romanciei e baseada num fato real. Está em dois modestos livros que publiquei.

Jorge Sader Filho disse...

Carlinhos, este foi um pontapé com força! A gente vai lendo, os fatos são cada vez mais duros e no final vem a explicação dolorosa. Muitíssimo bem escrito, parabéns!
Grande abraço.
Jorge

Calfilho disse...

Valeu, Jorginho, meu amigo de mais de 67 anos. Obrigado pela leitura e comentário.

antonio disse...

Na minha infância no Leme, na primeira metade dos anos 70, ele era conhecido como Mister Éter.

Calfilho disse...

Obrigado pelo comentário.

Calfilho disse...

Obrigado pelo comentário.

Anônimo disse...

Estou lendo este texto hoje (12/10) dia das crianças. Que doloroso deve ter sido está situação. Realmente como li num comentário muito bem redigido acima, ninguém é melhor nem pior que ninguém.

Calfilho disse...

"Anônimo", por favor, identifique-se. Gostaria de saber o nome de quem me honrou com a leitura do modesto texto.

Anônimo disse...

Fiquei triste ao ler o texto . No final dos anos 70 fazia análise 3 a 4 vezes por semana na Figueiredo Magalhães e tinha meu próprio consultório ali perto . Quase todos os dias via este moço , pedia-me para comprar éter nas farmácias pois não mais lhe vendiam . Não me peçam para dizer o que eu fazia pois me esqueci. Fiquei sinceramente triste com a lembrança do moço .

Anônimo disse...

Não me lembro dele ( se é o mesmo ) como um tipo afro