sábado, outubro 13, 2007

O MAGISTRADO...

O MAGISTRADO

CALF



Era juiz no interior do Estado.
Tinha 56 anos, recusara por várias vezes a promoção para a Capital. Era, há muitos anos, o primeiro na lista de antigüidade, já poderia ser desembargador há muito tempo.
Preferiu ficar em Silvermado, comarca pequena, vida calma, tranqüila e metódica. Ali já estava por mais de 22 anos, sua primeira e única lotação desde que fora promovido a juiz titular.
Homem de rígidos princípios morais e éticos chegava diariamente ao Fórum às onze horas, início do expediente judiciário, conforme constava do Código de Organização da Justiça Estadual. Dali saía exatamente às 5 da tarde, como também determinava o referido Código. Tivesse ou não mais trabalho a fazer (exceto nos julgamentos prolongados do Tribunal do Júri). A população da cidade costumava dizer que os relógios das pessoas eram acertados pela "hora em que o Dr. Mario entra e sai do Fórum".
Vestia-se formalmente, com extrema sobriedade... Terno escuro (cinza ou preto), sempre bem passado colete, gravata discreta e um indefectível relógio, que trazia no bolsinho dianteiro da calça, preso a uma corrente de ouro.
Era casado com Maria há 32 anos, mulher de educação tradicional, feita sob medida para ele... Mario e Maria...
Residiam numa casa bonita, bem no centro da pequena cidade, jardim cheio de bem cuidadas roseiras e outras flores, dois andares, cômodos espaçosos, bem claros e ventilados...
Não tinham filhos (porque assim o decidiram).
Mas, gostavam sinceramente um do outro, passando reciprocamente uma atmosfera de carinho e compreensão pouco vista em outros casais. Se já não se amavam loucamente, com a paixão própria da juventude que já se perdera no tempo, respeitavam-se e se derramavam em atenções mútuas. Espontaneamente, sem afetação, quer estivessem sozinhos ou na presença de estranhos.
Dormiam em quartos separados, no segundo andar ("para preservar a privacidade de cada um").
Mas, religiosamente, a cada quinze dias, Mario ia ao quarto de Maria, onde mantinham conjunção carnal, dever sagrado entre um casal unido pelo matrimônio.
Antes, Mario preparava-se para todo o ritual que antecedia o ato sexual. Tomava um longo banho, perfumava-se discretamente, passava álcool nas mãos com cuidado... Maria, também, sabedora de que era chegado o dia, preparava-se com esmero para receber o marido, colocando um belo roupão cor-de-rosa e soltando os longos cabelos já começando a ficar grisalhos, normalmente presos no alto da cabeça.
Carnaval de 1976.
Mario começou a assistir o desfile das escolas de samba na televisão, na sala da casa, no primeiro andar.
Maria, em seu quarto, após o demorado banho, já vestindo o roupão cor-de-rosa, esperava pelo marido. Era o dia...
Às 9 da noite em ponto, Mario subiu.
A porta do quarto da mulher estava apenas encostada, como costumava acontecer a cada quinze dias (marcados no calendário dependurado na cozinha).
Mario entrou, tirou o pijama, abriu o roupão da mulher com delicadeza e, sem dizerem qualquer palavra, consumaram o ato sexual. "Papai e mamãe", é claro.
Após a satisfação da função biológica, Mario torna a vestir o pijama, dizendo para Maria:
- Até amanhã, Maria, durma bem.
Ela, ainda um pouco ofegante, respondeu:
- Até amanhã. Durma bem você também.
Após Mario sair do quarto, Maria levantou-se, tomou uma rápida chuveirada, trancou a porta e deitou-se outra vez, logo caindo no sono (como habitualmente fazia).
Mario foi até seu quarto, tomou outro banho, vestiu um outro pijama e, sem sono, decidiu descer para continuar assistindo o desfile das escolas.
Ligou a televisão, sentou-se no confortável sofá, pegou um refrigerante e biscoitos.
Desfilou o Salgueiro, depois a Mangueira, veio a Beija-Flor...
Mulatas exuberantes, seios à mostra, praticamente nuas, uma minúscula tanguinha, fingindo cobrir-lhes as partes íntimas, cabelinhos enrolados aparecendo na região pubiana, cheiro de pecado no ar, parecendo querer sair da tela de 20 polegadas...
Mario foi ficando excitado, o pênis começou a enrijecer, o pijama foi ficando molhado por um líquido viscoso saído ninguém sabe de onde.
Não conseguindo conter o desejo que o dominava, incontrolável, sobe as escadas e, voz suplicante, murmura, batendo na porta do quarto de Maria:
- Maria... Maria...
A mulher desperta do sono recém-iniciado. Ainda meio sonolenta, voz arrastada, reconhece a voz do marido. Pergunta, um pouco preocupada:
- Sim, Mario. O que aconteceu? Está precisando de alguma coisa?
Ele, gaguejando, voz meio sem graça, responde, perguntando:
- Maria, você se incomodaria... se incomodaria... de me adiantar uma quinzena?
A mulher pula da cama, e já sem qualquer peça de roupa no corpo, abre prazerosamente a porta do quarto...
Após a noite sem limites que tiveram (ela chegou a ficar de quatro para a penetração por trás), a primeira em tantos anos de vida em comum, na manhã seguinte, o relógio da igreja matriz da cidade, pela primeira vez, deu onze horas antes que o Dr. Mario chegasse ao Fórum...


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