sábado, outubro 27, 2007

MANEQUINHO DO LICEU...

MANEQUINHO DO LICEU


CALF



Conheci-o em 1958.
Eu, no segundo científico. Ele, no quarto ginasial.
Timidamente, aproximou-se do pessoal do Grêmio, interessado em participar de suas atividades, principalmente as esportivas.
Cabelo castanho-claro cacheado num topete caído na testa, tipo Elvis Presley, um dos seus ídolos. Vivia cantarolando uma musiquinha ou outra do então “rei do rock”.
Seu outro grande ídolo era Almir, o “Pernambuquinho”, então estrela máxima do Vasco, supercampeão de 1958.
O Brasil, naquele ano, respirava futebol por todos os poros, após a inesquecível campanha da Suécia, que nos deu o primeiro título de campeões do mundo.
E, para Luiz Carlos, Almir só não participara daquela seleção porque estava contundido. O topete que usava também era uma homenagem ao craque vascaíno, que ostentava um semelhante caído na testa.
A propósito: seu nome verdadeiro era Luiz Carlos, mas todo o mundo o chamava carinhosamente pelo apelido: Maneco ou Manequinho.
Enturmado no Grêmio, passou a participar de suas atividades. Ia ao colégio todas as tardes, depois das aulas do turno da manhã e de uma rápida passada em casa para um almoço ligeiro, para ajudar na confecção das balizas de futebol de salão. Lixou a madeira dos postes e travessão, pintou-os de amarelo, a cor escolhida após votação entre os liceístas.
No dia de inauguração, uma festa num sábado á tarde.
O severo diretor não queria permitir a abertura do colégio aos sábados. Foi convencido a muito custo pelos alunos do Grêmio que se comprometeram a levar um professor de Educação Física para ficar responsável pela preservação do colégio.
Apesar de ser uma festa do Grêmio, até então freqüentado apenas pelos rapazes, várias meninas compareceram. Inclusive atraídas pela promessa de formação de uma equipe de vôlei feminino. Mas, a maioria delas acompanhava um ou outro craque do então embrionário time de futebol de salão do Liceu. Era a namorada do Irapuam, do Telúrio, do Regê, e Verinha, que então flertava com Manequinho. Além de outros casaizinhos de jovens alunos que nada tinham a ver com o futebol, mas que começavam a ter a oportunidade de curtir um pouco mais o seu colégio, fora dos dias de aula.
Realmente, foi uma festa. Recebemos o Plínio Leite, para uma partida amistosa contra os nossos dois times de futebol de salão.
O segundo, com Irapuam no gol, Carrano de parado, Eduardo e Carlinhos nas alas e Manequinho de pivô. Ganhamos de 5 X 3. Três gols de Maneco, um de Eduardo, outro de Carlinhos.
O primeiro time, com Maia no gol, Paulinho Massa de parado, Antonio Matheus e Sérgio Frigideira de alas e Ronaldo de pivô. Liceu 10 X 2.
Depois, quase todos os sábados, já agora com a aquiescência do nosso diretor (o professor Aldo só tinha fama de mau, por dentro era possuidor de um enorme coração), realizávamos festivais vespertinos, com partidas de futebol de salão, vôlei masculino e feminino e basquete.
O ano letivo terminou e, mesmo nas férias de início de ano, conseguimos reunir aqueles que não viajaram para alguns sábados à tarde no Liceu. Sempre com a presença do professor Alber, de Educação Física, e de Azer Ribeiro, que abria os vestiários para o pessoal.
Voltamos às aulas em março de 1959, meu último ano de científico e que também deveria ser o derradeiro no Liceu.
As atividades do Grêmio se intensificaram. Além dos esportes, continuamos com a “Hora do Grêmio”, nos recreios dos turnos da manhã e tarde. As excursões, culturais e esportivas: Quinta da Boa Vista, Volta Redonda (para visita à Cia. Siderúrgica), Angra dos Reis ( Colégio Naval), Marambaia e Cachoeiro do Itapemirim, entre outras.
Na época das festas juninas, organizamos quermesses e arraiais no pátio, com danças de quadrilha e outras típicas (o quentão era vendido escondido dos professores). Muita gente comparecia, já agora com as meninas em número maior, a maioria delas acompanhadas das mães severas, zelando pelo bom nome das filhas.
Manequinho participava de todos aqueles acontecimentos com intensidade. Dos torneios e jogos de futebol de salão, das festas e bailes, das excursões.
Adorava as brincadeiras que o pessoal fazia uns com os outros. Mesmo quando era ele a vítima. Uma vez, no início de 59, fizemos uma excursão ao Colégio Naval, em Angra dos Reis. Levamos os dois times de futebol de salão, vôlei, basquete, futebol de campo, até water-polo, mesmo sem nunca termos jogado esse esporte. Na ida para o Colégio, pegamos uma lancha da Marinha, um “aviso”, como era conhecida dos militares. Alguns dos alunos colocaram suas mochilas no chão e deitaram sobre elas, curtindo o maravilhoso sol daquela manhã de setembro.
Manequinho começou a cochilar. Eu e outros desmiolados lambuzamos seu cabelo com pasta de dente. Ele não acordava. As meninas que foram com a gente riam à vontade. Quando ele acordou, todo mundo fingiu que nada tinha acontecido. Bebeu uma coca, conversou animadamente, enquanto os risinhos escondidos eram dados às suas costas.
Em determinado momento, despreocupadamente, pediu-me o pente:
– Carlinhos, me empresta teu pente. Meu cabelo deve estar um gracinha...
Com cara de cínico, contendo o riso, passei-lhe o pente. Quando ele o passou pelos cabelos, tentando arrumar seu topete, olhou desolado para o mesmo, todo sujo de pasta de dente. Todo mundo ria à vontade, inclusive nosso professor de Educação Física.
Ele olhou para o pente todo sujo, depois para o pessoal que continuava a rir. Esboçou um sorriso. Somente disse, em voz baixa:
– Sacanagem de vocês. Pode deixar que eu vou à forra...
Nada mais que isso. Nenhuma demonstração de raiva,. de irritação. À noite, já no Colégio, não se lembrava de mais nada. Ria e brincava alegremente, como se nada tivesse acontecido.
Continuava sua idolatria por Elvis e Almir. Naquela época, foi lançado um LP de Presley, com as músicas de seu último filme, ainda em preto e branco: “King Creole”. Manequinho vivia assoviando e cantando pelos corredores uma das músicas do LP, intitulada “Young Dreams”...
Seu porta-caderno (naquele tempo era o que os alunos costumavam usar, um porta-caderno de folhas soltas) estava repleto de fotos dos seus dois ídolos.
Era a alegria em pessoa. Sempre brincando, rindo, extravasando bom-humor, amor pela vida.
Certa vez, no final de 1959, quando a cumeeira da casa que meu pai estava construindo no Saco de São Francisco ficou pronta, chamei-o para me acompanhar para tomar um chope lá na obra. Meu pai havia comprado dois barris para os operários. Eu esperava ainda encontrar alguma sobra de cerveja por lá. Era um final de tarde sábado. Deviam ser quatro e meia, cinco horas. Pegamos o trolley nas Barcas e em Icaraí, Verinha subiu. Os dois já não namoravam mais, mas continuavam bons amigos. Convidei-a também para nos acompanhar. Ela topou.
Chegamos na obra, ali na General Rondon, os operários já estavam de porre. Eu conhecia todos eles, pois nos últimos meses acompanhava de perto o andamento da construção. Sentamo-nos em banquinhos improvisados com tijolos e um dos pedreiros, o chefe deles, Joaquim, veio nos trazer os copos de chope. Ficamos a uma certa distância deles, que, respeitosamente, passaram a conversar em voz baixa, apesar de, vez em quando, lançarem um olhar com o rabo de olho para aquela morena bonita que nos acompanhava. Mas, permaneceram onde estavam, não falaram palavrões e por volta das seis horas, despediram-se e foram embora.
Joaquim ainda disse, virando-se para mim:
– “Seu” Carlinhos, ainda tem quase meio barril de chope sobrando. Podem acabar com ele, senão vai ficar choco.
– OK. Joaquim – respondi. – Obrigado e até segunda.
E, ficamos os três ali, iluminados apenas por uma luz de velas que achamos num canto da obra, até às nove da noite, acabando com o resto do barril e jogando conversa fora.
O tempo passou, saí do Liceu, entrei para a Faculdade. Manequinho ali permaneceu até o fim de 1961, quando terminou o científico.
Apesar de distante do dia-a-dia do colégio, continuava mantendo contato com os amigos mais íntimos. Manequinho era um deles. Ainda jogávamos uma partida de futebol de vez em quando, tomávamos um chope na Gruta, íamos a festas ou bailes de Carnaval no Canto do Rio, Gragoatá ou Regatas.
No início de 1962 ele foi servir o Exército, alistando-se no NPOR, lá no Terceiro Regimento de Infantaria, na rua Dr. March, na Venda da Cruz.
Já não o via há uns dois meses. No final de março, Sérgio, um ex-colega de Liceu, me encontrou na rua, e, com a fisionomia triste, me disse:
– Porra, Carlinhos, acabei de saber ontem...
Olhei para ele, ar de surpresa:
– O que foi, Sérgio?
Ele, procurando as palavras com cuidado, despejou no meu rosto:
– Manequinho está com câncer. Leucemia...
Levei um susto:
– O quê? – gritei na Amaral Peixoto, as pessoas olhando para mim.
– Isso mesmo, leucemia. Soube ontem pela mãe dele – retrucou João.
Fiquei um instante sem saber o que dizer. Passados alguns segundos daquele silêncio idiota, consegui falar:
– Meu Deus, Sérgio, isso é verdade mesmo? Eu falei com ele há pouco tempo atrás, jogamos uma pelada na praia, ele estava tão bem, esbanjando saúde...
Sérgio quase não conseguia conter as lágrimas.
– É verdade, sim. Está internado no Hospital Central do Exército, lá no Rio.
Despedi-me dele ainda atordoado, sem saber o que fazer. Chegando em casa, telefonei para outros colegas, que me confirmaram a notícia.


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Num domingo do início de abril, eu, João e Verinha pegamos o bonde no Rio e fomos até a Triagem, onde ficava o HCE.
Ele estava deitado numa cama, sua mãe ao lado.
Sorriu de alegria quando nos viu. Eu e João o abraçamos, Verinha o beijou no rosto. Conversou conosco por mais de meia hora, brincando muito, perguntando sobre o resultado do jogo do Vasco, se Almir tinha jogado bem. Estava apenas um pouco abatido, com aquele avental de hospital cobrindo-lhe o corpo. Mas não emagrecera, sua fisionomia era a mesma alegre de sempre.
Despedimo-nos dele, prometendo voltar no próximo domingo, dia de visita.
Do lado de fora do quarto, sua mãe, tentando manter o controle, não conseguiu esconder as lágrimas. Ainda perguntei:
– Qual é a gravidade? Ele vai se recuperar?
Ela, agora chorando copiosamente:
– Não... não... ele vai morrer... ele vai morrer...



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Na quarta-feira seguinte, 12 de abril, ouço tocar a campainha da casa. Havíamos nos mudado para São Francisco desde maio de 1961.
Minha mãe me chamou no quarto.
– É pra você. Um rapaz e uma moça.
Levantei-me da cama, saí do quarto e olhei pelo vidro da janela. No portão estavam João e Verinha.
Mandei-os entrar, falei que sentassem no balanço de ferro que havia na varanda.
– Péra aí que vou escovar os dentes – gritei.
Fui até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes, coloquei um short e uma camisa.
Abri a porta da sala, descendo o degrau da varanda. Os dois estavam com os olhos cheios d’água.
Nem precisei perguntar. Verinha, soluçando, disse:
– Morreu, Carlinhos, morreu...
Dei um abraço nos dois e ficamos em silêncio, sem encontrar as palavras que exprimissem nossa dor...



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Eu já havia tido contato com a morte antes...
Quando meu avô morreu, em 1954, estava no segundo ano ginasial do Liceu, no turno da tarde. Era a hora do recreio. De repente, vejo meu pai e Da. Coralina, os dois em pé, junto àquela escadinha que dá acesso ao pátio. Estranhei, a princípio, mas logo caí em mim.
Meu avô materno já estava doente há vários meses, fora operado de um câncer no estômago, os médicos abriram e nem mexeram, dada a gravidade do caso. Meu pai, que era médico, assistira à operação que foi lá em São Paulo. Nos últimos dias, estava internado no Hospital Santa Cruz, da Beneficência Portuguesa. A morte era questão de dias. Por isso, apesar do choque, chorei o que devia chorar, já estava preparado para a notícia.
Quando cheguei perto do meu pai e da inspetora, ele apenas disse:
– Seu avô faleceu. Pegue seu material e vamos embora.
Acompanhei velório, enterro com relativa tranqüilidade. Era inevitável, a gente esperava...
Depois, soube da morte de alguns colegas do Liceu, durante o ginasial e o científico: Jorge Chocolate, Benedito, Noel, Terezinha, que a gente apelidou de Diacuí, por ser ela descendente de índios. Também alguns professores: Amaro, Vieira, Padre Carneiro, Dona Estefania. Mortes tristes, mas de pessoas um pouco distantes do nosso cotidiano.
Com Manequinho foi diferente. Ele era parte da gente, convivia o dia-a-dia com a nossa turma, partilhava das nossas alegrias e tristezas. Era como se nos tivessem amputado uma parte do nosso corpo...



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Ele parecia sorrir dentro do caixão. O topete caído na testa estava impecavelmente arrumado. Vestido com a farda de aspirante do NPOR, verde-oliva reluzente, tinha nos lábios aquele sorriso maroto de menino alegre e brincalhão que nunca desaparecia de seu rosto. As bandeiras do Grêmio, do Liceu, da FESN e do Vasco estavam ao lado do caixão.
A salinha da casa da Conselheiro Paulino, lá no bairro de Fátima, onde tantas vezes conversei com ele, estava cheia de gente. Todos chorando, não conseguindo conter as lágrimas por aquela perda que não tinha dimensão...
Só faltava estar tocando ao fundo uma balada de Elvis e Oduvaldo Cozzi narrando um gol de Almir Pernambuquinho...




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Quarenta e cinco anos depois da sua morte, você deve estar dando um sorriso de satisfação ao saber que tinha tantos amigos, ao constatar a falta que você faz para nós...








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