quarta-feira, junho 27, 2007

ENCURRALADO

E N C U R R A L A D O


CALF


Rabecão despertou assustado... Seus ouvidos, já acostumados a perceber o menor ruído, alertaram-no dos movimentos que faziam fora da casa. Levantou-se silenciosamente, arrastando-se pelo chão até a janela. Com cuidado, correu com os olhos as cercanias do local em que se encontrava. Lá estavam eles, mexendo-se com cautela, fechando o cerco em volta da choupana, fazendo o possível para que ele não os ouvisse, pois esperavam pegá-lo desprevenido.
Tinha de ser assim, porque só em pensar em enfrentá-lo frente a frente, tremiam de medo.
Covardes... Mais de vinte homens, todos armados até os dentes, e tremiam... tremiam diante dele... Arrastou-se até a outra janela e, dali, viu que eles também já se deslocavam por aquele lado.
Cercado... Sentou-se calmamente no meio do compartimento (a casa só possuía aquele) e começou a enrolar um cigarro. Acendeu-o, enquanto seu cérebro trabalhava febrilmente, com uma rapidez espantosa. Eliminava mentalmente os modos que imaginava em poder fugir dali... Dessa vez, parecia que estava "frito". Mas, se o levassem, seria somente morto... Sabia muito bem, mesmo que se entregasse, eles o matariam, não lhe dariam a mínima chance... Desde que fugira da penitenciária, há três anos trás, já acabara com dois deles, e, morte de polícia tem que ser paga com a vida... Esse era o lema deles... Para aquelas mentalidades ignorantes e vingativas, só a morte do criminoso saciaria a sede da sua "justiça"...
A erva começava a fazer efeito. Sua mente tornava-se turva, enevoada, o grau de excitação de seu organismo aumentava rapidamente. Estava tenso, músculos e sentidos prontos a reagir ao primeiro estímulo exterior. Puxou outra tragada profunda: seus olhos ficaram mais vermelhos, ardiam mais... Permanecia num silêncio absoluto. Esgueirou-se lentamente até junto de sua cama. Levantou o colchão de crina e apanhou os dois "45". Conferiu suas cargas e os enfiou por dentro da calça. Arrastou-se de novo até a janela. Viu que conversavam agora em voz baixa, acertando os últimos detalhes para o ataque. Respeitavam-no, e, por isso, queriam ter certeza de que não teria a menor possibilidade de reação. Só então investiriam...
Sentou-se no chão, encostando-se na parede e estirando as pernas para a frente. Relembrava, a poucos instantes do fim que se aproximava, o que fora sua vida... Moleque criado na favela, o pai morto quando ele ainda não tinha dois anos de idade; a mãe, passando a semana toda fora, trabalhando em casa de família, na Zona Sul. Viveu sua infância jogado aqui e ali, aprendendo a ter que se "virar" por si próprio para sobreviver. Assim, com 13 anos já roubava e, aos 14, estava internado numa casa de recuperação de menores... Bem, chamavam-na de recuperação, mas foi ali onde verdadeiramente aprendeu todas as artimanhas e truques do crime..Ali, foi espancado pelos "inspetores de disciplina", foi enrabado por um dos rapazes mais velhos, seguro por outros dois... Depois, matou os três... Mentes jovens já impregnadas de revolta, de ódio. Revoltados até pelo simples fato de terem nascido. O que poderia esperar daquela promiscuidade? As portas do crime lhe foram abertas. Logo reconheceu que ninguém de fora lhe estenderia a mão, aquele é que era o seu mundo, teria que se acostumar com ele... Mas, aquela convivência maléfica, talvez, é que acabou por perdê-lo... Fugindo dali, continuou a assaltar, passando a ser conhecido como um dos terrores das favelas... Aos 17 anos, já tinha cinco mortes nas costas... Daí em diante, sua vida foi uma sucessão de prisões e fugas. Aos 23, já inteiramente constituída sua forma humana, era um tremendo "crioulão" de quase dois metros de altura, forte como um touro. Sempre roubando, matando quem quer que lhe ousasse barrar os passos. Brigas por dinheiro, brigas por mulheres, brigas com a polícia... Matando sempre, agora friamente, sem qualquer emoção...
A sociedade tinha que bani-lo de seu convívio. Ela, que se preocupou tanto com sua infância, procurando encaminhá-lo para o estudo, dando-lhe uma vida decente, longe daquele morro infecto. Aquela mesma sociedade que sempre se preocupou com a pobreza, com a miséria, com o menor desamparado. Sentia nojo de todos eles... Tinham mais é que morrer...
Sempre fora um pária. Nascera marginalizado, vivera marginalizado e morreria como marginal... Escorraçado pelo mundo que lhe negou o direito de viver honestamente, apenas porque nasceu pobre...
Já agora, decorridos três anos de sua última fuga, era considerado o "inimigo público nº 1", sucessor de "Mineirinho", "Lucio Flávio", "Fernando C. O." e outros tantos que, antes dele, atemorizaram a cidade, a polícia, a sociedade... As famílias, quando sabiam que ele estava por perto, tremiam de medo, fechavam portas e janelas, refugiavam-se em suas casas. Seu nome era notícia obrigatória das primeiras páginas dos jornais. A perseguição sobre ele estava implacável.
A polícia vasculhava noite e dia todas as favelas, todos os morros da região. Sempre escapara por pouco, fugindo milagrosamente no último momento.
E, em suas escaramuças com a polícia, liquidara dois deles. Por isso, sabia que não lhe dariam a menor chance.
Vivera esses últimos meses se escondendo, fugindo, cada dia em um lugar diferente.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles o apanhariam. Mas, lutaria até o fim, não ia deixar barato não. Já vira a morte de perto várias vezes, acostumando-se a tê-la ao seu lado.
Nisso, a porta da frente foi empurrada violentamente, uma rajada de metralhadora varreu o recinto. Rabecão levantou-se de um só salto, colando-se à parede, junto à porta. O silêncio que se fez não deixava perceber nem o ruído da respiração de quem ali estava. A noite, escura como o breu, nada deixava ver no interior da casa.
Após aqueles momentos de tensão absoluta, quem estava lá fora gritou alto:
- Venham. Ou ele já fugiu ou eu acabei com o bicho. Tá tudo quieto por aqui...
O sujeito acendeu uma lanterna, iluminando o compartimento através da porta aberta.
Foi avançando lentamente. Rabecão coseu-se mais à parede, parando de respirar. Tirou a arma da cintura, já engatilhada, e apontou-a para a porta.
O outro avançava com cuidado. Primeiro, apareceu a ponta de sua metralhadora, feroz, ameaçadora. Depois, seu perfil vislumbrou-se junto à porta. Parou por um instante.
Levantou o cano da arma e gritou:
- Rabecão, você tá aí dentro? Sai de mãos p'ra cima...
O bandido deu um salto para frente. Voltando-se rapidamente, o outro disparou a metralhadora. Acertou apenas a parede, pois Rabecão deu-lhe dois tiros no peito. O camarada deu um grito e caiu pesadamente de cara no chão, no lugar da porta aberta..Aquilo, então, transformou-se num inferno.
Lá fora, parecia que estavam em guerra, visando um único alvo: a choupana. O compartimento foi varrido por balas de todas as armas possíveis de imaginar. Só faltou mesmo canhão...
Rabecão sentiu que fora atingido, jogando-se rapidamente ao chão. De seu ombro direito, quase junto ao pescoço, o sangue jorrava em abundância. Arrastou-se até a janela e, dali, passou a revidar. Os homens lá fora gritavam como doidos, histéricos:
- Vamos, acabem logo com esse miserável...
A dor em seu ombro era terrível. Perdia sangue cada vez mais. Sentia-se fraco, já meio tonto, as forças deixando-lhe o corpo. Era o fim que se aproximava. Sentou-se no chão, parando de responder aos tiros. Encostou-se na parede, estirando mais uma vez as pernas.
Procurou a "erva" em seu bolso e começou a enrolar um cigarro. Talvez fosse seu último. Depois de pronto, acendeu-o e puxou profundamente uma tragada. O efeito foi instantâneo. Seu corpo entrou numa espécie de dormência, fazendo-o esquecer a dor insuportável que sentia. O sangue, entretanto, continuava a esguichar. Já começava a se sentir fora daquilo tudo. Seu pensamento voltava à infância, à favela onde fora criado...
Lá fora, vendo que ele parara de atirar, também pararam. Após um silêncio de mais ou menos dois minutos, gritaram:
- Rabecão, sai de mãos p'ra cima, que não vamos te fazer nada. Você será julgado com justiça, eu te prometo...
Era o Delegado Silva Dantas quem falava. Ele, que já prendera Rabecão várias vezes anteriormente, que já o espancara e humilhara. Homem violento, frio, adorava matar bandidos em nome da lei. Rabecão pensava: "A única diferença entre ele e eu é que ele estudou e eu não... No fundo, os dois somos matadores..."
"Justiça... Conhecia bem a justiça deles". Suava abundantemente. Sua camisa, aberta no peito, estava colada ao corpo, empapada de sangue. O suor escorria-lhe pela testa, pela face, pelo pescoço. Seus olhos lacrimejavam pela ação do "fuminho"...
Num último esforço, sentindo-se quase desfalecer, levantou-se de súbito, as duas "45" nas mãos, e saiu porta afora. Tropeçou no cadáver à sua frente, reequilibrou-se... Do lado de fora, em pé, vomitou fogo por seus revólveres, gritando e chorando como um possesso:
- Venham, seus putos, cambada de covardes... Venham me apanhar se forem homens... Venham... Venham...
As balas choveram sobre ele. Seu rosto contraiu-se no último gesto de dor, o corpo virando uma peneira, os buracos esguichando sangue em todas as direções... Tremeu um pouco e caiu pesadamente. Caiu para a frente, a cara enterrando-se no solo úmido...
No dia seguinte, os jornais estampavam na primeira página a fotografia do Delegado Silva Dantas, vitorioso, transformado em herói, metralhadora na mão, ao lado do cadáver do bandido, sua presa afinal conseguida caçar.
As manchetes estampavam, em letras garrafais:
"ELIMINADO RABECÃO.
A sociedade já pode respirar tranqüila "
A justiça, mais uma vez, se fizera...

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