quinta-feira, agosto 11, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 06




OS DESBRAVADORES

Capítulo 06

Calfilho




VI






O “Rosamar” continuava a singrar as águas do Nordeste brasileiro, arrastando-se vagarosamente em direção à capital do Pará. Havia ainda um longo caminho a percorrer, milhas e milhas de mar a serem vencidas.
Deixaram Taíba na tarde do dia seguinte em que ali aportaram, depois de ter sido feito a descarga e o carregamento de várias toneladas de mercadorias: banana, abacaxi, coco, frutas tropicais na sua grande maioria. Algumas encomendas de roupas e outros objetos mais sofisticados que só eram encontrados nos estados do Sul. Revistas e jornais do Rio, São Paulo, Salvador, Recife e Fortaleza, que a população local estava ávida para ler, mesmo com o atraso de mais de mês.
À noite, Maria Teresa, já quase recuperada do enjôo que a atormentara, conseguiu acompanhar Faustino na mesa do jantar.
O capitão, cujo nome era Jeremias, fazia as honras de anfitrião. Serviu um copo de vinho para seus dois convidados, tendo Maria Teresa recusado polidamente.
– Pois é, “seu” Faustino – disse ele. – Seu nome já é uma lenda na região amazônica. Já tinha ouvido muito falar do senhor e de suas aventuras na selva e, tenha certeza, é com grande prazer que tenho a honra de recebê-lo e à sua senhora em meu navio.
O capitão Jeremias era um homem de mais de cinquenta anos, beirando talvez os sessenta, mais para gordo do que para magro, cabelos grisalhos, meio calvo, bochechas rechonchudas. Sorvia com prazer um gole de seu copo de vinho enquanto falava com desenvoltura.
Faustino permaneceu em silêncio. Jeremias prosseguiu:
– Quer dizer que esta é a terceira vez que o senhor vai enfrentar a selva, não é?
Faustino fez um sinal afirmativo com a cabeça, enquanto mastigava um pedaço de peixe, que, por sinal, estava delicioso. Olhou para a mulher, sentada ao lado: Maria Teresa fitava o prato à sua frente, tentando conseguir achar coragem de começar a comer. O estômago estava embrulhado, tinha medo de engolir alguma coisa e vomitar em seguida.
Faustino virou-se para Jeremias. Perguntou:
– Capitão, o senhor me desculpe o transtorno. Mas, será que o senhor poderia conseguir alguma coisa mais leve para minha mulher? Acho que ela ainda não se recuperou totalmente do enjôo. Talvez uma canjinha, quem sabe?
Jeremias acabou de virar mais um copo de vinho, enquanto mastigava com prazer o pedaço de peixe. Respondeu prontamente, logo que acabou de engolir:
– É claro, “seu” Faustino. Aqui no nosso navio nós temos de tudo. Só falta dinheiro.
Tocou uma espécie de sineta de mesa. Logo apareceu um marujo, em trajes de marinheiro.
– Ô, Serafim, faz favor, pede ao Tonho para preparar uma canja bem quentinha aqui pra madame. Mas, olha, bem rápido, ouviu?
Serafim fez um sinal afirmativo com a cabeça, respondendo:
– É pra agora mesmo, capitão. Já tou indo.
Desapareceu em seguida.
Jeremias serviu-se de um pouco mais de pirão de mandioca, que, por sinal, também estava uma delícia. Colocou um pouco de pimenta malagueta e mais um pedaço de peixe em seu prato.
– Mas, desta vez, “seu” Faustino, vai voltar mais rico ainda, não é? Me contaram que agora o senhor é o patrão, não é mais empregado.
Faustino sorriu. Respondeu, depois de mastigar um pedaço de camarão graúdo:
– Pelo que vejo, o senhor está bem informado a meu respeito, capitão Jeremias. Mas, eu também me informei bastante sobre o senhor. Por isso, escolhi o seu navio para me levar de volta a Belém.
Jeremias não entendeu direito a ironia de Faustino, aliás, outra de suas marcas registradas. Continuou perguntando:
– Mas, conte-me mais “seu” Faustino. É mesmo verdade tudo aquilo que falam sobre o senhor? As brigas com os índios, a luta com a onça, o salvamento da criança que estava se afogando no rio?
Faustino sorriu novamente. Limpou a boca com o guardanapo, passando-o suavemente pelo bigode molhado de pirão. Olhou fixamente para Jeremias.
– Muita coisa é invenção dessa gente, falta de assunto, de não ter o que falar – respondeu. – Mas, uma coisa é certa, capitão: a Amazônia não é lugar pra qualquer um, não. É terra onde se tem que ser macho, senão morre logo, não chega nem a sentir o gostinho...
Maria Teresa olhava para o marido, em respeitoso silêncio. Jeremias ficou meio sem graça, sem ter o que replicar.
Faustino continuou:
– Ali, para sobreviver, capitão, a gente tem que dormir com um olho fechado e o outro aberto. Se fechar os dois ao mesmo tempo, no dia seguinte, as formigas gigantes estão em cima de você. É a primeira das leis da selva.
Jeremias, agora com a fisionomia séria, continuou em silêncio, tentando pescar um camarão perdido em seu prato.
Faustino prosseguiu, saboreando o momento de contar suas aventuras:
– A regra número dois, capitão, é que os índios são pessoas iguais à gente, não são bichos, nem animais. No início, são desconfiados, arredios, olham a gente de longe, custam a buscar uma aproximação. Mas, depois que isso acontece, são leais, amigos, morrem por você. Pena que são ingênuos demais, acreditam em qualquer branco que aparece, e essa é a perdição deles. O branco é mau, perverso, acaba fazendo o índio de escravo, corrompe-o com a bebida e depois o mata. Por isso é que sempre me dei bem com eles, porque aprendi a respeitar seus costumes, seu modo de viver, sem querer impor o meu.
Jeremias e Maria Teresa escutavam atentamente, os olhos pregados em Faustino.
Ele, limpando mais uma vez os beiços, saboreava aquele momento delicioso. Continuou:
– E, finalmente, capitão Jeremias, a regra número três é que também os animais, mesmo aqueles que aparentemente são mais ferozes, como a onça pintada, a jibóia ou a sucuri, desde que tratadas com carinho, com amor, tornam-se suas amigas. Nas duas vezes em que estive na Amazônia, os animais transitavam tranqüilamente pelo nosso acampamento, fossem os tucanos, as araras azuis, os macacos, as onças e as cobras. Várias vezes, eu tinha uma jibóia enrolada no meu pescoço ou dava de comer a uma jaguatirica na minha mão.
Jeremias tinha os olhos arregalados, não acreditando no que ouvia. Maria Teresa sorria maliciosamente.
Faustino concluiu:
– Ali, na Amazônia, capitão, a gente só não consegue dominar os mosquitos, os pernilongos. Mesmo com rede, mais cedo ou mais tarde, eles te picam e a malária entra no teu corpo. Disso, a gente não consegue escapar.
Jeremias serviu-se de mais outra dose generosa do vinho tinto, enchendo também o copo de Faustino.
Depois de virar de uma só vez o conteúdo de seu copo, disse, voz meio trêmula:
– E eu que pensei que fosse tudo fantasia. Ainda bem que nunca saí da ponte de comando do meu navio. Aqui, mesmo com o mar agitado por vezes, a gente não corre esses perigos...
Faustino riu sonoramente. A sopa de Maria Teresa chegou, fumegante.
Quando mais tarde, recolheram-se ao camarote, já deitados, Faustino e Maria Teresa riam baixinho.
– Você viu a cara de espanto do capitão quando eu disse que a jaguatirica comia na minha mão? – perguntou Faustino, rindo.
Ela, com a cabeça apoiada em seu ombro, também não conseguiu conter o riso:
– E, quando você disse que andava com uma cobra pendurada no pescoço? Coitado dele, Faustino, acho que você assustou o homem...
O balanço das ondas, batendo com força no casco do navio, embalou-lhes o sono...

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