terça-feira, agosto 09, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 04




OS DESBRAVADORES

Capítulo 04

Calfilho




IV






Os preparativos para a viagem ocuparam quase todo o mês de maio.
Faustino comprou grande parte do material necessário para ficarem pelo menos um ano na selva: tendas, lampiões, facões, cacimbas, mosquiteiros, carne seca, farinha, arroz, sal, açúcar, medicamentos, mercadorias que na certa não encontrariam na Amazônia.
Pedro, um caboclo forte, de uns 35 anos aproximadamente, era seu braço direito. Já estivera com ele nas duas expedições anteriores que fizera à região, deixando em suas mãos a tarefa de recrutar mais seis homens para compor o grupo. 
Faustino pretendia encontrar o cacique Amurã, a quem já conhecia das outras expedições, com a certeza de que o mesmo o auxiliaria na implantação do acampamento e em outras pequenas coisas de que necessitaria no dia a dia da extração do ouro viscoso. Comprou vários presentes para o cacique, suas mulheres e habitantes da taba, visando fortalecer os laços de amizade criados anteriormente.
Finalmente, no dia 20 de maio, embarcaram no vapor que seguiria para Belém.
As despedidas, no antigo cais da cidade, chegaram a ser engraçadas.
Enquanto a mãe, as irmãs e o irmão de Maria Teresa derramavam-se em lágrimas, o pai e irmãs de Faustino mantinham aquela pose aristocrática de frieza e insensibilidade que os caracterizava. O pai de Teresa já era falecido. Madeira também foi dar um abraço no amigo.
– Cuidado, Faustino, agora não é só você que tem que se cuidar – brincou. – Levar mulher para uma aventura dessa, ainda mais esperando criança, é uma tremenda loucura. Enfim, você deve saber o que está fazendo...
Faustino retribuiu o forte abraço que Madeira lhe dava. Disse:
– Pode deixar, meu amigo. Já conheço bem o que vou enfrentar.
O pequeno bote a remo saiu carregado de Fortaleza em direção ao navio, ancorado ao largo. Maria Teresa, que pela primeira vez entrava numa embarcação tão precária, tremia toda por dentro. Entretanto, procurou manter-se firme para não decepcionar o marido.
Instalados numa cabine minúscula e pouco confortável do “Rosamar”, aguardavam a partida do navio, o que só ocorreria à noite, pois havia muita mercadoria para carregar. O “Rosamar” era um cargueiro de porte médio, já de certa idade, máquinas cansadas pelas inúmeras viagens que fizera anteriormente pelo litoral dos Estados Unidos e, depois, durante mais de dez anos, na costa brasileira. Seus tripulantes brincavam quando eram perguntados pela velocidade que desenvolvia:
“– Ah! moço, num sei ao certo não. Acho que são dez laços por hora, em vez de dez nós”...
O navio, apesar de sua finalidade ser em primeiro lugar a de transporte de cargas, às vezes levava alguns passageiros que nele se aventuravam em embarcar. Possuía, além das cabines que serviam de acomodação para o capitão, imediato e tripulação, outras quatro razoavelmente confortáveis, onde poderiam viajar alguns passageiros. Nessa viagem, de Fortaleza a Belém, uma dessas cabines era ocupada por Faustino e Maria Teresa e outras duas, no andar inferior, com quatro beliches em cada uma, pelos sete homens que Faustino levava consigo.
Finalmente, por volta das onze da noite, depois de apitar por três vezes, deixou Fortaleza, iniciando a longa viagem em direção a Belém.
 Logo que as máquinas começaram a ranger, começou o suplício para Maria Teresa. Aliado ao enjôo normal da gravidez, agora o balanço do navio levou-a diretamente ao banheiro que existia no corredor. Faustino acompanhou-a, presenciando, preocupado, a mulher vomitar sem parar. Ainda bem que tinham levado algumas pílulas contra enjôo, receitadas pelo Dr. Agamenon, o médico da família.
Mas, Maria Teresa não parava de vomitar. Seu rosto ficou branco como uma cera, suava abundantemente. Queria parecer forte, mas não conseguia.
– Desculpe, Faustino, mas não consigo controlar. Essa ânsia de vômito não me deixa.
Ele procurou acalmá-la:
– Não se preocupe, Teresa, isso vai passar. É que você não está acostumada com a viagem de vapor. Tome essa pílula, é para enjôo – disse ele, passando-lhe o remédio e um copo d’água.
Ela engoliu o comprimido. Voltaram para a cabine.
Faustino disse:
– Deita um pouco, Teresa. Vê se consegue dormir. Vou falar com o capitão do navio, talvez ele tenha algum remédio para você, ele já deve ter passado por essa situação.
Teresa obedeceu, deitando-se na parte inferior do beliche.
Faustino deixou a cabine, em busca do capitão. No caminho, encontrou-se com Pedro. Perguntou:
– E, então, Pedro, ficaram bem alojados?
– Razoável, patrão. Ficamos três numa cabine, quatro na outra, um andar abaixo do seu. Vai onde?
– Vou procurar o capitão. Teresa está vomitando direto, não quer parar. Talvez ele tenha algum medicamento, isso já deve ter acontecido antes com outros passageiros.
– Deve ser a criança – retrucou Pedro. – Mulher já enjoa mesmo quando espera menino, quanto mais viajando de vapor.
Pedro recrutara seis homens para a expedição, conforme lhe determinara Faustino. João e Firmino, dois caboclos fortes, o primeiro mistura de índio e branco, o segundo um crioulo de quase dois metros de altura, já tinham viajado na última ida de Faustino ao Amazonas. Os outros quatro, Raimundo, Venâncio, Zeferino e Mário eram também muito fortes, exceto o último, que era o cozinheiro. Viajavam pela primeira vez para a selva. Já estavam acomodados em suas cabines e conversavam em voz alta, antevendo os lances da aventura em que haviam se metido.
– Pois é – disse Venâncio. – Seja o que Deus quiser. Minha muié não queria que eu viesse não, mas eu tou precisando de ganhar dinheiro. Em Fortaleza não se acha mais trabalho. E lá pro interior do Ceará é só seca e fome.
Raimundo observou, fumando um cigarro de palha, deitado na parte superior do seu beliche:
– Já eu, que sou solteiro, que não tenho nada que me prenda a essa terra desgraçada de seca, vou mesmo é pra ganhar dinheiro e gastar tudo em farra e muié.
Zeferino comentou, na parte inferior da cama:
– Eu tou com um medo danado. O que a gente vai encontrar por lá? Já me contaram tanta coisa, que tem feitiçaria, boitatá, mula sem cabeça, saci perneta...
Mário, o cozinheiro, na parte superior do outro beliche:
– Me disseram até que tem uma cobra enorme que engole uma vaca inteira, isso sem falar num peixe grande, com cara de boi.
– Fora os índios – aparteou Raimundo. – O Pedro me falou que tem índio que até come gente. Bota no caldeirão, deixa cozinhar.
– Isso deve ser mentira do Pedro, falou só pra te gozar – disse Venâncio. – O “seu” Faustino já teve lá por duas vezes e disse que sabe controlar a situação. Aliás, o Pedro também já esteve lá com ele, deve saber como se livrar do perigo. – Pra mim, o que importa, é o dinheiro que eu vou ganhar, pelo menos vou botar comida na mesa pra muié e pros bichinhos. É duro não ter o que comer minha gente, ver criança rodeando você chorando de fome e a gente não ter nada pra dar.
– É verdade – filosofou Mário, olhando para o teto da cabine, olhar distante, já com uma ponta de saudade da Fortaleza natal.
Raimundo, talvez pelo efeito da fumaça do cigarro de palha que tragava, começou a enjoar e correu para o banheiro para colocar para fora a comida do jantar.
O navio balançava bastante, vencendo com dificuldade as ondas do mar revolto àquela hora da noite.
Faustino achou o capitão e este arranjou alguns remédios para enjôo, que ele, de volta à sua cabine, fez Maria Teresa engolir.
Finalmente, quase uma hora da madrugada, ela melhorou um pouco e conseguiu dormir. Sono difícil, interrompido várias vezes, ela acordando durante a noite para tentar vomitar no pinico que Faustino colocou no chão, ao lado da cama.
Aquela noite pareceu não ter somente oito, dez horas de escuridão. “Como custou a passar” – meditava Maria Teresa com seus botões.


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