OS DESBRAVADORES
Capítulo 04
Calfilho
IV
Os preparativos para a viagem ocuparam quase todo o
mês de maio.
Faustino comprou grande parte do material necessário
para ficarem pelo menos um ano na selva: tendas, lampiões, facões, cacimbas,
mosquiteiros, carne seca, farinha, arroz, sal, açúcar, medicamentos,
mercadorias que na certa não encontrariam na Amazônia.
Pedro, um caboclo forte, de uns 35 anos
aproximadamente, era seu braço direito. Já estivera com ele nas duas expedições
anteriores que fizera à região, deixando em suas mãos a tarefa de recrutar mais
seis homens para compor o grupo.
Faustino pretendia encontrar o cacique Amurã, a quem
já conhecia das outras expedições, com a certeza de que o mesmo o auxiliaria na
implantação do acampamento e em outras pequenas coisas de que necessitaria no
dia a dia da extração do ouro viscoso. Comprou vários presentes para o cacique,
suas mulheres e habitantes da taba, visando fortalecer os laços de amizade
criados anteriormente.
Finalmente, no dia 20 de maio, embarcaram no vapor que
seguiria para Belém.
As despedidas, no antigo cais da cidade, chegaram a
ser engraçadas.
Enquanto a mãe, as irmãs e o irmão de Maria Teresa
derramavam-se em lágrimas, o pai e irmãs de Faustino mantinham aquela pose
aristocrática de frieza e insensibilidade que os caracterizava. O pai de Teresa
já era falecido. Madeira também foi dar um abraço no amigo.
– Cuidado, Faustino, agora não é só você que tem que
se cuidar – brincou. – Levar mulher para uma aventura dessa, ainda mais
esperando criança, é uma tremenda loucura. Enfim, você deve saber o que está
fazendo...
Faustino retribuiu o forte abraço que Madeira lhe
dava. Disse:
– Pode deixar, meu amigo. Já conheço bem o que vou
enfrentar.
O pequeno bote a remo saiu carregado de Fortaleza em
direção ao navio, ancorado ao largo. Maria Teresa, que pela primeira vez
entrava numa embarcação tão precária, tremia toda por dentro. Entretanto,
procurou manter-se firme para não decepcionar o marido.
Instalados numa cabine minúscula e pouco confortável
do “Rosamar”, aguardavam a partida do navio, o que só ocorreria à noite, pois
havia muita mercadoria para carregar. O “Rosamar” era um cargueiro de porte
médio, já de certa idade, máquinas cansadas pelas inúmeras viagens que fizera
anteriormente pelo litoral dos Estados Unidos e, depois, durante mais de dez
anos, na costa brasileira. Seus tripulantes brincavam quando eram perguntados
pela velocidade que desenvolvia:
“– Ah! moço, num sei ao certo não. Acho que são dez
laços por hora, em vez de dez nós”...
O navio, apesar de sua finalidade ser em primeiro
lugar a de transporte de cargas, às vezes levava alguns passageiros que nele se
aventuravam em embarcar. Possuía, além das cabines que serviam de acomodação
para o capitão, imediato e tripulação, outras quatro razoavelmente
confortáveis, onde poderiam viajar alguns passageiros. Nessa viagem, de
Fortaleza a Belém, uma dessas cabines era ocupada por Faustino e Maria Teresa e
outras duas, no andar inferior, com quatro beliches em cada uma, pelos sete
homens que Faustino levava consigo.
Finalmente, por volta das onze da noite, depois de
apitar por três vezes, deixou Fortaleza, iniciando a longa viagem em direção a
Belém.
Logo que as
máquinas começaram a ranger, começou o suplício para Maria Teresa. Aliado ao
enjôo normal da gravidez, agora o balanço do navio levou-a diretamente ao
banheiro que existia no corredor. Faustino acompanhou-a, presenciando, preocupado,
a mulher vomitar sem parar. Ainda bem que tinham levado algumas pílulas contra
enjôo, receitadas pelo Dr. Agamenon, o médico da família.
Mas, Maria Teresa não parava de vomitar. Seu rosto
ficou branco como uma cera, suava abundantemente. Queria parecer forte, mas não
conseguia.
– Desculpe, Faustino, mas não consigo controlar. Essa
ânsia de vômito não me deixa.
Ele procurou acalmá-la:
– Não se preocupe, Teresa, isso vai passar. É que você
não está acostumada com a viagem de vapor. Tome essa pílula, é para enjôo –
disse ele, passando-lhe o remédio e um copo d’água.
Ela engoliu o comprimido. Voltaram para a cabine.
Faustino disse:
– Deita um pouco, Teresa. Vê se consegue dormir. Vou
falar com o capitão do navio, talvez ele tenha algum remédio para você, ele já
deve ter passado por essa situação.
Teresa obedeceu, deitando-se na parte inferior do
beliche.
Faustino deixou a cabine, em busca do capitão. No
caminho, encontrou-se com Pedro. Perguntou:
– E, então, Pedro, ficaram bem alojados?
– Razoável, patrão. Ficamos três numa cabine, quatro
na outra, um andar abaixo do seu. Vai onde?
– Vou procurar o capitão. Teresa está vomitando
direto, não quer parar. Talvez ele tenha algum medicamento, isso já deve ter
acontecido antes com outros passageiros.
– Deve ser a criança – retrucou Pedro. – Mulher já
enjoa mesmo quando espera menino, quanto mais viajando de vapor.
Pedro recrutara seis homens para a expedição, conforme
lhe determinara Faustino. João e Firmino, dois caboclos fortes, o primeiro
mistura de índio e branco, o segundo um crioulo de quase dois metros de altura,
já tinham viajado na última ida de Faustino ao Amazonas. Os outros quatro,
Raimundo, Venâncio, Zeferino e Mário eram também muito fortes, exceto o último,
que era o cozinheiro. Viajavam pela primeira vez para a selva. Já estavam
acomodados em suas cabines e conversavam em voz alta, antevendo os lances da
aventura em que haviam se metido.
– Pois é – disse Venâncio. – Seja o que Deus quiser.
Minha muié não queria que eu viesse não, mas eu tou precisando de ganhar
dinheiro. Em Fortaleza não se acha mais trabalho. E lá pro interior do Ceará é
só seca e fome.
Raimundo observou, fumando um cigarro de palha,
deitado na parte superior do seu beliche:
– Já eu, que sou solteiro, que não tenho nada que me prenda
a essa terra desgraçada de seca, vou mesmo é pra ganhar dinheiro e gastar tudo
em farra e muié.
Zeferino comentou, na parte inferior da cama:
– Eu tou com um medo danado. O que a gente vai
encontrar por lá? Já me contaram tanta coisa, que tem feitiçaria, boitatá, mula
sem cabeça, saci perneta...
Mário, o cozinheiro, na parte superior do outro
beliche:
– Me disseram até que tem uma cobra enorme que engole
uma vaca inteira, isso sem falar num peixe grande, com cara de boi.
– Fora os índios – aparteou Raimundo. – O Pedro me
falou que tem índio que até come gente. Bota no caldeirão, deixa cozinhar.
– Isso deve ser mentira do Pedro, falou só pra te
gozar – disse Venâncio. – O “seu” Faustino já teve lá por duas vezes e disse
que sabe controlar a situação. Aliás, o Pedro também já esteve lá com ele, deve
saber como se livrar do perigo. – Pra mim, o que importa, é o dinheiro que eu
vou ganhar, pelo menos vou botar comida na mesa pra muié e pros bichinhos. É
duro não ter o que comer minha gente, ver criança rodeando você chorando de
fome e a gente não ter nada pra dar.
– É verdade – filosofou Mário, olhando para o teto da
cabine, olhar distante, já com uma ponta de saudade da Fortaleza natal.
Raimundo, talvez pelo efeito da fumaça do cigarro de
palha que tragava, começou a enjoar e correu para o banheiro para colocar para
fora a comida do jantar.
O navio balançava bastante, vencendo com dificuldade
as ondas do mar revolto àquela hora da noite.
Faustino achou o capitão e este arranjou alguns
remédios para enjôo, que ele, de volta à sua cabine, fez Maria Teresa engolir.
Finalmente, quase uma hora da madrugada, ela melhorou
um pouco e conseguiu dormir. Sono difícil, interrompido várias vezes, ela
acordando durante a noite para tentar vomitar no pinico que Faustino colocou no
chão, ao lado da cama.
Aquela noite pareceu não ter somente oito, dez horas
de escuridão. “Como custou a passar” – meditava Maria Teresa com seus
botões.
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