sábado, agosto 06, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 02




OS DESBRAVADORES

Capítulo 02

Calfilho





II







Lurdinha e Cotinha eram as duas irmãs de Faustino.
Mais novas que ele, a primeira seis anos, a segunda oito.
Tinham verdadeiro pavor do irmão, que, desde quando eram pequenas, nelas batia por qualquer coisa. Se alguma delas se comportasse mal à mesa, era ele quem as corrigia, quase sempre à base de palmadas nada delicadas. Se gritavam ou falavam mais alto, numa brincadeira infantil qualquer, ele as corrigia quase sempre tirando o cinto da calça e correndo atrás delas, com a correia ameaçadora nas mãos.
“Seu” Almeida dificilmente estava em casa, preso na administração de seus três armazéns e, mesmo quando estava presente, pouco se importava com as corrigendas que Faustino aplicava às meninas. Pelo contrário, não se metia, às vezes até apoiava sua atitude, não tinha tempo para tomar a frente dos problemas domésticos.
A mãe, Jacira, mulher muito doente, praticamente inválida logo após o nascimento de Cotinha, pouco saía do quarto, onde, inclusive, fazia as refeições, em nada interferindo na administração da casa. Para ela, portanto, inútil recorrer.
Nada de brincar de pique, de amarelinha, de correr na praça em frente da casa. O máximo que lhes era permitido era ficar com suas bonecas, brincar de casinha, isso tudo no interior do casarão da Praça José de Alencar.
No colégio, na rua, quando viam o irmão aproximar-se, logo paravam as brincadeiras que estavam fazendo, mantendo-se numa posição respeitosa, com medo de levarem um tapa ali mesmo.
Quando já adolescentes, se flertavam com um ou outro rapaz, tremiam de medo que Faustino soubesse. E, quando ele vinha a saber, caía-lhes de pancada em cima.
Mesmo quando ele viajou as duas vezes para a Amazônia, lá passando vários meses, tinham receio de ir a festas, conversar com rapazes, sair com colegas. O medo do irmão, mesmo tão longe delas, era maior que o desejo que tinham de uma diversão qualquer. “Se ele viesse a saber quando voltasse...”.
Na realidade, desde pequeno, logo depois que a mãe ficara semi-inválida e o pai não se preocupava mais com o dia a dia da família, Faustino chamou para si as funções de homem da casa. “Seu” Almeida, por seu lado, tendo ficado muito abatido com a doença da mulher, mudou completamente seu comportamento com relação aos filhos. Deixou para lá a tarefa de discipliná-los, passando a preocupar-se somente com seus negócios. Saía de casa antes das sete da manhã e só voltava depois das dez da noite.
 Era Donana, uma velha de mais de 50 anos, gorda, bonachona, quem tomava conta de Jacira e da administração da casa, naqueles primeiros dias após a doença da mãe de Faustino. Ajudava-lhe no banho diário, preparava-lhe a comida de dieta, ficava sempre com ela no quarto.
Ainda bem que não faltava dinheiro. A renda dos armazéns de “seu” Almeida garantia com folga o sustento da família. Ele só colocava o dinheiro dentro de casa, deixando que Donana fizesse os pagamentos com alimentação, empregadas e outras contas domésticas.
Quando Faustino completou dez anos, foi tomando para si, pouco a pouco, parte das tarefas de Donana, que passou a dedicar-se quase que exclusivamente aos cuidados com Jacira.
Faustino passou a pegar com o pai o dinheiro para as despesas da casa. Daí em diante assumiu a responsabilidade de cuidar das irmãs, zelando por sua educação, alimentação, higiene, tarefas que só um adulto poderia normalmente exercer. Ele, entretanto, com apenas dez anos de idade, não se sentiu intimidado em assumi-las.
Sempre fora destemido, atirado, não tinha medo das coisas, muito menos das pessoas. Brigava muito no colégio primário, enfrentando, muitas vezes, garotos maiores que ele. Chegava frequentemente em casa com um olho roxo, com o lábio sangrando, com hematomas pelo corpo.
Era severo com as irmãs. Exigia-lhes conduta exemplar. À mesa, no trato com outras pessoas, no modo de vestir, de andar, de falar. Se elas, ainda pequenas, ousassem desobedecê-lo, coitadas... Ele pegava o cinto de couro da calça do pai e aplicava-lhes surras que as faziam chorar por horas e horas.
Por isso, elas foram crescendo tendo pelo irmão mais velho um sentimento que era uma mistura de respeito e ódio. Não ousavam abrir a boca para reclamar de suas atitudes contra elas, mas, interiormente, iam remoendo e acumulando esse sentimento nada nobre contra Faustino.
Ele pouco se importava com o que elas sentiam por ele, se ódio ou amor. Era o responsável por elas e pronto. Nada mais o preocupava. E, até gostava daquela posição de mando, que seria sua marca registrada para o resto da vida. Independência, aventura, comando, domínio das coisas.
Lurdinha e Cotinha passaram a se apoiar uma na outra, à medida que cresciam. Parecia que, assim, as duas unidas, poderiam defender-se melhor do irmão rigoroso. Já não brigavam mais entre elas, nem ao menos discutiam. Andavam sempre juntas, de braços dados, em qualquer lugar aonde iam. Passaram a vestir o mesmo tipo de roupa, mesma cor, mesmo modelo. Cabelos penteados da mesma forma, até o modo de falar.
Apesar de não se parecerem muito fisionômica e fisicamente – Lurdinha era alta e magra, Cotinha, baixa e gordinha – de tanto andarem juntas, de usarem as mesmas roupas, passaram a ser conhecidas no colégio como as “irmãs corujinhas”. Ainda bem que elas não sabiam o que falavam delas pelas costas.
Quando Faustino, por acaso, soube desse apelido, logo deu uma surra no garoto que assim as chamara. Mas, nada disse às irmãs.
Assim, quando Lurdinha já completara quatorze anos, ele, não resistindo mais ao chamamento do seu espírito aventureiro e achando que as irmãs já estavam suficientemente preparadas para a vida, decidiu fazer sua primeira viagem para a Amazônia. Empregou-se numa expedição que para lá seguia, no auge do ciclo da borracha. Isso, em 1909.
Mesmo tendo ele ficado fora de Fortaleza por quase um ano, Lurdinha e Cotinha não se atreveram a fazer nada que pudesse manchar-lhes a reputação. Não foram a festas do colégio, baile de debutantes ou a qualquer outra atividade que não fosse relacionada exclusivamente aos deveres da escola. Namorados, nem pensar. Os poucos rapazes que se atreveram a uma tímida aproximação, aproveitando a ausência de Faustino, logo desistiam, tendo em vista a frieza e indiferença com que eram tratados pelas meninas.
Quando ele retornou, no primeiro trimestre de 1910, procurou saber do comportamento das irmãs através de seus amigos mais chegados e que lhe eram extremamente fiéis. Madeira lhe fez um relato completo e ele, mesmo satisfeito, deu uma tremenda bronca nas duas, alegando flertes imaginários ou comportamentos inadequados.
– Antes prevenir que remediar – disse ele a Madeira.
– Porra, Faustino, tudo bem que se deve tomar cuidado, ainda mais no seu caso, que seu pai deixou na sua mão tomar conta das meninas. Mas, você não acha que está exagerando um pouco?
– Nada, Madeira. Com mulher não se deve facilitar. Ainda mais nessa idade delas, quando estão com fogo nas “partes”. Bobeou, aparecem logo de barriga por aí...
Madeira virou mais um gole do seu copo de cerveja. Comentou, encerrando a discussão:
– Tudo bem, você é quem deve saber. Eu não tenho irmã, não estou ao par dessas coisas.
Foi naquele período que Faustino ficou um tempo sem saber o que fazer da vida, tendo trabalhado antes no emprego burocrático que seu pai lhe arranjou e, depois, como gerente de um dos armazéns de “seu” Almeida. Dois anos mais tarde, no início de 1912, voltava à Amazônia, ainda como empregado de outra firma exploradora da extração de borracha.
Foi nessa época, quando estava ele na Amazônia pela segunda vez, em fevereiro de 1913, que a mãe, Jacira, não resistindo mais ao longo sofrimento, acabou falecendo. Faustino só tomou conhecimento da morte da mãe quando voltou para se tratar da malária que pegara na selva.
Lurdinha e Cotinha, sempre inseparáveis, agora dois anos mais velhas, resignaram-se com a vigilância exercida pelo irmão e, com apenas dezoito e dezesseis anos, praticamente abdicaram de ter uma vida própria, do casamento, filhos e outras coisas normais às moças de sua idade.
Terminaram o curso normal e nem tentaram exercer o magistério. Suas vidas ficaram resumidas a uma rotina cansativa de ficar em casa o dia todo a costurar, fazer bordados, auxiliar Donana na administração da casa. À rua iam raramente, só para visitas esporádicas a algum parente ou às idas à missa nos domingos. Com o pai tinham pouco contato, já que o mesmo mantinha os mesmos horários de saída e retorno ao lar. Só nos almoços de domingo, quando mesmo assim pouco conversavam, já que por ele tinham enorme respeito e praticamente nenhuma intimidade.
“– Como vai sua mãe? – perguntava Almeida às filhas, quando Jacira ainda era viva. – Tem melhorado? Está comendo direito?”.
– Tudo na mesma, papai – respondia uma delas. – Tem dias que está melhor, outros pior. Mas, ela não consegue conversar com a gente”.
Almeida dificilmente ia até o quarto da mulher. Sua doença o abalara de tal forma que ele não conseguia ver Jacira naquele estado. Às vezes, preferia que ela partisse para o outro mundo, tamanho o seu sofrimento. Quando isso aconteceu, aí então mesmo é que não tinha mais nenhum assunto para conversar com as filhas nos raros almoços de domingo.
Mas, apesar do recolhimento das duas irmãs, da vida reclusa a que se submeteram, foi Cotinha quem apresentou Maria Teresa a Faustino, o que acabou em casamento entre os dois.
Ele, depois que voltou da segunda viagem à Amazônia, em novembro de 1913, de lá retornou como um homem rico. Doente, mas rico.
Pouco mais de um ano depois, quando decidiu casar, disse para as irmãs:
– Bem, agora vocês estão crescidas, prontas para o mundo.
Elas olharam espantadas para ele, sem entenderem o que queria dizer.
Faustino olhou fixamente para as duas. Depois de um momento de silêncio, disse:
– Pronto, daqui para frente, não vou mais tomar conta de vocês. Já estão adultas, podem fazer o que quiserem. Só espero que não façam besteira. Cuidem de suas vidas que chegou a hora de eu começar a cuidar da minha.
Elas, ainda atônitas, olhavam para o irmão, sem perceberem a extensão das suas palavras. Faustino riu e disse, com um sorriso de deboche nos lábios:
– Andem, suas patetas, larguem do meu pé. Chegou a hora de aprenderem a se virar por vocês mesmas.
As duas se afastaram, assustadas. Correram para o quarto e ficaram por algum tempo olhando uma para a outra, sem saber o que dizer.
Mesmo depois do casamento de Faustino, quando não havia mais a presença física do irmão dentro do casarão do pai e, mais tarde, quando ele partiu pela terceira vez para a Amazônia, não souberam elas o que fazer com a liberdade finalmente alcançada. Permaneceram reclusas dentro de casa, não modificaram em nada o modo de vida, parecendo presas psicologicamente aos anos e anos em que viveram sob a tutela de Faustino. Ainda tinham medo de que ele aparecesse subitamente e lhes aplicasse uma surra por qualquer atitude mais audaciosa que pudessem tomar.











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