OS DESBRAVADORES
Capítulo 41
Calfilho
XLI
O único fato que causou maior
rebuliço no acampamento foi a perda de um braço de João Paulo. O negro,
acompanhado de Zeferino e Venâncio, depois de um cansativo dia de trabalho, foi
lavar-se à beira do igarapé, em local protegido pela vegetação, para não ficar
nu na frente das mulheres. João Paulo arriscou-se a ir na parte mais funda do
riacho, quando num bote rápido e certeiro, um enorme crocodilo atracou-se no
seu braço esquerdo. Com sua força descomunal, conseguiu levantar o bicho, de mais
de dois metros de comprimento, acima da linha d’água. Este continuava agarrado
firmemente em seu braço. Quando novamente voltou para a água, o negro já estava
com metade do membro superior fora do corpo, na altura do cotovelo. Conseguiu
nadar correndo de volta para a margem, o sangue escorrendo-lhe com intensidade
do coto, os ossos à mostra, enquanto o crocodilo se deliciava com o jantar
inesperado.
Zeferino e Venâncio gritavam a
plenos pulmões, tentando pedir ajuda. Pedro e Firmino acudiram correndo, enquanto
João Paulo, sentado na margem, continuava a sangrar abundantemente. Não deu um
grito, a dor estava estampada em seu rosto, ele aguentando firme, sem reclamar.
Pedro, vendo a gravidade do ferimento, tirou rápido sua própria camisa,
enrolando-a no coto do braço de João Paulo. Mandou Firmino procurar Faustino.
Este, em sua tenda, tirava a roupa
e se preparava para tomar o banho do fim do dia. Firmino veio correndo,
gritando do lado de fora:
– Patrão, patrão, venha rápido. O
João perdeu o braço.
Faustino, surpreso, sem camisa,
veio para fora da barraca:
– O que foi, Firmino? Fala
devagar, fica calmo.
O caboclo respondeu, gaguejando:
– O João Paulo, patrão. O
jacaré... o jacaré comeu o braço dele.
Faustino saiu correndo na direção
indicada por Firmino. Lá, Pedro estava agachado ao lado do negro, apertando
fortemente a camisa empapada de sangue contra o coto em carne viva.
– O que aconteceu, Pedro? –
perguntou Faustino, o tom de voz nervoso.
Pedro nem olhou para ele.
Continuava apertando com força a camisa contra o que restou do braço de João
Paulo. Respondeu:
– Parece que foi crocodilo,
patrão. Na hora em que tomava banho.
Faustino olhava para o sangue
escorrendo abundantemente pela camisa apertada contra o que restou do braço de
João Paulo. O negro estava nu, assim como Zeferino e Venâncio, que pareciam
paralisados de terror, assistindo tudo ali ao lado, em pé, a um metro de
distância.
Faustino recobrou o sangue-frio.
Ordenou a Firmino
– Corre lá na taba dos Denis e
chama Arumã. Conta rapidamente o que aconteceu e traz ele correndo aqui. Pedro,
deixa que eu fico segurando essa camisa. Corre lá na minha tenda e traz a
maleta de primeiros socorros.
Abaixou-se e substituiu Pedro na
tarefa de tentar estancar o sangue que empapava a camisa que fazia às vezes de
torniquete na parte superior do braço de João Paulo. Pedro saiu correndo em
direção à tenda de Faustino.
O sangue parecia que começava a
diminuir a intensidade com que escorria. Apertando fortemente a camisa
ensanguentada contra o ferimento, Faustino olhou para João Paulo. O negro
cerrava os dentes, mas não gritava, não queria aparentar sentir dor.
– Aguenta firme, João. Vamos
tratar disso já – disse Faustino, tentando acalmar o negro.
João Paulo olhou para ele, olhos
já embaçados, o sangue esvaindo-se de seu corpo. Esboçou um pequeno sorriso e
desmaiou.
Arumã chegou
correndo, acompanhado de alguns índios. Já tendo tomado ciência do que ocorrera
pelo relato apressado de Firmino, trouxe consigo o curandeiro da tribo. Este
ajoelhou-se ao lado de Faustino, olhando para a camisa encharcada de sangue.
Pediu a Faustino, através de gestos, que soltasse o torniquete improvisado.
Faustino tirou as mãos da camisa de Pedro, deixando que o índio examinasse o
ferimento. Este retirou delicadamente o tecido de cima do coto de João Paulo. A carne
estava dilacerada de forma irregular logo abaixo do cotovelo, aparecendo nítida
a marca dos dentes do crocodilo na pele do negro. As pontas do rádio e do
cúbito estavam salientes. Mas, o sangue parecia que havia estancado, o que
diminuía o risco de hemorragia.
O curandeiro
continuava olhando para o ferimento, aparentando não saber o que fazer. Olhou
para Arumã, depois para Faustino, procurando por uma sugestão. Nesse momento,
chegou Pedro correndo, Maria Teresa logo atrás.
Faustino, vendo que a mulher
também se aproximava, mandou Zeferino e Venâncio saírem dali, pois os dois,
ainda nus, continuavam paralisados no local. Os caboclos obedeceram
imediatamente, escondendo-se por trás de algumas moitas da vegetação. Faustino,
com uma folha de paxiúba, cobriu precariamente as partes íntimas de João Paulo,
agora estirado no chão, ainda desacordado.
Faustino pegou
a maleta de primeiros socorros das mãos de Pedro, abrindo-a rapidamente.
Agachou-se novamente ao lado de João Paulo, retirando a tampa de cortiça de um
vidro de álcool. Despejou o líquido sobre um grande chumaço de algodão e
procurou limpar o ferimento.
Dirigiu-se a Pedro:
– Pedro, vai lá na fogueira,
queima bem a ponta de uma faca até ela ficar em brasa. Depois traz correndo de volta.
Pedro correu para obedecer ao
solicitado. Faustino continuava a limpeza do ferimento de João Paulo,
procurando desinfetá-lo bem. O sangue, agora, escorria apenas de um pequeno
filete. Ainda bem que o negro estava desacordado, não sentindo a dor que lhe
devia estar sendo causada.
Pedro voltou com uma pequena faca
com a ponta ainda rubra, incandescente.
Faustino mandou que Maria Teresa
se afastasse um pouco. Encostou, então, a ponta da faca na extremidade do coto
de João Paulo, procurando cauterizá-lo bem. O cheiro de carne queimada fez com
que Maria Teresa e Firmino vomitassem na mesma hora. Lá de dentro do mato, onde
ainda estavam Venâncio e Zeferino, também se ouviram ruídos de gente vomitando.
Nessa hora, João Paulo parece que
quis acordar. Abriu os olhos por um instante, seu rosto fez uma contração de
dor. Desmaiou novamente.
Amari, tendo visto o movimento da
outra margem do igarapé, atravessou o mesmo rapidamente, procurando também
ajudar. Inteirando-se do ocorrido, dirigiu-se ao curandeiro dos Denis, que
estava em pé, ao lado de Arumã. Trocaram algumas palavras na língua deles e o
curandeiro afastou-se rapidamente.
Faustino perguntou a Amari o que
dissera ao outro índio.
– Perguntei a ele se conhecia
algumas ervas que, nós, os Akawés, costumamos usar para ferimentos desse tipo.
Ele disse que sim, então pedi a ele que fosse tentar achar algumas delas.
Alguns dos nossos já foram atacados por crocodilos e usamos uma mistura dessas
ervas, tendo dado certo.
– Tudo bem, Amari, obrigado pela
ajuda.
Arumã, ao lado, pareceu ficar um
pouco enciumado, já que seu curandeiro teve que ser orientado por um índio de
outra tribo para ir buscar o remédio a ser usado. Mas, ficou quieto em seu
canto.
Dali a pouco, o curandeiro voltava
com as ervas pedidas por Amari. Este deu-lhe algumas instruções e o curandeiro,
também se agachando, fez uma espécie de emplastro sobre o ferimento, cobrindo-o
totalmente.
Faustino, então, cobriu ainda mais
o emplastro de ervas com uma espécie de gaze, enfaixando do local da ferida até
o ombro do negro.
Levantando-se, depois de fechar a
maleta de medicamentos, disse para Pedro:
– Bem, Pedro, chame mais alguns
homens e o carreguem com cuidado para a tenda. Aproveitem que ele ainda não
recuperou os sentidos. E, vamos rezar para que não inflame.
Colocando o braço direito sobre o
ombro da mulher, apertou-a contra o peito nu, caminhando vagarosamente em
direção à própria tenda. A noite caiu rapidamente, tornado o céu escuro como
breu, o silêncio da mata parecendo querer engolir tudo em volta.
Os dias que se seguiram foram de
relativa tranquilidade. Fora um espinho no pé de um aqui, uma picada de cobra
não venenosa em outro ali, incidentes menores, nada de extraordinário
aconteceu.
A
produção seguia célere, agora com o reforço dos Akawés que rapidamente se
entrosaram no ritmo normal de trabalho do acampamento.
A barriga de Maria Teresa
aumentava a olhos vistos, já estávamos quase no fim de novembro, a hora do
parto aproximava-se. Faustino estava um pouco apreensivo, pois não recebera
nenhuma notícia de Morais e, principalmente, de Ana. Somente a presença da
mulher do amigo junto a Teresa lhe daria tranquilidade. Lembrava-se muito bem
de sua eficiência quando ele chegou doente a Belém, na última expedição. Os
dias passados junto à sua cabeceira, tentando vencer a malária que o deixara
prostrado, com febre contínua e à beira da morte, estavam bem vivos em sua
mente. Sua experiência como enfermeira aposentada do melhor hospital de Belém
foi fator preponderante para salvar-lhe a vida.
Por isso, só iria sentir-se
tranquilo quando eles chegassem. Todo dia, quando deixava sua barraca, a
primeira coisa que fazia era olhar para a esquerda, onde o igarapé se perdia de
vista. Torcia intimamente para ver a “Filomena” resfolegando e se aproximando
lentamente do atracadouro. Nada, dia após dia.
O galpão de estocagem das pélas já
estava quase lotado, não iria caber muita coisa mais em pouco tempo.
Finalmente, em 26 de novembro, a
“Filomena” novamente apitou ao longe, anunciando sua chegada. Depois que
atracaram, após os cumprimentos costumeiros, Faustino ordenou a Pedro que
levantasse outra tenda para Morais, Ana e Maria do Céu, a filha do casal, que
fez questão de acompanhá-los
na
aventura. Miranda ficou na barraca de Pedro.
aventura. Miranda ficou na barraca de Pedro.
A barriga de Maria Teresa estava
enorme, o “bichinho” estava agitado, cada vez se mexia mais. Ana fez-lhe um
exame detalhado, constatou que a gravidez corria normalmente e o parto seria
para dali a alguns dias.
Depois de alojados, na hora do
almoço, Faustino relatou a Morais e à mulher o episódio da aproximação com os Akawés
e como eles, agora, estavam adaptados à rotina de trabalho do acampamento.
Contou, também, o incidente da perda do antebraço de João Paulo.
Morais riu gostosamente.
– Só mesmo você, Faustino, só
mesmo você – repetiu a frase costumeira. – Nunca vi ninguém ter tanta
facilidade para lidar com os índios. Acho que, procurando bem, você deve ter
alguma coisa do sangue deles correndo nas tuas veias.
– Você precisava ter visto a
aflição em que fiquei quando esse homem decidiu atravessar o igarapé para falar
com os
Akawés. Quase que tenho a criança antes do tempo – interveio Maria Teresa, fazendo todos rir à vontade.
Akawés. Quase que tenho a criança antes do tempo – interveio Maria Teresa, fazendo todos rir à vontade.
O episódio do crocodilo atacando
João Paulo quase não foi comentado, até por ser corriqueiro na região.
À tarde, Faustino levou Morais e
Miranda até o barracão onde as pélas estavam estocadas. O local estava cheio,
já havia pélas fora do barracão, espalhadas pelo chão. O que não era bom.
– Estava com medo que vocês se
atrasassem, Morais. Já não tinha mais local para estocar as pélas e se elas
ficarem apanhando chuva durante muitos dias, a borracha fica dura, imprestável
para o consumo – comentou Faustino.
– Sei disso, Faustino. Mas, a
“Filomena” deu uma “pifada” no motor e tive que consertar em Santarém, perdendo
três dias de viagem parado lá – retrucou Morais.
– E eu aqui, nessa imensidão do
nada, sem saber o que aconteceu – filosofou Faustino. – E, mais preocupado
estava com a aproximação da hora de Maria Teresa e sem a Ana aqui do lado dela.
– Bem, graças a Deus, chegamos a
tempo e está tudo bem – disse Morais, batendo de leve com a mão esquerda no
ombro do amigo.
Como da vez anterior, Faustino
escolheu três homens para auxiliarem Morais e Miranda no carregamento das pélas
para a “Filomena”. Morais deu as ordens necessárias e o trabalho de transporte
das enormes bolas de borracha defumada começou.
No final da tarde, mais um dia de
trabalho se encerrava. Os homens voltavam dos seringais com os baldes cheios de
látex, os buiões já estavam esperando para defumar a seiva das seringueiras.
Uma turma ia tomar o seu banho de rio, aguardando a hora do jantar, enquanto a
outra começava o seu trabalho, preparando as pélas para estocagem. O transporte
das mesmas para a “Filomena” também se encerrava, aproveitando Morais, Miranda,
Venâncio, Marivaldo e José Ribamar para um banho rápido antes da refeição.
Amari e os demais Akawés
atravessaram o igarapé, indo repousar do outro lado do riacho, junto com sua
gente.
O pessoal de Faustino jantou em
volta da fogueira, ao som do violão do José Ribamar.
O ambiente estava alegre,
descontraído, bem diferente de algum tempo atrás...
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