sexta-feira, dezembro 02, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 41

OS DESBRAVADORES

Capítulo 41

Calfilho



XLI


O único fato que causou maior rebuliço no acampamento foi a perda de um braço de João Paulo. O negro, acompanhado de Zeferino e Venâncio, depois de um cansativo dia de trabalho, foi lavar-se à beira do igarapé, em local protegido pela vegetação, para não ficar nu na frente das mulheres. João Paulo arriscou-se a ir na parte mais funda do riacho, quando num bote rápido e certeiro, um enorme crocodilo atracou-se no seu braço esquerdo. Com sua força descomunal, conseguiu levantar o bicho, de mais de dois metros de comprimento, acima da linha d’água. Este continuava agarrado firmemente em seu braço. Quando novamente voltou para a água, o negro já estava com metade do membro superior fora do corpo, na altura do cotovelo. Conseguiu nadar correndo de volta para a margem, o sangue escorrendo-lhe com intensidade do coto, os ossos à mostra, enquanto o crocodilo se deliciava com o jantar inesperado.
Zeferino e Venâncio gritavam a plenos pulmões, tentando pedir ajuda. Pedro e Firmino acudiram correndo, enquanto João Paulo, sentado na margem, continuava a sangrar abundantemente. Não deu um grito, a dor estava estampada em seu rosto, ele aguentando firme, sem reclamar. Pedro, vendo a gravidade do ferimento, tirou rápido sua própria camisa, enrolando-a no coto do braço de João Paulo. Mandou Firmino procurar Faustino.
Este, em sua tenda, tirava a roupa e se preparava para tomar o banho do fim do dia. Firmino veio correndo, gritando do lado de fora:
– Patrão, patrão, venha rápido. O João perdeu o braço.
Faustino, surpreso, sem camisa, veio para fora da barraca:
– O que foi, Firmino? Fala devagar, fica calmo.
O caboclo respondeu, gaguejando:
– O João Paulo, patrão. O jacaré... o jacaré comeu o braço dele.
Faustino saiu correndo na direção indicada por Firmino. Lá, Pedro estava agachado ao lado do negro, apertando fortemente a camisa empapada de sangue contra o coto em carne viva.
– O que aconteceu, Pedro? – perguntou Faustino, o tom de voz nervoso.
Pedro nem olhou para ele. Continuava apertando com força a camisa contra o que restou do braço de João Paulo. Respondeu:
– Parece que foi crocodilo, patrão. Na hora em que tomava banho.
Faustino olhava para o sangue escorrendo abundantemente pela camisa apertada contra o que restou do braço de João Paulo. O negro estava nu, assim como Zeferino e Venâncio, que pareciam paralisados de terror, assistindo tudo ali ao lado, em pé, a um metro de distância.
Faustino recobrou o sangue-frio. Ordenou a Firmino
– Corre lá na taba dos Denis e chama Arumã. Conta rapidamente o que aconteceu e traz ele correndo aqui. Pedro, deixa que eu fico segurando essa camisa. Corre lá na minha tenda e traz a maleta de primeiros socorros.
Abaixou-se e substituiu Pedro na tarefa de tentar estancar o sangue que empapava a camisa que fazia às vezes de torniquete na parte superior do braço de João Paulo. Pedro saiu correndo em direção à tenda de Faustino.
O sangue parecia que começava a diminuir a intensidade com que escorria. Apertando fortemente a camisa ensanguentada contra o ferimento, Faustino olhou para João Paulo. O negro cerrava os dentes, mas não gritava, não queria aparentar sentir dor.
– Aguenta firme, João. Vamos tratar disso já – disse Faustino, tentando acalmar o negro.
João Paulo olhou para ele, olhos já embaçados, o sangue esvaindo-se de seu corpo. Esboçou um pequeno sorriso e desmaiou.
Arumã chegou correndo, acompanhado de alguns índios. Já tendo tomado ciência do que ocorrera pelo relato apressado de Firmino, trouxe consigo o curandeiro da tribo. Este ajoelhou-se ao lado de Faustino, olhando para a camisa encharcada de sangue. Pediu a Faustino, através de gestos, que soltasse o torniquete improvisado. Faustino tirou as mãos da camisa de Pedro, deixando que o índio examinasse o ferimento. Este retirou delicadamente o tecido de cima do coto de João Paulo. A carne estava dilacerada de forma irregular logo abaixo do cotovelo, aparecendo nítida a marca dos dentes do crocodilo na pele do negro. As pontas do rádio e do cúbito estavam salientes. Mas, o sangue parecia que havia estancado, o que diminuía o risco de hemorragia.
O curandeiro continuava olhando para o ferimento, aparentando não saber o que fazer. Olhou para Arumã, depois para Faustino, procurando por uma sugestão. Nesse momento, chegou Pedro correndo, Maria Teresa logo atrás.
Faustino, vendo que a mulher também se aproximava, mandou Zeferino e Venâncio saírem dali, pois os dois, ainda nus, continuavam paralisados no local. Os caboclos obedeceram imediatamente, escondendo-se por trás de algumas moitas da vegetação. Faustino, com uma folha de paxiúba, cobriu precariamente as partes íntimas de João Paulo, agora estirado no chão, ainda desacordado.
Faustino pegou a maleta de primeiros socorros das mãos de Pedro, abrindo-a rapidamente. Agachou-se novamente ao lado de João Paulo, retirando a tampa de cortiça de um vidro de álcool. Despejou o líquido sobre um grande chumaço de algodão e procurou limpar o ferimento.
Dirigiu-se a Pedro:
– Pedro, vai lá na fogueira, queima bem a ponta de uma faca até ela ficar em brasa. Depois traz correndo de volta.
Pedro correu para obedecer ao solicitado. Faustino continuava a limpeza do ferimento de João Paulo, procurando desinfetá-lo bem. O sangue, agora, escorria apenas de um pequeno filete. Ainda bem que o negro estava desacordado, não sentindo a dor que lhe devia estar sendo causada.
Pedro voltou com uma pequena faca com a ponta ainda rubra, incandescente.
Faustino mandou que Maria Teresa se afastasse um pouco. Encostou, então, a ponta da faca na extremidade do coto de João Paulo, procurando cauterizá-lo bem. O cheiro de carne queimada fez com que Maria Teresa e Firmino vomitassem na mesma hora. Lá de dentro do mato, onde ainda estavam Venâncio e Zeferino, também se ouviram ruídos de gente vomitando.
Nessa hora, João Paulo parece que quis acordar. Abriu os olhos por um instante, seu rosto fez uma contração de dor.  Desmaiou novamente.
Amari, tendo visto o movimento da outra margem do igarapé, atravessou o mesmo rapidamente, procurando também ajudar. Inteirando-se do ocorrido, dirigiu-se ao curandeiro dos Denis, que estava em pé, ao lado de Arumã. Trocaram algumas palavras na língua deles e o curandeiro afastou-se rapidamente.
Faustino perguntou a Amari o que dissera ao outro índio.
– Perguntei a ele se conhecia algumas ervas que, nós, os Akawés, costumamos usar para ferimentos desse tipo. Ele disse que sim, então pedi a ele que fosse tentar achar algumas delas. Alguns dos nossos já foram atacados por crocodilos e usamos uma mistura dessas ervas, tendo dado certo.
– Tudo bem, Amari, obrigado pela ajuda.
Arumã, ao lado, pareceu ficar um pouco enciumado, já que seu curandeiro teve que ser orientado por um índio de outra tribo para ir buscar o remédio a ser usado. Mas, ficou quieto em seu canto.
Dali a pouco, o curandeiro voltava com as ervas pedidas por Amari. Este deu-lhe algumas instruções e o curandeiro, também se agachando, fez uma espécie de emplastro sobre o ferimento, cobrindo-o totalmente.
Faustino, então, cobriu ainda mais o emplastro de ervas com uma espécie de gaze, enfaixando do local da ferida até o ombro do negro.
Levantando-se, depois de fechar a maleta de medicamentos, disse para Pedro:
– Bem, Pedro, chame mais alguns homens e o carreguem com cuidado para a tenda. Aproveitem que ele ainda não recuperou os sentidos. E, vamos rezar para que não inflame.
Colocando o braço direito sobre o ombro da mulher, apertou-a contra o peito nu, caminhando vagarosamente em direção à própria tenda. A noite caiu rapidamente, tornado o céu escuro como breu, o silêncio da mata parecendo querer engolir tudo em volta.
Os dias que se seguiram foram de relativa tranquilidade. Fora um espinho no pé de um aqui, uma picada de cobra não venenosa em outro ali, incidentes menores, nada de extraordinário aconteceu.
  A produção seguia célere, agora com o reforço dos Akawés que rapidamente se entrosaram no ritmo normal de trabalho do acampamento.
A barriga de Maria Teresa aumentava a olhos vistos, já estávamos quase no fim de novembro, a hora do parto aproximava-se. Faustino estava um pouco apreensivo, pois não recebera nenhuma notícia de Morais e, principalmente, de Ana. Somente a presença da mulher do amigo junto a Teresa lhe daria tranquilidade. Lembrava-se muito bem de sua eficiência quando ele chegou doente a Belém, na última expedição. Os dias passados junto à sua cabeceira, tentando vencer a malária que o deixara prostrado, com febre contínua e à beira da morte, estavam bem vivos em sua mente. Sua experiência como enfermeira aposentada do melhor hospital de Belém foi fator preponderante para salvar-lhe a vida.
Por isso, só iria sentir-se tranquilo quando eles chegassem. Todo dia, quando deixava sua barraca, a primeira coisa que fazia era olhar para a esquerda, onde o igarapé se perdia de vista. Torcia intimamente para ver a “Filomena” resfolegando e se aproximando lentamente do atracadouro. Nada, dia após dia.
O galpão de estocagem das pélas já estava quase lotado, não iria caber muita coisa mais em pouco tempo.
Finalmente, em 26 de novembro, a “Filomena” novamente apitou ao longe, anunciando sua chegada. Depois que atracaram, após os cumprimentos costumeiros, Faustino ordenou a Pedro que levantasse outra tenda para Morais, Ana e Maria do Céu, a filha do casal, que fez questão  de   acompanhá-los na
aventura. Miranda ficou na barraca de Pedro.
A barriga de Maria Teresa estava enorme, o “bichinho” estava agitado, cada vez se mexia mais. Ana fez-lhe um exame detalhado, constatou que a gravidez corria normalmente e o parto seria para dali a alguns dias.
Depois de alojados, na hora do almoço, Faustino relatou a Morais e à mulher o episódio da aproximação com os Akawés e como eles, agora, estavam adaptados à rotina de trabalho do acampamento. Contou, também, o incidente da perda do antebraço de João Paulo.
Morais riu gostosamente.
– Só mesmo você, Faustino, só mesmo você – repetiu a frase costumeira. – Nunca vi ninguém ter tanta facilidade para lidar com os índios. Acho que, procurando bem, você deve ter alguma coisa do sangue deles correndo nas tuas veias.
– Você precisava ter visto a aflição em que fiquei quando esse homem decidiu atravessar o igarapé para falar com os
Akawés. Quase que tenho a criança antes do tempo – interveio Maria Teresa, fazendo todos rir à vontade.
O episódio do crocodilo atacando João Paulo quase não foi comentado, até por ser corriqueiro na região.
À tarde, Faustino levou Morais e Miranda até o barracão onde as pélas estavam estocadas. O local estava cheio, já havia pélas fora do barracão, espalhadas pelo chão. O que não era bom.
– Estava com medo que vocês se atrasassem, Morais. Já não tinha mais local para estocar as pélas e se elas ficarem apanhando chuva durante muitos dias, a borracha fica dura, imprestável para o consumo – comentou Faustino.
– Sei disso, Faustino. Mas, a “Filomena” deu uma “pifada” no motor e tive que consertar em Santarém, perdendo três dias de viagem parado lá – retrucou Morais.
– E eu aqui, nessa imensidão do nada, sem saber o que aconteceu – filosofou Faustino. – E, mais preocupado estava com a aproximação da hora de Maria Teresa e sem a Ana aqui do lado dela.
– Bem, graças a Deus, chegamos a tempo e está tudo bem – disse Morais, batendo de leve com a mão esquerda no ombro do amigo.
Como da vez anterior, Faustino escolheu três homens para auxiliarem Morais e Miranda no carregamento das pélas para a “Filomena”. Morais deu as ordens necessárias e o trabalho de transporte das enormes bolas de borracha defumada começou.
No final da tarde, mais um dia de trabalho se encerrava. Os homens voltavam dos seringais com os baldes cheios de látex, os buiões já estavam esperando para defumar a seiva das seringueiras. Uma turma ia tomar o seu banho de rio, aguardando a hora do jantar, enquanto a outra começava o seu trabalho, preparando as pélas para estocagem. O transporte das mesmas para a “Filomena” também se encerrava, aproveitando Morais, Miranda, Venâncio, Marivaldo e José Ribamar para um banho rápido antes da refeição.
Amari e os demais Akawés atravessaram o igarapé, indo repousar do outro lado do riacho, junto com sua gente.
O pessoal de Faustino jantou em volta da fogueira, ao som do violão do José Ribamar.
O ambiente estava alegre, descontraído, bem diferente de algum tempo atrás...

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