OS DESBRAVADORES
Capítulo 43
Calfilho
XLIII
Naquela noite, depois de ter tomado
um pouco da sopa que Mário lhe trouxera, Maria Teresa quase não conseguia
suportar as dores.
Deitou-se no chão, sobre a esteira de
palha, forrada com um lençol de linho. Ali, na posição horizontal, sentia-se
mais confortável do que na rede, onde seu corpo ficava curvado nas costas.
Faustino estava deitado na sua rede,
olhos aberto, preocupado com o estado da mulher. Ana e Maria do Céu estavam
junto de Maria Teresa, apertando-lhe as mãos.
Ela suava abundantemente, gemia a
todo instante, não conseguia virar-se na esteira. A barriga pesava-lhe muito, o
“bichinho” também se mexia a todo o momento, não parava sossegado. Ela pedia
água, apertava com força a mão de Ana, falava palavras sem nexo.
Lá pelas quatro da madrugada, ninguém
havia conseguido dormir. Faustino cochilava de vez em quando, o mesmo fazia
Maria do Céu, sentada numa das espreguiçadeiras. Ana, recostada em outra, não
fechou os olhos.
As dores de Maria Teresa aumentavam
de intensidade e de frequência. Começou a gemer alto, o suor empapava-lhe a
camisola. Lá pelas quatro e meia, começaram as contrações, logo reconhecidas
por Ana, experiente em vários partos.
– Faustino... Faustino... – murmurou
ela.
Ele, que cochilava em sua rede,
despertou rapidamente.
– O que foi, Ana? Ela não está bem? –
perguntou.
– Tudo bem, Faustino, ela está bem.
Está chegando a hora. Por favor, mande chamar as índias parteiras para me darem
uma mão – respondeu. – E, mande ferver duas vasilhas com água.
Ele deu um salto, pulando fora da
rede. Calçou o chinelo de couro e saiu da tenda. Lá fora, mandou um dos homens
de vigia atravessar o igarapé para chamar a índia Akawé. Pedro estava acordado,
tomava café junto a uma das fogueiras.
– Tá na hora, patrão? – indagou.
– Acho que sim, Pedro. Por favor,
mande alguém lá nos Denis chamar a índia parteira para ajudar a Ana. E, acorde
o Mário, vou precisar dele.
Pedro saiu correndo para cumprir as
ordens. Dali a pouco aparecia Mário com cara de sono:
– Mário, bota umas três cacimbas com
água para ferver. E, por favor, faz um café fresco, bem forte – disse Faustino.
– O neném já vai nascer, patrão? –
indagou, curioso.
– Vai sim, Mário, vai sim –
respondeu, nervoso.
Mário avivou o fogo, colocou as
vasilhas cheias de água em cima, foi preparar o café. Faustino voltou para a
tenda. Logo em seguida, chegaram as índias parteiras. Ficaram olhando para
Maria Teresa e depois, como se tivessem combinado anteriormente, começaram a
dançar e cantar em torno dela.
Ana olhou espantada para a
movimentação das índias.
– Se é assim que elas vão me ajudar,
eu vou ficar sem pai nem mãe – comentou.
Faustino só olhava para aquilo tudo,
expressão abobalhada no rosto. Ana separou algumas toalhas limpas, não largando
o pulso de Maria Teresa, conferindo as batidas. Perguntou a Faustino:
– Faustino, a água já ferveu? Se já,
manda trazer para cá, por favor.
Ele abriu a porta da tenda, gritando
para fora:
– Mário, a água já está fervida?
O cozinheiro respondeu:
– Quase, patrão. Mais um ou dois
minutos.
– Traz logo pra cá, assim que ferver
– ordenou.
Voltou para o interior da tenda.
Maria Teresa gritava agora a plenos pulmões, não conseguindo controlar os
gemidos. Ana cobriu-lhe as pernas já abertas, enfiando a cabeça por baixo do
lençol.
Mário chegou com
duas vasilhas com água fervendo. Passou-as a Faustino. Este chamou Maria do
Céu, pedindo-lhe que as levasse até Ana.
Quando a menina se aproximou, as
índias pegaram as vasilhas de suas mãos. Cada uma delas despejou um pouco de
água em duas pequenas cuias de casca de coco. Depois, entregaram as vasilhas
para Ana, que as colocou em cima de dois caixotes ao lado.
Maria Teresa continuava a gritar. Ana
mandou que Maria do Céu segurasse seus braços acima da cabeça. As índias
aproximaram-se com uma beberagem dentro das cuias, fazendo gestos para que Ana
desse para Maria Teresa beber. Ela, a princípio desconfiada, acabou fazendo o
que lhe pediam.
– Tome, Teresa, é um chazinho que as
índias prepararam para você. Deve servir para te acalmar um pouco.
Ela bebeu, sem se importar com o que
era. Queria qualquer coisa que lhe trouxesse algum alívio.
Para surpresa de Ana, em poucos
minutos, Maria Teresa pareceu ficar mais tranquila. Ainda gritava muito, mas
agora estava mais calma, a respiração parecia estar mais controlada.
Ana, depois de lavar bem as mãos numa
das vasilhas, secou-as e enfiou-se de novo por baixo do lençol sobre as pernas
da gestante. Pegou duas toalhas, embebendo-as na água quente e torcendo-as
sobre as vasilhas.
Falava alto:
– Força, Teresa, força. Você tem que ajudar.
Teresa gemia,
procurava fazer força. As duas índias agora estavam ao lado de Ana, ajudando-a
com as toalhas.
– Força, Teresa,
força. Depois, você vai relaxar.
Teresa gemia,
suava. Ana continuava a incentivá-la.
– Força, Teresa.
Ele já está vindo.
Teresa agora já
urrava de dor.
– Força, Teresa,
mais força. Já estou com a cabecinha dele nas mãos.
Teresa chorava e ria ao mesmo tempo.
Ofegante, procurava fazer força, ajudando o filho a vir ao mundo.
– Mais um pouquinho de força, Teresa.
Ele já está quase todo do lado de fora.
Maria do Céu continuava segurando
firmemente os braços de Teresa. Tinha os olhos arregalados, nunca tinha visto
cena igual. Faustino, não aguentando mais ficar ali dentro, saiu da tenda,
acendendo nervosamente um cigarro do lado de fora. As índias agora retomavam o
seu canto e sua dança em volta de Maria Teresa.
Finalmente, ouviu-se um choro de
criança.
Duas lágrimas rolaram dos olhos de
Faustino, que não conseguiu conter a emoção. “Pai, finalmente era pai...”.
Entrou descontrolado na tenda, sem ao
menos apagar o cigarro. Ana olhou com censura para a sua mão direita. Jogou o
cigarro no chão de terra, pisando-o.
Ana desinfetava a tesoura com álcool
para cortar o cordão umbilical.
Faustino aproximou-se e viu a criança
enrolada num lençol de linho branco, a boquinha aberta num choro estridente.
Estava nos braços de Maria do Céu, minúscula, parecendo um pequeno animal.
– É menino, Faustino – disse Ana, ao
lado da filha, acabando de desinfetar a tesoura.
Cortou o cordão que prendia a criança
à mãe, depois passou-lhe uma toalha úmida pelo corpinho.
Faustino não cabia em si de
contentamento. Chorava, mesmo fazendo força para não deixar transparecer sua
emoção, não se atrevendo a segurar a criança nos braços. Depois de alguns
instantes daquela paralisia momentânea, foi até onde estava Maria Teresa, que
agora já respirava normalmente. Apertou-lhe a mão direita, o rosto molhado pelas
lágrimas que teimavam em continuar a correr.
– É menino, Teresa, é menino – disse,
a voz embargada.
Ela estava lívida, o rosto azulado,
de uma cor incomum. Também apertou com força a mão do marido. Disse:
– Eu já sei, Faustino, ouvi a Ana
falar.
Olhava com admiração para Faustino,
contente por ver sua reação. O homem durão, que não tinha medo de nada,
acostumado a enfrentar com frieza os piores perigos, chorava como uma criança
ali na sua frente. Era gostoso ver que ele também tinha emoções, não era
somente frieza, insensibilidade, tudo aquilo que fazia questão de aparentar. Às
vezes, as pessoas colocam uma capa exterior de dureza, ausência de sentimentos,
só para impressionar aqueles que o cercam. Na realidade, têm o coração mole
como manteiga, deixam suas reações aflorarem nos momentos de extrema
sensibilidade, mostrando quem
realmente são.
realmente são.
Maria Teresa tinha certeza de que o
marido era um desses homens. Duro, exigente com seus empregados, rigoroso no
cumprimento das obrigações assumidas, ao seu lado abria o coração. Por isso por
ele se apaixonara, menina ainda, quando o via passar nas ruas de Fortaleza.
Sabia que aquele homem altivo, porte soberbo, severo com as irmãs, escondia um
ser humano sensível, doce e carinhoso. Só o tempo viria demonstrar-lhe essa sua
faceta.
Ana, depois de limpar a criança com a
toalha úmida, deitou-a nos braços da mãe. Faustino e Maria Teresa olhavam para
o filho com olhos de encantamento, de uma surda admiração. Não encontravam
palavras para exprimir o que sentiam.
Duas lágrimas também rolaram pelo
rosto de Maria Teresa. Ela, mesmo cansada, ainda conseguiu comentar:
– Viu, Faustino, é a tua cara...
Ele olhou fixamente para a criança,
que ainda não conseguia abrir os olhos. Depois, disse:
– Que nada, Teresa, ele é a tua cara.
Só quero ver a cor dos olhos.
O filho berrava a plenos pulmões. Ana
disse:
– Faustino, me dá licença um pouco,
vai lá fora fumar um cigarro. Quero ver se ponho o neném para mamar. Deve estar
faminto.
Ele afastou-se, enquanto as índias
continuavam dançando e cantando em torno de Maria Teresa. Do lado de fora,
Pedro e os homens aguardavam. O dia começava a clarear.
Pedro olhava interrogativamente para
o patrão. Faustino, já refeito da emoção de minutos antes, abriu um largo
sorriso.
– É menino, Pedro, é menino – repetiu
ele, dando um forte abraço no capataz.
Pedro retribuiu o gesto.
– Parabéns, patrão, o senhor merece.
Os homens, um pouco atrás, também
soltaram gritos de comemoração e abraçaram Faustino. Este tentava a custo
evitar que novas lágrimas lhe viessem aos olhos.
– Obrigado, pessoal, obrigado –
disse, finalmente, quando se viu livre dos abraços e cumprimentos. – Mário, vê
se manda caçar uns dois bichos grandes pra gente assar.
Chamou Pedro em separado e disse-lhe:
– Pedro, chama os homens, dois a dois
lá na tua tenda e serve uma rodada de cachaça pra eles. Mas, cuidado para os
índios não perceberem.
Depois disse alto, para todos
ouvirem:
– Bem, pessoal, hoje eu vou dar folga
para todo mundo. Fiquem à vontade, aproveitem como quiserem o dia, vamos
almoçar todos juntos. Quero vocês todos comemorando comigo o nascimento do meu
filho.
O pessoal recebeu a comunicação com
surpresa. Até ali tinham trabalhado duro, sem folgas, sem domingos ou feriados.
Todo dia tinha sido dia de trabalho. A meta era alcançar a produção encomendada
para terminarem logo o serviço. Tinham se esforçado ao máximo, debaixo de sol e
de chuva. Nada reclamavam, pois sabiam que quanto mais cedo terminassem, mais
cedo receberiam o dinheiro e voltariam para casa.
Assim que Faustino acabou de
comunicar o dia de folga, todos gritaram de alegria, jogando os chapéus de
palha para o alto. Alguns dançaram, outros se jogaram no igarapé de roupa e
tudo, a maioria se abraçou, sorriso de satisfação nos lábios. Os índios que, a
princípio, não entenderam direito o que se passava, aderiram à alegria dos
brancos. Também começaram a dançar em volta da fogueira, tocando ruidosamente
seus objetos de percussão.
Mário disse:
– Bem, quero ver quem vai caçar os
bichos para o almoço. Já vou preparar as panelas e acender as outras fogueiras.
O clima no acampamento era de
alegria, contentamento. Todos falavam alto, brincavam, faziam brincadeiras uns
com os outros. Os homens se dividiram em três grupos, e, assessorados por
alguns índios, foram caçar a presa para o almoço.
Faustino voltou para o interior da
tenda.
Ana passava uma esponja molhada pelo
corpo de Maria Teresa, enquanto as índias continuavam sua dança e cantoria em
volta. Maria do Céu segurava uma bacia com água morna, onde a mãe molhava e
espremia a esponja.
Percebendo a aproximação de Faustino,
disse:
– Faustino, vou deixar ela dormir um
pouco. Por enquanto, é melhor que ela fique aqui mesmo na esteira. Mais tarde,
a gente coloca ela na rede.
Ele concordou com um gesto de cabeça.
Não tirava os
olhos da criança, que parecia dormir tranquilamente sobre o braço esquerdo de Maria Teresa. Ainda não parecia completamente refeito da emoção que lhe causou o nascimento do filho.
olhos da criança, que parecia dormir tranquilamente sobre o braço esquerdo de Maria Teresa. Ainda não parecia completamente refeito da emoção que lhe causou o nascimento do filho.
Acabando de fazer a higiene na
parturiente, Ana enxotou as índias da tenda, fazendo-lhes vários gestos
indicativos com as mãos, tentando explicar-lhes que Maria Teresa agora
precisava descansar.
As índias, depois de Ana muito
insistir, acabaram compreendendo e concordaram em sair da cabana.
– Bem, Faustino, se você não se
importar, eu também queria descansar um pouco. Não preguei os olhos a noite
toda. Mas, quero ficar aqui, ao lado da Teresa, junto com a Maria do Céu, que,
coitada, também quase não dormiu. Será se você pode deixar a gente dormir umas
duas horas? – perguntou Ana.
Faustino entendeu a indireta.
– Claro, Ana, vocês bem merecem. Pode
deixar que eu vou ficar lá fora, não vou atrapalhar vocês – respondeu. –
Qualquer coisa, manda me chamar, estou por aí.
Saiu da cabana, fechando a porta de
lona. Estava feliz, uma sensação de alegria e contentamento invadia-lhe o
espírito. Distribuiu charutos entre os homens, foi até a tenda de Pedro, que
servia as doses de cachaça para os trabalhadores. Também tomou uma, batendo
copo com o capataz, brindando o nascimento do filho.
Uma sensação de alívio tomava conta
de seu corpo. Até ali tinha vários medos, muitas incertezas sobre se as coisas
correriam bem com Maria Teresa e a criança. A chegada de Ana tranquilizou-o um
pouco, mas suas dúvidas ainda persistiam. E, se alguma coisa corresse errada?
Se Teresa necessitasse de algum atendimento mais especializado, dos cuidados de
um hospital? Ali, naquele fim de mundo, estava entregue a Deus e a mais
ninguém. O lugar mais próximo, Itacoatiara, ficava a dois dias de viagem de
barco. Se algo desse errado, nada poderia fazer. Só rezar e nada mais...
Agora, não. Felizmente, o parto
correu sem problemas, a criança nascera forte e saudável. Era pai, podia
comemorar. Mais dois ou três meses de extração da borracha e poderiam estar de
volta a Fortaleza, onde poderia criar seu “bichinho” numa cidade grande,
cercada de todo os carinhos e cuidados...
1º de dezembro de 1916...
Aquela data seria marcante em sua
vida e na de Maria Teresa, representando não somente o dia do nascimento do
primeiro filho, mas o marco de uma nova definição de rumos de suas vidas dali
para frente...
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