quarta-feira, dezembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 43


OS DESBRAVADORES

Capítulo 43

Calfilho

XLIII



Naquela noite, depois de ter tomado um pouco da sopa que Mário lhe trouxera, Maria Teresa quase não conseguia suportar as dores.
Deitou-se no chão, sobre a esteira de palha, forrada com um lençol de linho. Ali, na posição horizontal, sentia-se mais confortável do que na rede, onde seu corpo ficava curvado nas costas.
Faustino estava deitado na sua rede, olhos aberto, preocupado com o estado da mulher. Ana e Maria do Céu estavam junto de Maria Teresa, apertando-lhe as mãos.
Ela suava abundantemente, gemia a todo instante, não conseguia virar-se na esteira. A barriga pesava-lhe muito, o “bichinho” também se mexia a todo o momento, não parava sossegado. Ela pedia água, apertava com força a mão de Ana, falava palavras sem nexo.
Lá pelas quatro da madrugada, ninguém havia conseguido dormir. Faustino cochilava de vez em quando, o mesmo fazia Maria do Céu, sentada numa das espreguiçadeiras. Ana, recostada em outra, não fechou os olhos.
As dores de Maria Teresa aumentavam de intensidade e de frequência. Começou a gemer alto, o suor empapava-lhe a camisola. Lá pelas quatro e meia, começaram as contrações, logo reconhecidas por Ana, experiente em vários partos.
– Faustino... Faustino... – murmurou ela.
Ele, que cochilava em sua rede, despertou rapidamente.
– O que foi, Ana? Ela não está bem? – perguntou.
– Tudo bem, Faustino, ela está bem. Está chegando a hora. Por favor, mande chamar as índias parteiras para me darem uma mão – respondeu. – E, mande ferver duas vasilhas com água.
Ele deu um salto, pulando fora da rede. Calçou o chinelo de couro e saiu da tenda. Lá fora, mandou um dos homens de vigia atravessar o igarapé para chamar a índia Akawé. Pedro estava acordado, tomava café junto a uma das fogueiras.
– Tá na hora, patrão? – indagou.
– Acho que sim, Pedro. Por favor, mande alguém lá nos Denis chamar a índia parteira para ajudar a Ana. E, acorde o Mário, vou precisar dele.
Pedro saiu correndo para cumprir as ordens. Dali a pouco aparecia Mário com cara de sono:
– Mário, bota umas três cacimbas com água para ferver. E, por favor, faz um café fresco, bem forte – disse Faustino.
– O neném já vai nascer, patrão? – indagou, curioso.
– Vai sim, Mário, vai sim – respondeu, nervoso.
Mário avivou o fogo, colocou as vasilhas cheias de água em cima, foi preparar o café. Faustino voltou para a tenda. Logo em seguida, chegaram as índias parteiras. Ficaram olhando para Maria Teresa e depois, como se tivessem combinado anteriormente, começaram a dançar e cantar em torno dela.
Ana olhou espantada para a movimentação das índias.
– Se é assim que elas vão me ajudar, eu vou ficar sem pai nem mãe – comentou.
Faustino só olhava para aquilo tudo, expressão abobalhada no rosto. Ana separou algumas toalhas limpas, não largando o pulso de Maria Teresa, conferindo as batidas. Perguntou a Faustino:
– Faustino, a água já ferveu? Se já, manda trazer para cá, por favor.
Ele abriu a porta da tenda, gritando para fora:
– Mário, a água já está fervida?
O cozinheiro respondeu:
– Quase, patrão. Mais um ou dois minutos.
– Traz logo pra cá, assim que ferver – ordenou.
Voltou para o interior da tenda. Maria Teresa gritava agora a plenos pulmões, não conseguindo controlar os gemidos. Ana cobriu-lhe as pernas já abertas, enfiando a cabeça por baixo do lençol.
Mário chegou com duas vasilhas com água fervendo. Passou-as a Faustino. Este chamou Maria do Céu, pedindo-lhe que as levasse até Ana.
Quando a menina se aproximou, as índias pegaram as vasilhas de suas mãos. Cada uma delas despejou um pouco de água em duas pequenas cuias de casca de coco. Depois, entregaram as vasilhas para Ana, que as colocou em cima de dois caixotes ao lado.
Maria Teresa continuava a gritar. Ana mandou que Maria do Céu segurasse seus braços acima da cabeça. As índias aproximaram-se com uma beberagem dentro das cuias, fazendo gestos para que Ana desse para Maria Teresa beber. Ela, a princípio desconfiada, acabou fazendo o que lhe pediam.
– Tome, Teresa, é um chazinho que as índias prepararam para você. Deve servir para te acalmar um pouco.
Ela bebeu, sem se importar com o que era. Queria qualquer coisa que lhe trouxesse algum alívio.
Para surpresa de Ana, em poucos minutos, Maria Teresa pareceu ficar mais tranquila. Ainda gritava muito, mas agora estava mais calma, a respiração parecia estar mais controlada.
Ana, depois de lavar bem as mãos numa das vasilhas, secou-as e enfiou-se de novo por baixo do lençol sobre as pernas da gestante. Pegou duas toalhas, embebendo-as na água quente e torcendo-as sobre as vasilhas.
Falava alto:
– Força, Teresa, força. Você tem que ajudar.
Teresa gemia, procurava fazer força. As duas índias agora estavam ao lado de Ana, ajudando-a com as toalhas.
– Força, Teresa, força. Depois, você vai relaxar.
Teresa gemia, suava. Ana continuava a incentivá-la.
– Força, Teresa. Ele já está vindo.
Teresa agora já urrava de dor.
– Força, Teresa, mais força. Já estou com a cabecinha dele nas mãos.
Teresa chorava e ria ao mesmo tempo. Ofegante, procurava fazer força, ajudando o filho a vir ao mundo.
– Mais um pouquinho de força, Teresa. Ele já está quase todo do lado de fora.
Maria do Céu continuava segurando firmemente os braços de Teresa. Tinha os olhos arregalados, nunca tinha visto cena igual. Faustino, não aguentando mais ficar ali dentro, saiu da tenda, acendendo nervosamente um cigarro do lado de fora. As índias agora retomavam o seu canto e sua dança em volta de Maria Teresa.
Finalmente, ouviu-se um choro de criança.
Duas lágrimas rolaram dos olhos de Faustino, que não conseguiu conter a emoção. “Pai, finalmente era pai...”.
Entrou descontrolado na tenda, sem ao menos apagar o cigarro. Ana olhou com censura para a sua mão direita. Jogou o cigarro no chão de terra, pisando-o.
Ana desinfetava a tesoura com álcool para cortar o cordão umbilical.
Faustino aproximou-se e viu a criança enrolada num lençol de linho branco, a boquinha aberta num choro estridente. Estava nos braços de Maria do Céu, minúscula, parecendo um pequeno animal.
– É menino, Faustino – disse Ana, ao lado da filha, acabando de desinfetar a tesoura.
Cortou o cordão que prendia a criança à mãe, depois passou-lhe uma toalha úmida pelo corpinho.
Faustino não cabia em si de contentamento. Chorava, mesmo fazendo força para não deixar transparecer sua emoção, não se atrevendo a segurar a criança nos braços. Depois de alguns instantes daquela paralisia momentânea, foi até onde estava Maria Teresa, que agora já respirava normalmente. Apertou-lhe a mão direita, o rosto molhado pelas lágrimas que teimavam em continuar a correr.
– É menino, Teresa, é menino – disse, a voz embargada.
Ela estava lívida, o rosto azulado, de uma cor incomum. Também apertou com força a mão do marido. Disse:
– Eu já sei, Faustino, ouvi a Ana falar.
Olhava com admiração para Faustino, contente por ver sua reação. O homem durão, que não tinha medo de nada, acostumado a enfrentar com frieza os piores perigos, chorava como uma criança ali na sua frente. Era gostoso ver que ele também tinha emoções, não era somente frieza, insensibilidade, tudo aquilo que fazia questão de aparentar. Às vezes, as pessoas colocam uma capa exterior de dureza, ausência de sentimentos, só para impressionar aqueles que o cercam. Na realidade, têm o coração mole como manteiga, deixam suas reações aflorarem nos momentos de extrema sensibilidade, mostrando quem
realmente são.
Maria Teresa tinha certeza de que o marido era um desses homens. Duro, exigente com seus empregados, rigoroso no cumprimento das obrigações assumidas, ao seu lado abria o coração. Por isso por ele se apaixonara, menina ainda, quando o via passar nas ruas de Fortaleza. Sabia que aquele homem altivo, porte soberbo, severo com as irmãs, escondia um ser humano sensível, doce e carinhoso. Só o tempo viria demonstrar-lhe essa sua faceta.
Ana, depois de limpar a criança com a toalha úmida, deitou-a nos braços da mãe. Faustino e Maria Teresa olhavam para o filho com olhos de encantamento, de uma surda admiração. Não encontravam palavras para exprimir o que sentiam.
Duas lágrimas também rolaram pelo rosto de Maria Teresa. Ela, mesmo cansada, ainda conseguiu comentar:
– Viu, Faustino, é a tua cara...
Ele olhou fixamente para a criança, que ainda não conseguia abrir os olhos. Depois, disse:
– Que nada, Teresa, ele é a tua cara. Só quero ver a cor dos olhos.
O filho berrava a plenos pulmões. Ana disse:
– Faustino, me dá licença um pouco, vai lá fora fumar um cigarro. Quero ver se ponho o neném para mamar. Deve estar faminto.
Ele afastou-se, enquanto as índias continuavam dançando e cantando em torno de Maria Teresa. Do lado de fora, Pedro e os homens aguardavam. O dia começava a clarear.
Pedro olhava interrogativamente para o patrão. Faustino, já refeito da emoção de minutos antes, abriu um largo sorriso.
– É menino, Pedro, é menino – repetiu ele, dando um forte abraço no capataz.
Pedro retribuiu o gesto.
– Parabéns, patrão, o senhor merece.
Os homens, um pouco atrás, também soltaram gritos de comemoração e abraçaram Faustino. Este tentava a custo evitar que novas lágrimas lhe viessem aos olhos.
– Obrigado, pessoal, obrigado – disse, finalmente, quando se viu livre dos abraços e cumprimentos. – Mário, vê se manda caçar uns dois bichos grandes pra gente assar.
Chamou Pedro em separado e disse-lhe:
– Pedro, chama os homens, dois a dois lá na tua tenda e serve uma rodada de cachaça pra eles. Mas, cuidado para os índios não perceberem.
Depois disse alto, para todos ouvirem:
– Bem, pessoal, hoje eu vou dar folga para todo mundo. Fiquem à vontade, aproveitem como quiserem o dia, vamos almoçar todos juntos. Quero vocês todos comemorando comigo o nascimento do meu filho.
O pessoal recebeu a comunicação com surpresa. Até ali tinham trabalhado duro, sem folgas, sem domingos ou feriados. Todo dia tinha sido dia de trabalho. A meta era alcançar a produção encomendada para terminarem logo o serviço. Tinham se esforçado ao máximo, debaixo de sol e de chuva. Nada reclamavam, pois sabiam que quanto mais cedo terminassem, mais cedo receberiam o dinheiro e voltariam para casa.
Assim que Faustino acabou de comunicar o dia de folga, todos gritaram de alegria, jogando os chapéus de palha para o alto. Alguns dançaram, outros se jogaram no igarapé de roupa e tudo, a maioria se abraçou, sorriso de satisfação nos lábios. Os índios que, a princípio, não entenderam direito o que se passava, aderiram à alegria dos brancos. Também começaram a dançar em volta da fogueira, tocando ruidosamente seus objetos de percussão.
Mário disse:
– Bem, quero ver quem vai caçar os bichos para o almoço. Já vou preparar as panelas e acender as outras fogueiras.
O clima no acampamento era de alegria, contentamento. Todos falavam alto, brincavam, faziam brincadeiras uns com os outros. Os homens se dividiram em três grupos, e, assessorados por alguns índios, foram caçar a presa para o almoço.
Faustino voltou para o interior da tenda.
Ana passava uma esponja molhada pelo corpo de Maria Teresa, enquanto as índias continuavam sua dança e cantoria em volta. Maria do Céu segurava uma bacia com água morna, onde a mãe molhava e espremia a esponja.
Percebendo a aproximação de Faustino, disse:
– Faustino, vou deixar ela dormir um pouco. Por enquanto, é melhor que ela fique aqui mesmo na esteira. Mais tarde, a gente coloca ela na rede.
Ele concordou com um gesto de cabeça. Não tirava os
olhos da criança, que parecia dormir tranquilamente sobre o braço esquerdo de Maria Teresa. Ainda não parecia completamente refeito da emoção que lhe causou o nascimento do filho.
Acabando de fazer a higiene na parturiente, Ana enxotou as índias da tenda, fazendo-lhes vários gestos indicativos com as mãos, tentando explicar-lhes que Maria Teresa agora precisava descansar.
As índias, depois de Ana muito insistir, acabaram compreendendo e concordaram em sair da cabana.
– Bem, Faustino, se você não se importar, eu também queria descansar um pouco. Não preguei os olhos a noite toda. Mas, quero ficar aqui, ao lado da Teresa, junto com a Maria do Céu, que, coitada, também quase não dormiu. Será se você pode deixar a gente dormir umas duas horas? – perguntou Ana.
Faustino entendeu a indireta.
– Claro, Ana, vocês bem merecem. Pode deixar que eu vou ficar lá fora, não vou atrapalhar vocês – respondeu. – Qualquer coisa, manda me chamar, estou por aí.
Saiu da cabana, fechando a porta de lona. Estava feliz, uma sensação de alegria e contentamento invadia-lhe o espírito. Distribuiu charutos entre os homens, foi até a tenda de Pedro, que servia as doses de cachaça para os trabalhadores. Também tomou uma, batendo copo com o capataz, brindando o nascimento do filho.
Uma sensação de alívio tomava conta de seu corpo. Até ali tinha vários medos, muitas incertezas sobre se as coisas correriam bem com Maria Teresa e a criança. A chegada de Ana tranquilizou-o um pouco, mas suas dúvidas ainda persistiam. E, se alguma coisa corresse errada? Se Teresa necessitasse de algum atendimento mais especializado, dos cuidados de um hospital? Ali, naquele fim de mundo, estava entregue a Deus e a mais ninguém. O lugar mais próximo, Itacoatiara, ficava a dois dias de viagem de barco. Se algo desse errado, nada poderia fazer. Só rezar e nada mais...
Agora, não. Felizmente, o parto correu sem problemas, a criança nascera forte e saudável. Era pai, podia comemorar. Mais dois ou três meses de extração da borracha e poderiam estar de volta a Fortaleza, onde poderia criar seu “bichinho” numa cidade grande, cercada de todo os carinhos e cuidados...
1º de dezembro de 1916...
Aquela data seria marcante em sua vida e na de Maria Teresa, representando não somente o dia do nascimento do primeiro filho, mas o marco de uma nova definição de rumos de suas vidas dali para frente...

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