quinta-feira, dezembro 08, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 44

OS DESBRAVADORES

Capítulo 44

Calfilho





Segunda Parte

Os Caminhos do Sul


XLIV



O velho cargueiro rangia ruidosamente, avançando com cautela nas águas revoltas do Atlântico.
Desde que deixara o porto de Vigo, só viajara com mar encapelado, balançando bastante, com ondas gigantescas batendo-lhe vigorosamente no casco.
Seu nome era “Highland Chieftain”, de bandeira inglesa. Fazia, com regularidade e há mais de dez anos, a rota entre Southampton e Buenos Aires, transportando mercadorias diversas, originárias da Inglaterra e alguns outros países da Europa, para a América do Sul, em especial para o Brasil e Argentina.
Entretanto, depois do desenvolvimento da agricultura no Brasil, principalmente a lavoura do café, passou a reservar um andar inteiro para o transporte de imigrantes espanhóis e portugueses. Nesse andar havia dois enormes dormitórios, um feminino, outro masculino, com mais de trezentas camas tipo beliche em cada um. Mesmo as famílias constituídas eram separadas nos dois dormitórios, ficando as crianças com as mães, no feminino. Um refeitório bem grande servia as refeições em dois turnos, mas a comida era a mesma. Os passageiros, que pagavam o correspondente a oitenta libras por pessoa pela viagem, tinham acesso ao convés superior, onde podiam tomar sol e respirar ar puro. Mas, não tinham áreas de lazer ou de descanso, viajando em condições precárias de conforto e higiene, quase amontoados como gado.
Para eles, entretanto, valia a pena o sacrifício. A grande maioria era de analfabetos ou semialfabetizados, originários das pequenas cidades do interior da Espanha e Portugal, onde a agricultura e a pecuária rudimentar eram o forte da economia local. As perspectivas de melhoria de vida ali eram quase mínimas e poucos se atreviam a deixar suas cidades em busca de centros maiores de seus próprios países, onde as dificuldades para sobreviver seriam ainda maiores.
Além do mais, a guerra que explodira na Europa em 1914, estava batendo nas portas de Portugal e Espanha, causando grande desemprego e fome na população mais carente. A juventude masculina desses países já tinha receio de ser convocada para participar do conflito mundial que se travava de forma violenta nas terras de Alemanha, França, Itália e países vizinhos.
Assim, muitos deles, por falta de perspectiva de um futuro melhor em seus países ou pelo medo de serem convocados para a guerra europeia, buscavam guarida nos países da América do Sul que lhes ofereciam oportunidades de trabalho, principalmente na lavoura. Além, disso, Brasil e Argentina, os dois mais procurados pelos imigrantes espanhóis, italianos e portugueses, devido à identidade das línguas, pareciam bem distantes de se envolverem no conflito mundial.
Como a agricultura era o elemento mais forte da economia daqueles países sul-americanos, a necessidade de mão de obra barata era imperiosa desde a libertação dos escravos negros no Brasil, em 1888. As grandes lavouras de café e açúcar, principalmente as duas, sofreram uma queda brutal na produção, após perderem a mão de obra escrava. Desta forma, a vinda de imigrantes, acostumados ao trabalho duro em seus países de origem, era mais que bem-vinda.
Manuel Blando, mais conhecido pelo apelido de Manolo, espanhol da Galícia, era um desses imigrantes. Natural de uma pequena cidade do interior daquela região espanhola, filho de família numerosa, via com tristeza o pai e a mãe lutarem impotentes para conseguir alimentar os filhos. A pequena lavoura que exploravam mal dava para o sustento da prole numerosa. A mãe costurava até altas horas da madrugada, tentando ajudar a colocar algum dinheiro dentro de casa. Ele e alguns irmãos adolescentes tentaram conseguir trabalho em diversos lugares, mas nada conseguiram. Um biscate aqui, outro ali, no máximo uma colocação temporária em alguma lavoura. A fome batia-lhes à porta e era com pesar e um aperto no coração que reparava nos irmãos menores que, com olhos de súplica, imploravam por um pedaço de pão.
Para piorar, as notícias inquietantes da guerra próxima agora eram mais frequentes e a iminência da Espanha ser atingida pelo conflito era mais real. Estava ele com 21 anos de idade e se seu país entrasse na guerra, certamente seria convocado.
“Não, não iria servir de bucha de canhão numa guerra com a qual não tinha nada a ver” – pensava consigo mesmo.
Seu irmão mais velho, José, o “Pepe”, já tinha partido para o Brasil dois anos antes, logo que a guerra foi deflagrada. Escrevera dizendo que estava trabalhando numa lavoura de café no interior de São Paulo. Em sua carta, contava maravilhas sobre o Brasil, as oportunidades de emprego, a tranquilidade do país, a boa acolhida que tivera. Incentivava os irmãos a seguirem o mesmo caminho, acenando-lhes com uma possibilidade de uma vida melhor e um futuro promissor.
Manolo, a princípio, resistiu à ideia de afastar-se dos seus, de sua terra natal. Sentia que o pai e a mãe estavam muito fragilizados, praticamente sem forças para suportar aquele estado de coisas. Aguentou o quanto pôde, procurando apoiar a família naquela situação. Mas, como a possibilidade de ser convocado para a guerra aumentasse, e não vendo qualquer perspectiva de melhorar de vida, acabou por decidir-se. Afinal, seria uma boca de menos para alimentar.
Assim, conseguiu juntar com dificuldade o dinheiro para a passagem e, no dia 1º de dezembro de 1916, embarcava no “Highland Chieftain” rumo à cidade de Santos.
No porto de Vigo, na costa ocidental da Espanha, encontrou alguns conhecidos da região onde nascera, que também iriam seguir para o Brasil e Argentina. Deviam estar embarcando mais de cem espanhóis naquele porto, pois era grande o número daqueles que fugiam da fome e da guerra.
A maioria já tinha algum parente ou amigo no local de destino, que os ajudaria numa adaptação mais rápida na terra distante. Já iam com uma colocação garantida numa lavoura ou num emprego qualquer, por isso viajavam mais tranquilos. Outros, em menor número, partiam para a aventura sem dinheiro no bolso, só com a roupa do corpo, e sem nada que os aguardasse. Iriam tentar a sorte em países que prometiam um futuro melhor, bastando que tivessem vontade de trabalhar, coisa que, aliás, não lhes faltava.
No Estado de São Paulo, naquela segunda década do século XX, o maior número de imigrantes era de italianos. Nesse Estado localizou-se a grande colônia daquele país, tanto na capital, como nas cidades emergentes do interior. Depois, vieram os japoneses, principalmente nas lavouras de café do interior paulista. Em menor número, os espanhóis e, por fim, os portugueses.
No Rio de Janeiro, porto onde também paravam os navios com imigrantes, a maioria já era de portugueses, que se estabeleciam principalmente no comércio, em especial o de bares e restaurantes. Logo em seguida, os espanhóis, que também se dedicavam aos restaurantes. Os italianos por fim, em especial no ramo de distribuição de jornais e revistas.
O “Highland Chieftain”, depois de deixar Southampton, iria fazer escalas em Vigo e Leixões, onde embarcaria o grosso dos imigrantes espanhóis e portugueses, respectivamente. Depois, aportaria em Funchal (alguns portugueses mais), Lanzaroti (outros espanhóis), Dakar, Recife, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro, Santos, Paranaguá, e o destino final, Buenos Aires.
A escala em Dakar seria quase que técnica, apenas para reabastecimento e descarga de algumas mercadorias industrializadas, produtos das fábricas inglesas.
Em Recife e Salvador, desembarcariam poucos imigrantes dos dois países, a maioria com parentes radicados nas duas cidades do nordeste brasileiro. O grande número deles se destinava ao Rio e Santos, principalmente para esta última.
A viagem toda, do porto de partida (Southampton) até o de destino (Buenos Aires), demorava, em média, de 45 a 50
dias, dependendo das condições do mar e do tempo passado em cada porto com o embarque e desembarque das mercadorias e passageiros. Além do mais, com a guerra em pleno curso na Europa, a navegação em alto-mar tornava-se bem mais perigosa. Apesar de serem poucas as batalhas navais travadas na guerra de 1914, sempre havia o receio de um navio mercante ser posto a pique.
Embarcando em Vigo, Manolo acomodou-se na parte superior de um beliche no enorme dormitório destinado aos imigrantes. Na cama inferior ficou um seu conhecido da região onde nascera, de nome Raphael. Tinham quase a mesma idade (Manolo era meses mais velho, tinham nascido em 1895) e partiam cheios de sonhos e esperanças de encontrar um futuro melhor na nova terra. Não eram amigos íntimos, o conhecimento era superficial, mas, pelo menos já tinham com quem conversar durante a viagem. Manolo levava uma mala, enquanto Raphael conduzia apenas um saco de viagem.
Raphael ofereceu:
– Você quer guardar sua mala embaixo da minha cama? Fique à vontade.
– Obrigado – respondeu Manolo, enquanto retirava alguns objetos pessoais de uso mais imediato de sua mala (escova, pasta de dentes, sabonete e outras coisas). Colocou-os embaixo do travesseiro de crina de palha.
Depois que os dois se instalaram, deixando alguns pertences sobre as camas que lhes foram destinadas, saíram juntos em direção ao convés. Manolo cumprimentou um ou outro conhecido da Galícia, o mesmo fazendo Raphael em relação a alguém que reconhecia. Fora aqueles poucos que viajavam com mulher e filhos, a maioria dos homens que estava no alojamento era constituída de jovens espanhóis solteiros que fugiam daqueles tempos difíceis por que passava o Velho Mundo.
Manolo ofereceu um cigarro a Raphael, que o aceitou,
agradecendo.
– Você vai para onde, Raphael? Santos ou Rio? – perguntou.
– Rio – respondeu. – Vou trabalhar com um cunhado, que é garçom num restaurante lá. E você? – devolveu a pergunta.
– Eu vou para Santos. Dali vou para o interior de São Paulo trabalhar numa lavoura de café – respondeu Manolo.
– Você tem algum parente por lá?
– Tenho sim, um irmão. Mas, meu negócio não é lavoura, não. Vou trabalhar numa delas no início, mas depois vou tentar arranjar um trabalho naquilo que sei fazer melhor – retrucou Manolo.
– E o que é? – continuou indagando Raphael.
– Construção. Eu sou mestre de obras, mas aqui na Espanha não conseguia arranjar mais trabalho nessa área. Com essa falta de dinheiro, ninguém quer saber de construir nada, de levantar uma obra.
– É verdade – retrucou Raphael. – Eu fiz de tudo um pouco: fui carpinteiro, pedreiro, trabalhei duro na lavoura lá minha terra, mas atualmente só conseguia um biscate aqui, outro ali. Nada de emprego fixo, nada que me desse tranquilidade para o futuro. Ia ficar noivo, mas desisti. E, agora, vou trabalhar de ajudante de garçom, coisa que nunca fiz na vida.
– A gente aprende, Raphael, a gente aprende – disse Manolo. – A necessidade faz com que a gente aprenda tudo na vida.
– Eu queria ir é para Buenos Aires – comentou Raphael.
– Está todo mundo dizendo que lá a qualidade de vida é melhor, as cidades da Argentina são mais evoluídas. Mas eles só estão aceitando imigrantes que tenham algum parente por lá, com emprego já definido. Além disso, haveria para a gente a facilidade da língua que é a mesma nossa. Eu e você, infelizmente, só temos parentes no Brasil.
– Pois para mim qualquer coisa está bom – disse Manolo. – Desde que seja para ficar longe da miséria e da falta de emprego lá da minha terra. Tenho pena de ter deixado meus pais e meus irmãos naquela situação, mas para eles vai ser melhor, é menos uma boca para alimentar. E, se eu conseguir juntar algum dinheirinho lá no Brasil, chamo logo eles para morar comigo.
Os dois voltaram a conversar nos dias seguintes, relembrando fatos marcantes passados na terra natal que agora ficava para trás. Ao mesmo tempo, sonhavam com um futuro venturoso no Brasil, fazendo mil planos para quando chegassem à terra promissora da América do Sul.
À medida que o “Highland Chieftain” se afastava da costa europeia, a ansiedade pelo começo de uma nova vida aumentava para os dois espanhóis. Aliás, para toda a população de imigrantes a bordo do cargueiro inglês. E, para todos, a lembrança da terra de origem ficava cada dia mais distante.
Depois de um dia de viagem, a parada em Leixões, cidade portuguesa acima do Porto. Ali embarcaram perto de duzentos portugueses, sendo que havia mais famílias do que em relação aos espanhóis. Destinavam-se eles, em sua maioria, ao Rio de Janeiro, onde iriam trabalhar em bares, armazéns e pequenos estabelecimentos comerciais.
Foram embarcadas várias caixas de bacalhau e azeite, produtos típicos de Portugal, que seriam destinadas ao Brasil e Argentina. Os imigrantes portugueses eram mais alegres e comunicativos que os espanhóis, sempre falando alto, rindo muito e procurando sempre um motivo para diversão.
O comandante do navio procurou separá-los no refeitório, nos dois turnos pré-estabelecidos. Assim, ficariam mais perto das famílias aqueles que eram casados, prevalecendo a identidade de línguas naqueles momentos de convívio obrigatório. Mas, nos dormitórios, o masculino e o feminino, a confusão era total. Tanto pela diferença de línguas, como também de costumes, o que era bem marcante, apesar de serem originários de dois países vizinhos e de origem latina. Aliás, os espanhóis tinham, entre eles mesmos, várias distinções bem claras, dependendo da região de que eram originários. Havia catalães, andaluzes, galegos, bascos, valencianos, madrilenhos e outros, todos falando dialetos próprios, bem como com costumes e músicas regionais característicos. Além de uma mal disfarçada rivalidade entre eles. Tratavam-se com indiferença, quase com hostilidade, o mesmo acontecendo com o tratamento dispensado aos portugueses.
Formavam-se, assim, vários grupinhos isolados no convés, que só se reuniam nas horas de refeição e de dormir. Naquelas ocasiões, conversavam animadamente em seus dialetos, brincavam, riam, dançavam, divertiam-se. No refeitório e dormitório mudavam de comportamento, isolavam-se em seus beliches, fumavam ou liam alguma coisa, aqueles poucos que sabiam ler.
O banheiro era coletivo, o horário do banho disputado. Por isso, vários deles deixavam de tomá-lo diariamente, só o fazendo em dias alternados ou, até mesmo de dois em dois dias. Também era disputado o horário para escovar os dentes pela manhã, tanto nos apertados banheiros femininos como nos masculinos.
Por isso, apesar das línguas das duas categorias de imigrantes serem irmãs, de origem latina, devido aos vários dialetos utilizados, principalmente em relação aos espanhóis, em determinados momentos ouvia-se uma mistura incompreensível de sotaques, gírias e expressões populares. Acresça-se a isso o fato de que a tripulação era de língua inglesa, o que mais aumentava a confusão quando procuravam falar uns com os outros.
Além de Raphael, Manolo conversava mais frequentemente com Miguel e Antonio, dois outros galegos como ele. Não eram originários da mesma cidade da Galícia, mas habitavam localidades próximas umas das outras, todas elas não passando de pequenos vilarejos daquela região espanhola. Miguel, como Manolo, iria desembarcar em Santos e também iria trabalhar na lavoura de café, numa fazenda perto de Sorocaba. Antonio viajaria até Buenos Aires, já com uma colocação garantida numa fábrica de couro da capital argentina.
Manolo vestia todos os dias praticamente a mesma roupa. Calça e paletó de cor cinza, trocando apenas a camisa e a cueca de três em três dias. Em sua mala, não levava muita coisa mais. Umas quatro camisas, o mesmo número de cuecas, duas ceroulas que usava para dormir, uns três pares de meia. Sapato, apenas um par. Duas toalhas de banho, três lenços, pasta de dente, escova, pente e sabonete. Uma garrafa de vinho tinto para presentear o irmão Pepe. Uns quatro pacotes de cigarros baratos, seu único vício. Nada mais
Aliás, quase todos os imigrantes levavam pouca coisa, pois não tinham muito para carregar com eles. Apenas o essencial para sobreviverem.
Em Leixões, o cargueiro ancorou ao largo, já que o pequeno porto não oferecia condições de atracação direta. Os quatro espanhóis decidiram ir a terra, para espairecer um pouco, conhecer a cidade portuguesa e comprar algumas coisas. Manolo renovou seu estoque de cigarros, os outros adquiriram pequenas lembranças para os parentes dos portos de destino.
– Eu nunca saí da minha cidade, para mim tudo é novidade, principalmente conhecer outros lugares.  – comentou Antonio.
– Eu também conheço muito pouco fora de onde nasci, apenas uma cidade ou outra perto da minha.  – concordou Raphael.
Passearam pelas ruas estreitas da cidade portuguesa, tomaram um trago aqui, outro ali, tentando acostumar-se com o sotaque da língua.
– Nem adianta ouvir muito o que eles falam – disse Manolo. – Meu irmão escreveu dizendo que o português que eles falam lá no Brasil é bem diferente do falado aqui em Portugal.
– É, também ouvi dizer isso. – concordou Miguel. – Só Antonio é que não vai ter problema com língua. – brincou.
– Mas, também já ouvi dizer que o espanhol falado em Buenos Aires é bem diferente daquele daqui da Espanha. Aliás, aqui, também se fala catalão, galego, valenciano, basco, etc...
Antonio ainda sugeriu que almoçassem num restaurante qualquer da cidade, mas os outros acabaram não concordando.
– É melhor comer no navio, lá a comida já está paga no preço da passagem. Assim a gente economiza um pouco mais.
– disse Raphael.
Todos acabaram concordando. Deram mais umas voltas pela cidade, flertaram com as jovens portuguesas, tomaram mais uns tragos aqui e ali, e, às seis da tarde, pegaram o bote de volta para o navio.

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