quarta-feira, dezembro 14, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 48


OS DESBRAVADORES

Capítulo 48

Calfilho




XLVIII



Deixaram Dakar com um magnífico sol deitando-se no poente. Agora iria começar a parte mais monótona e entediante da viagem: a travessia do Atlântico, da África para a América do Sul.
Seriam nove dias de oceano. A vista seria somente a do mar. Imenso, a perder de vista. Somente o barulho das ondas batendo no casco do navio, e a paisagem ora verde, ora azul escuro, de vez em quando algumas ondas brancas espumando em volta.
Se já no período anterior da viagem, quando faziam escalas de três em três, quatro em quatro dias aproximadamente, vários passageiros passaram mal e vomitaram por todo o navio, agora então, deveria ser pior.
O cheiro azedo de vômito logo se fez sentir em todos os lugares: nos dormitórios, refeitório, convés. Não era raro as pessoas enfiarem os pés em alguma poça de vômito espalhada pelo chão. O comandante, um inglês muito calmo e apreciador do inigualável líquido escocês, Mr. Smith, não se afobou: mandou distribuir comprimidos contra o enjoo, mantendo a enfermaria sempre lotada, face à procura frequente do medicamento.
A tripulação tentou fazer algumas brincadeiras para diversão dos passageiros, como a Festa de Netuno quando da travessia do equador e outras mais para as crianças. Mas, não adiantou muito: a sessão de vômitos continuava sem parar, dia, noite e madrugada adentro.
Manolo, que se gabava de ter um estômago de ferro, foi um dos poucos que não jogou cargas ao mar. Seus companheiros de viagem, todos eles, de vez em quando, estavam debruçados na murada do convés, a cabeça para fora do navio, vomitando no oceano. Até Dakar, somente Miguel não se sentira bem. Os outros tinham um mal-estar passageiro, mas não chegaram a vomitar.   Entretanto, quando a grande travessia do Atlântico começou, não conseguiram suportar. Colocavam para fora ora o café da manhã, ora o almoço, ora o jantar. A comida, que já era de qualidade duvidosa, acrescida ao enjoo do mar, completavam a combinação perfeita.
Os dias se sucederam monótonos, passando lentamente, parecendo que não acabavam. Nem o carteado, nem as diversões de bordo faziam com que transcorressem mais depressa. No quinto dia de navegação, já havia vários imigrantes desidratados, recolhidos quase que permanentemente à minúscula enfermaria do “Highland Chieftain”. No corredor do lado de fora da sala de atendimento médico, muitos passageiros, deitados no chão, aguardavam a vez de serem socorridos.
Mr. Smith, já tendo feito outras viagens como aquela, não se abalava. Continuava tranquilamente a beber seu uísque e a fumar seu cachimbo revestido de prata. A toda hora era procurado pelo imediato, que, nervoso, relatava os problemas de vômito dos imigrantes. Limitou-se a dizer:
– Dê-lhes o remédio contra enjoo, dê-lhes o remédio...
– Mas, comandante, tem gente que está totalmente desidratada, brancos que nem cera...
– O que o médico disse?
– Que é preciso dar-lhes soro. Mas, não temos mais a bordo, acabou – retrucou o imediato.
– Então, não deixe eles comerem. Assim, não vão ter nada para colocar para fora – decidiu, pondo fim à conversa.
O outro grave problema que se seguiu à interminável sessão de vômitos foi a diarreia que passou a afligir a maioria dos passageiros. O odor inconfundível de comida azeda que até então empestava as dependências do “Highland Chieftain” foi substituído, ou melhor, misturou-se ao cheiro de merda liquefeita que exalava dos poucos banheiros existentes e até dos corredores e dormitório.
Os passageiros, mal alimentados, desidratados e ainda vomitando sem parar, começaram a ter problemas intestinais, que culminaram com a diarreia coletiva. As filas nas portas dos banheiros eram intermináveis, crianças choravam pelos cantos, mães não paravam de trocar fraldas de bebês, que berravam sem parar.
Manolo, um dos poucos a não ser afetado pelas crises de vômito ou de diarreia, fumava calmamente no convés, encostado à amurada do navio. Ali ficava o dia inteiro após as refeições, fugindo do impregnado ambiente do dormitório, onde costumava repousar anteriormente.
Ao seu lado estava Raphael, que sofrera um pouco com o enjoo, mas que, agora, passados quatro dias desde que deixaram Dakar, estava mais acostumado com o balanço do navio. Realmente, a travessia do oceano fazia com que o cargueiro jogasse bastante, tentando vencer com grande esforço as imensas ondas que se formavam à sua frente. Havia momentos em que parecia afundar por completo sob um vagalhão de água salgada, para, logo depois, reaparecer na outra ponta, continuando, assim, sua infatigável tarefa de vencer o oceano.
– E aí, Raphael, está melhor? – perguntou Manolo, não conseguindo esconder um pequeno sorriso de deboche, ao ver a aparência pálida, mais para verde, do rosto do companheiro de viagem.
– Melhorei bastante. Também, acho que já vomitei por toda a minha vida – respondeu Raphael, fazendo um gesto com a mão em frente ao nariz, como se tentasse afastar o cheiro enjoativo do cigarro do companheiro.
– Pois eu não senti quase nada. Acho que tenho o estômago de avestruz.
– Eu também nunca fui de enjoar.  – retrucou Raphael. – Mas, o navio está balançando demais.
– E ainda faltam cinco dias para chegarmos ao Recife – comentou Manolo, um pouco desanimado. – Será que esse pessoal vai aguentar até lá? Nunca vi gente de estômago tão fraco.
– Não estão acostumados, Manolo, é isso. A maioria dessa gente nunca soube o que era o mar até embarcar no navio.
– O comandante deveria estar mais preparado, já deveria saber que isso iria acontecer – disse Manolo.
– Ouvi dizer que é a primeira viagem transatlântica dele – rebateu Raphael, desinformado. – Mas, mesmo assim, você tem razão, ele deveria ter-se preparado antes, informar-se melhor, trazer medicamentos e um médico de verdade.
– O problema é a ganância, Raphael. Isso aqui é um cargueiro, eles transportam passageiros como se fosse carga, visando apenas o lucro, ganhar mais dinheiro. Ainda mais com essa fuga em massa de europeus para a América, por causa da guerra. Já ouvi dizer que também na Itália tem muita gente fugindo para o Brasil e Argentina.
– E os passageiros são todos pessoas humildes, a maioria analfabeta, ninguém reclama, eles fazem o que querem... – comentou Raphael.
– É verdade. Sinal dos tempos de hoje, quando todo mundo quer se aproveitar da situação da guerra. Essas pessoas não estão preparadas para isso, Raphael... – concluiu Manolo.

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