OS DESBRAVADORES
Capítulo 48
Calfilho
XLVIII
Deixaram Dakar com um magnífico sol
deitando-se no poente. Agora iria começar a parte mais monótona e entediante da
viagem: a travessia do Atlântico, da África para a América do Sul.
Seriam nove dias de oceano. A vista
seria somente a do mar. Imenso, a perder de vista. Somente o barulho das ondas
batendo no casco do navio, e a paisagem ora verde, ora azul escuro, de vez em
quando algumas ondas brancas espumando em volta.
Se já no período anterior da viagem,
quando faziam escalas de três em três, quatro em quatro dias aproximadamente,
vários passageiros passaram mal e vomitaram por todo o navio, agora então,
deveria ser pior.
O cheiro azedo de vômito logo se fez
sentir em todos os lugares: nos dormitórios, refeitório, convés. Não era raro
as pessoas enfiarem os pés em alguma poça de vômito espalhada pelo chão. O
comandante, um inglês muito calmo e apreciador do inigualável líquido escocês,
Mr. Smith, não se afobou: mandou distribuir comprimidos contra o enjoo,
mantendo a enfermaria sempre lotada, face à procura frequente do medicamento.
A tripulação tentou fazer algumas
brincadeiras para diversão dos passageiros, como a Festa de Netuno quando da
travessia do equador e outras mais para as crianças. Mas, não adiantou muito: a
sessão de vômitos continuava sem parar, dia, noite e madrugada adentro.
Manolo, que se gabava de ter um
estômago de ferro, foi um dos poucos que não jogou cargas ao mar. Seus
companheiros de viagem, todos eles, de vez em quando, estavam debruçados na
murada do convés, a cabeça para fora do navio, vomitando no oceano. Até Dakar,
somente Miguel não se sentira bem. Os outros tinham um mal-estar passageiro,
mas não chegaram a vomitar. Entretanto,
quando a grande travessia do Atlântico começou, não conseguiram suportar.
Colocavam para fora ora o café da manhã, ora o almoço, ora o jantar. A comida,
que já era de qualidade duvidosa, acrescida ao enjoo do mar, completavam a combinação
perfeita.
Os dias se sucederam monótonos,
passando lentamente, parecendo que não acabavam. Nem o carteado, nem as
diversões de bordo faziam com que transcorressem mais depressa. No quinto dia
de navegação, já havia vários imigrantes desidratados, recolhidos quase que
permanentemente à minúscula enfermaria do “Highland Chieftain”. No corredor do
lado de fora da sala de atendimento médico, muitos passageiros, deitados no
chão, aguardavam a vez de serem socorridos.
Mr. Smith, já tendo feito outras viagens
como aquela, não se abalava. Continuava tranquilamente a beber seu uísque e a
fumar seu cachimbo revestido de prata. A toda hora era procurado pelo imediato,
que, nervoso, relatava os problemas de vômito dos imigrantes. Limitou-se a
dizer:
– Dê-lhes o remédio contra enjoo,
dê-lhes o remédio...
– Mas, comandante, tem gente que está
totalmente desidratada, brancos que nem cera...
– O que o médico disse?
– Que é preciso dar-lhes soro. Mas,
não temos mais a bordo, acabou – retrucou o imediato.
– Então, não deixe eles comerem.
Assim, não vão ter nada para colocar para fora – decidiu, pondo fim à conversa.
O outro grave problema que se seguiu
à interminável sessão de vômitos foi a diarreia que passou a afligir a maioria
dos passageiros. O odor inconfundível de comida azeda que até então empestava
as dependências do “Highland Chieftain” foi substituído, ou melhor, misturou-se
ao cheiro de merda liquefeita que exalava dos poucos banheiros existentes e até
dos corredores e dormitório.
Os passageiros, mal alimentados,
desidratados e ainda vomitando sem parar, começaram a ter problemas intestinais,
que culminaram com a diarreia coletiva. As filas nas portas dos banheiros eram
intermináveis, crianças choravam pelos cantos, mães não paravam de trocar
fraldas de bebês, que berravam sem parar.
Manolo, um dos poucos a não ser
afetado pelas crises de vômito ou de diarreia, fumava calmamente no convés,
encostado à amurada do navio. Ali ficava o dia inteiro após as refeições,
fugindo do impregnado ambiente do dormitório, onde costumava repousar
anteriormente.
Ao seu lado estava Raphael, que
sofrera um pouco com o enjoo, mas que, agora, passados quatro dias desde que
deixaram Dakar, estava mais acostumado com o balanço do navio. Realmente, a
travessia do oceano fazia com que o cargueiro jogasse bastante, tentando vencer
com grande esforço as imensas ondas que se formavam à sua frente. Havia
momentos em que parecia afundar por completo sob um vagalhão de água salgada,
para, logo depois, reaparecer na outra ponta, continuando, assim, sua
infatigável tarefa de vencer o oceano.
– E aí, Raphael, está melhor? –
perguntou Manolo, não conseguindo esconder um pequeno sorriso de deboche, ao
ver a aparência pálida, mais para verde, do rosto do companheiro de viagem.
– Melhorei bastante. Também, acho que
já vomitei por toda a minha vida – respondeu Raphael, fazendo um gesto com a
mão em frente ao nariz, como se tentasse afastar o cheiro enjoativo do cigarro
do companheiro.
– Pois eu não senti quase nada. Acho
que tenho o estômago de avestruz.
– Eu também nunca fui de enjoar. – retrucou Raphael. – Mas, o navio está
balançando demais.
– E ainda faltam cinco dias para
chegarmos ao Recife – comentou Manolo, um pouco desanimado. – Será que esse
pessoal vai aguentar até lá? Nunca vi gente de estômago tão fraco.
– Não estão acostumados, Manolo, é
isso. A maioria dessa gente nunca soube o que era o mar até embarcar no navio.
– O comandante deveria estar mais
preparado, já deveria saber que isso iria acontecer – disse Manolo.
– Ouvi dizer que é a primeira viagem
transatlântica dele – rebateu Raphael, desinformado. – Mas, mesmo assim, você
tem razão, ele deveria ter-se preparado antes, informar-se melhor, trazer
medicamentos e um médico de verdade.
– O problema é a ganância, Raphael.
Isso aqui é um cargueiro, eles transportam passageiros como se fosse carga,
visando apenas o lucro, ganhar mais dinheiro. Ainda mais com essa fuga em massa
de europeus para a América, por causa da guerra. Já ouvi dizer que também na
Itália tem muita gente fugindo para o Brasil e Argentina.
– E os passageiros são todos pessoas
humildes, a maioria analfabeta, ninguém reclama, eles fazem o que querem... –
comentou Raphael.
– É verdade. Sinal dos tempos de
hoje, quando todo mundo quer se aproveitar da situação da guerra. Essas pessoas
não estão preparadas para isso, Raphael... – concluiu Manolo.
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