quarta-feira, dezembro 14, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 49


OS DESBRAVADORES

Capítulo 49

Calfilho




XLIX



A verdade é que uma criança acabou não resistindo e morreu na enfermaria, colocando os bofes para fora. O médico, que nem formado era, apenas um simples prático estagiário de hospitais de Londres, relatou o óbito a Mr. Smith:
– Morreu uma, comandante. Estava muito fraca e eu não tinha mais soro para dar.
Mr. Smith apenas lamentou, tirando uma baforada de seu cachimbo:
– Chato, não é? Bem, vamos providenciar o funeral.
Formou-se uma confusão. O comandante, como inglês que era, queria fazer a cerimônia protestante. A família da vítima, portuguesa, era católica e exigiu o ritual da sua religião.
O corpo, enrolado em grossa mortalha, aguardava no convés. O choro convulsivo, quase histérico dos parentes, dominava o ambiente. A mãe segurava fortemente o corpo enrolado da filha de três anos, dele não querendo separar-se...
O comandante, impaciente por não entender a língua dos imigrantes, queria jogar logo o corpo ao mar e dar por encerrado o funeral. Por sua vez, eles insistiam que queriam um padre e que fosse obedecido o ritual católico.
Mr. Smith, já nervoso, disse que iria ler um trecho da Bíblia e, quem quisesse, poderia cantar um hino religioso. Já os imigrantes insistiam na presença de um padre e que o corpo fosse encomendado segundo os cânones da Santa Igreja Católica. Criado o impasse, o imediato que falava um pouco de espanhol, tentava explicar ao comandante e aos imigrantes o que cada um estava dizendo.
– Não temos padre no navio – dizia o imediato aos espanhóis e portugueses. – Na Inglaterra, a religião é a protestante. Mesmo assim, não trouxemos nenhum pastor, pois seria mais uma despesa.
– Eu quero um padre – insistia a mãe da menina, quase aos berros.
O comandante e o imediato confabularam. Não encontravam saída. Por sorte, alguém da tripulação lembrou que um dos imigrantes portugueses dissera que fora coroinha numa igreja do interior de Portugal.
– Mande buscar esse homem – gritou o comandante.
Depois de uma busca no dormitório, onde alguns imigrantes ainda dormiam, foi encontrado o tal coroinha. Engraxava ele calmamente os seus sapatos, sentado em seu beliche.
– Você já trabalhou numa igreja? – perguntou o imediato em tom agressivo, em seu precário castelhano.
– Como? – respondeu o português, com medo de ter feito algo errado. – Não entendi, senhor.
O imediato procurou acalmar-se. Repetiu a pergunta, agora falando mais lentamente, num tom de voz mais amistoso.
O rapazinho português, que não devia ter dezoito anos, continuou olhando para o imediato com ar apalermado, segurando um dos pés do sapato com a mão esquerda e a escova com a direita.
– Como, senhor? Não entendo o que o senhor quer dizer.
Manolo, que acompanhava toda a cena desde o convés, tendo seguido o imediato até o dormitório, interferiu:
– Permita-me, oficial, talvez eu possa ajudá-lo.
O inglês olhou para trás, encarando Manolo. Perguntou, agressivamente:
– O senhor fala a língua dele?
– Sim, um pouco. Sou espanhol, mas entendo um pouco de português.
O imediato mudou sua atitude. Já agora mais amável, pediu a Manolo:
– Por favor, repita a ele o que eu perguntei.
Manolo repetiu a pergunta do imediato. O rapaz, que se chamava João Maria respondeu:
– Sim, eu fui coroinha por algum tempo. Mas, isso faz tempo, eu devia ter uns dez anos.
Manolo traduziu para o imediato, em espanhol.
– Pergunte a ele se já encomendou um corpo.  – pediu o imediato.
Manolo fez a pergunta. João Maria respondeu:
– Não senhor, eu só ajudava em algumas missas. Mas, nunca assisti a um enterro, não senhor.
Manolo fez a tradução. O imediato pensou por um instante e, também já sem paciência, disse:
– Serve assim mesmo. Pelo menos ele é o único que já teve experiência com a igreja católica. Chamou um marinheiro, ordenou-lhe que fizesse um buraco no meio de um lençol, colocando-o por sobre as costas de João Maria, enfiando-lhe a cabeça no buraco.
Perguntou a Manolo:
– O senhor acha que ele já está parecido com um padre?
Manolo não conseguiu conter o riso.
– É, acho que vai dar para enganar.
O imediato pediu a Manolo que instruísse o rapaz a dizer algumas palavras em latim e que tentasse convencer os parentes dos mortos de que estava encomendando o corpo.
João Maria, ciente das obrigações que lhe foram atribuídas, assumiu ares de importância. Disse, com um sorriso irônico nos lábios:
– Pode deixar comigo. Digo umas besteiras no meu latim e eles nem vão perceber.
– Então, vamos subir – ordenou, impaciente, o imediato.
Chegando perto do almirante, que já estava a ponto de explodir, disse:
– Pronto, comandante, acho que está tudo resolvido.
Mr. Smith, meio frustrado por não presidir a cerimônia, fechou a Bíblia que tinha nas mãos. Disse, um pouco contrariado:
– Então, vamos acabar logo com isso.
O imediato mandou que João Maria começasse. O rapaz, com aquela batina improvisada, pediu a Bíblia emprestada ao comandante, abriu-a numa página qualquer. Recitou algumas palavras num latim aportuguesado, leu uns trechos do Livro Sagrado, fez o sinal da cruz, puxou a reza do Padre Nosso e da Ave Maria. O corpo, enrolado na mortalha, foi lançado ao mar.
Daquele dia em diante, João Maria passou realmente a ser considerado um padre pelos imigrantes. Vários deles vinham pedir-lhe para que os ouvisse em confissão, foi procurado para dar conselhos, até missa acabou oficiando a pedido dos passageiros.
Também, não fez por menos. Exigiu do imediato comer a mesma comida dos oficiais, tomar banho no chuveiro que os mesmos utilizavam, enfim, ter várias regalias na viagem.
Portuguesinho sabido estava ali. Deram-lhe a oportunidade, segurou-a com unhas e dentes...

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