OS DESBRAVADORES
Capítulo 50
Calfilho
L
Os dias seguintes foram a prova maior
do suplício marítimo a que estavam sendo submetidos os passageiros. Enquanto
Mr. Smith permanecia trancado em seu camarote, sorvendo goles generosos do
líquido escocês e recusando-se a enfrentar a situação, o imediato e o restante
da tripulação se viravam para atender os passageiros debilitados pelo vômito e
diarréia.
Improvisaram um dormitório no convés
para que respirassem ar puro, pelo menos um pouco longe do cheiro azedo da
comida recusada pelo estômago maltratado dos pobres portugueses e espanhóis.
As cenas de mães carregando os filhos
vomitando nos ombros e de mulheres e homens desesperados nas portas dos poucos
banheiros trancados repetiam-se a todo instante. O cheiro era insuportável. Só
no convés, com o nariz voltado para o mar, era possível respirar um pouco de ar
puro.
Imigrantes impacientes batiam
furiosamente nas portas dos banheiros, ameaçando de espancamento quem estava no
interior dos mesmos. Mães histéricas vagavam como zumbis pelo convés,
carregando os filhos fedendo a vômito e cocô mole.
Cada dia era um tormento, parecia que
não acabava. O sol forte, inclemente, queimava sem pena a pele branca dos
europeus que fugiam para o convés em busca de um ar menos poluído. As noites,
intermináveis, a lua teimando em permanecer no céu, o sol custando a aparecer.
Enfim, depois de mais quatro dias e noites de sofrimentos e
lamentações após a morte da criança portuguesa, chegaram ao Recife. Nem
repararam quando o velho navio passou por Fernando de Noronha, um arquipélago
de uma beleza extraordinária. Estavam mais preocupados com seus estômagos e
intestinos desarranjados. O refeitório ficara praticamente vazio naqueles dias
de travessia do Atlântico. Por isso, quando o “Highland Chieftain” aproximou-se
do porto pernambucano, o cenário a bordo era de desolação e reclamações entre
os passageiros.
Como em quase todos os portos em que
iria tocar, o navio não conseguiu atracar, ficando ancorado ao largo. Ainda
mais ali, onde os arrecifes de coral eram uma séria ameaça aos navios que se
aproximavam da cidade.
Rendendo-se às ponderações do
imediato e outros membros de sua tripulação, Mr. Smith concordou em mandar
buscar um médico na cidade para que examinasse os passageiros. Quando este
subiu a bordo, um velhinho simpático, abdome avantajado, ar bonachão, trajando
um terno branco e chapéu panamá, foi recebido pelo comandante da embarcação:
– Good morning – cumprimentou-o Mr.
Smith, apertando-lhe a mão direita.
– Bom dia – respondeu o médico,
retribuindo o aperto de mão do inglês. – Meu nome é doutor Amâncio. Desculpe,
mas não sei falar inglês – completou, ajeitando os óculos de grossas lentes
sobre o nariz.
O imediato interveio, em seu espanhol
enrolado:
– Doutor, tivemos problemas a bordo
durante a travessia do oceano. Vários passageiros vomitaram muito, tivemos
casos de diarreia. Chegamos a ter um óbito.
O médico olhou-o com espanto. Coçou o
bigode branco, denotando preocupação. Perguntou:
– Mas, vocês não tinham soro para
lhes dar? É o mínimo que se exige para uma travessia transatlântica.
– Tínhamos sim, doutor. Mas, acabou
logo, parece que todos os passageiros passaram mal ao mesmo tempo – respondeu o
imediato.
– Quantos imigrantes vocês estão
transportando? – indagou o médico.
O imediato hesitou um pouco, olhando
interrogativamente para Mr. Smith. Este, que não entendera nada do diálogo
entre os dois, nada respondeu, limitando–se a retribuir o olhar do imediato.
O médico logo compreendeu.
– Estão com excesso de lotação, não
é? Quantos passageiros? – repetiu a pergunta.
– Trezentos e oitenta e cinco. – respondeu finalmente o imediato, olhando
com receio para Mr. Smith.
Este continuara não entendendo nada
do que conversavam o médico e o imediato. O Dr. Amâncio comentou, em tom de
crítica:
– É por isso que o soro não deu para
atender todo mundo... essa mania que vocês têm de só pensar em ganhar dinheiro,
transportando gente como se fosse gado...
Olhou severamente para Mr. Smith.
Depois, voltando-se novamente para o imediato:
– Bem, agora não adianta lamentar.
Faça o seguinte: encaminhe para a enfermaria os casos mais urgentes, aqueles
que parecem precisar de atendimento imediato. Vou fazer-lhes um primeiro exame
e ver o que posso fazer. Ainda bem que eu trouxe bastante soro de terra. Já
previa que seria isso o que iria encontrar por aqui. Primeiro as crianças,
ouviu bem? – falou, quase aos berros.
Manolo
e Raphael, que presenciaram o diálogo a uns dois metros de distância,
ofereceram-se ao médico para auxiliá-lo.
Este agradeceu, dizendo:
– Quero sim a ajuda de vocês. Venham
comigo.
Na enfermaria, lotada de pacientes, o
acadêmico de medicina inglês já havia entregado os pontos. Quando viu o médico
chegar, disse aliviado, em sua língua:
– Thanks God!
Dr. Amâncio fingiu não vê-lo. Tirou o
paletó e a gravata borboleta, arregaçou as mangas da camisa. Manolo
explicou-lhe:
– Este aqui é o médico do navio –
disse apontando para o acadêmico. – Mas, acho que não é médico de verdade –
resmungou.
Só então o Dr. Amâncio olhou para o
inglês, que permanecia paralisado, com uma expressão apalermada no rosto.
Tentou perguntar-lhe quais as providências que havia tomado, qual a medicação
que havia dado aos pacientes, etc...
O inglês não
entendeu suas perguntas. Dr. Amâncio desistiu. Pegou a primeira criança que
estava chorando sem parar no colo da mãe. Colocou-a sobre uma mesa pequena, que
servia de local de exames. Mandou que a mãe lhe tirasse a roupa do corpo,
apertou a região do abdome, examinou-lhe a garganta e os ouvidos. Disse para
Manolo:
– Por favor,
veja se consegue ferver alguma água.
Manolo saiu rapidamente, providenciando o que lhe fora pedido. O médico
fazia um exame superficial nas crianças enfileiradas na enfermaria, dava-lhes
algum remédio. Para a maioria, pastilhas para reidratá-los, em outros aplicava
uma injeção, enfim, procurava minorar-lhes o sofrimento.
Depois de quase
quatro horas de trabalho árduo, conseguiu ter uma posição aproximada dos
problemas dos passageiros. A maior parte estava desidratada, alguns poucos uma
infecção de garganta, uma gripe, coisas de fácil tratamento.
Pediu a Manolo:
– Por favor,
avise àquele comandante imbecil que vou precisar de mais remédios,
principalmente soro hidratante. Também muitas frutas, em especial laranjas e bananas.
Diga para ele mandar imediatamente um barco a terra para providenciar o que
estou pedindo. Se ele relutar, diga para obedecer agora mesmo, do contrário vou
comunicar o que ocorreu às autoridades portuárias.
Manolo
transmitiu em espanhol o recado ao imediato, aumentando um pouco a gravidade da
situação.
– Olha, ele
disse que vai pedir a quarentena do navio, que não vai poder sair tão cedo do
porto.
O imediato,
apavorado, levou a mensagem a Mr. Smith. Este, contrariado, deu um soco na mesa
e virou mais um gole do líquido escocês. Ruminou uma praga em inglês, mas
mandou que o pedido do médico fosse atendido sem demora.
Lá pelas onze da
noite a situação estava praticamente sob controle. Dr. Amâncio, suando
bastante, a camisa molhada, ajeitou as mangas, colocou com cuidado a gravata
borboleta no colarinho, deu uma esticada nos suspensórios, vestiu o paletó e
enfiou o chapéu panamá na cabeça grisalha. Pegou sua maleta e, acompanhado de
Manolo, Raphael e do aprendiz de médico inglês, dirigiu-se ao convés.
Lá o esperavam
Mr. Smith e o imediato. O médico dirigiu-se ao comandante, voz firme e severa,
fisionomia fechada:
– Olhe bem, Mister ou o diabo que seja: que isso nunca mais se repita. Se
não casso a tua licença para vocês deixarem de andar por aí viajando de forma
tão irresponsável. Sem um médico formado a bordo, sem soro suficiente para uma
viagem através do Atlântico...
O imediato traduziu com cuidado as
palavras do Dr. Amâncio. Mr. Smith entendeu o recado e ficou vermelho como um
tomate maduro. Engoliu em seco. Mandou o imediato perguntar se poderiam zarpar.
– Hoje não.
Vamos ver como os casos mais graves reagem até amanhã. Mas, acho que vai dar
tudo certo. – respondeu o médico.
Elogiou e agradeceu a colaboração de Manolo e Raphael. Já dentro do bote
que o levaria a terra, despediu-se, mandando que o acadêmico inglês ficasse de
olho nos doentes que ficaram internados na enfermaria.
Intimamente, sabia que não adiantava nada comunicar o fato às autoridades
brasileiras. Estas sempre fechavam os olhos para aquelas irregularidades, para
o transporte desumano de imigrantes como escravos. Parecia a cópia fiel da
vinda dos negros africanos um século antes para o Brasil, para trabalharem nas
lavouras do país emergente... E, era irônico recordar que os ingleses, naquela
época, arvoraram-se em defensores dos escravos, atacando e pondo a pique navios
negreiros que vinham para o Brasil...
Para as atuais
autoridades portuárias brasileiras importava somente que mais e mais navios
ancorassem nos nossos portos, trazendo dinheiro e movimento às cidades tocadas
pelos barcos estrangeiros. Além, é claro, das propinas que recebiam e do lucro
com o contrabando de várias mercadorias que vinham de além-mar...
Mas, pelo menos,
sentia-se satisfeito com o esporro que dera naqueles filhos da puta...
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