quinta-feira, dezembro 15, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 50


OS DESBRAVADORES

Capítulo 50

Calfilho




L



Os dias seguintes foram a prova maior do suplício marítimo a que estavam sendo submetidos os passageiros. Enquanto Mr. Smith permanecia trancado em seu camarote, sorvendo goles generosos do líquido escocês e recusando-se a enfrentar a situação, o imediato e o restante da tripulação se viravam para atender os passageiros debilitados pelo vômito e diarréia.
Improvisaram um dormitório no convés para que respirassem ar puro, pelo menos um pouco longe do cheiro azedo da comida recusada pelo estômago maltratado dos pobres portugueses e espanhóis.
As cenas de mães carregando os filhos vomitando nos ombros e de mulheres e homens desesperados nas portas dos poucos banheiros trancados repetiam-se a todo instante. O cheiro era insuportável. Só no convés, com o nariz voltado para o mar, era possível respirar um pouco de ar puro.
Imigrantes impacientes batiam furiosamente nas portas dos banheiros, ameaçando de espancamento quem estava no interior dos mesmos. Mães histéricas vagavam como zumbis pelo convés, carregando os filhos fedendo a vômito e cocô mole.
Cada dia era um tormento, parecia que não acabava. O sol forte, inclemente, queimava sem pena a pele branca dos europeus que fugiam para o convés em busca de um ar menos poluído. As noites, intermináveis, a lua teimando em permanecer no céu, o sol custando a aparecer.
Enfim, depois de mais quatro dias e noites de sofrimentos e lamentações após a morte da criança portuguesa, chegaram ao Recife. Nem repararam quando o velho navio passou por Fernando de Noronha, um arquipélago de uma beleza extraordinária. Estavam mais preocupados com seus estômagos e intestinos desarranjados. O refeitório ficara praticamente vazio naqueles dias de travessia do Atlântico. Por isso, quando o “Highland Chieftain” aproximou-se do porto pernambucano, o cenário a bordo era de desolação e reclamações entre os passageiros.
Como em quase todos os portos em que iria tocar, o navio não conseguiu atracar, ficando ancorado ao largo. Ainda mais ali, onde os arrecifes de coral eram uma séria ameaça aos navios que se aproximavam da cidade.
Rendendo-se às ponderações do imediato e outros membros de sua tripulação, Mr. Smith concordou em mandar buscar um médico na cidade para que examinasse os passageiros. Quando este subiu a bordo, um velhinho simpático, abdome avantajado, ar bonachão, trajando um terno branco e chapéu panamá, foi recebido pelo comandante da embarcação:
– Good morning – cumprimentou-o Mr. Smith, apertando-lhe a mão direita.
– Bom dia – respondeu o médico, retribuindo o aperto de mão do inglês. – Meu nome é doutor Amâncio. Desculpe, mas não sei falar inglês – completou, ajeitando os óculos de grossas lentes sobre o nariz.
O imediato interveio, em seu espanhol enrolado:
– Doutor, tivemos problemas a bordo durante a travessia do oceano. Vários passageiros vomitaram muito, tivemos casos de diarreia. Chegamos a ter um óbito.
O médico olhou-o com espanto. Coçou o bigode branco, denotando preocupação. Perguntou:
– Mas, vocês não tinham soro para lhes dar? É o mínimo que se exige para uma travessia transatlântica.
– Tínhamos sim, doutor. Mas, acabou logo, parece que todos os passageiros passaram mal ao mesmo tempo – respondeu o imediato.
– Quantos imigrantes vocês estão transportando? – indagou o médico.
O imediato hesitou um pouco, olhando interrogativamente para Mr. Smith. Este, que não entendera nada do diálogo entre os dois, nada respondeu, limitando–se a retribuir o olhar do imediato.
O médico logo compreendeu.
– Estão com excesso de lotação, não é? Quantos passageiros? – repetiu a pergunta.
– Trezentos e oitenta e cinco.  – respondeu finalmente o imediato, olhando com receio para Mr. Smith.
Este continuara não entendendo nada do que conversavam o médico e o imediato. O Dr. Amâncio comentou, em tom de crítica:
– É por isso que o soro não deu para atender todo mundo... essa mania que vocês têm de só pensar em ganhar dinheiro, transportando gente como se fosse gado...
Olhou severamente para Mr. Smith. Depois, voltando-se novamente para o imediato:
– Bem, agora não adianta lamentar. Faça o seguinte: encaminhe para a enfermaria os casos mais urgentes, aqueles que parecem precisar de atendimento imediato. Vou fazer-lhes um primeiro exame e ver o que posso fazer. Ainda bem que eu trouxe bastante soro de terra. Já previa que seria isso o que iria encontrar por aqui. Primeiro as crianças, ouviu bem? – falou, quase aos berros.
Manolo e Raphael, que presenciaram o diálogo a uns dois metros de distância, ofereceram-se ao médico para auxiliá-lo.
Este agradeceu, dizendo:
– Quero sim a ajuda de vocês. Venham comigo.
Na enfermaria, lotada de pacientes, o acadêmico de medicina inglês já havia entregado os pontos. Quando viu o médico chegar, disse aliviado, em sua língua:
– Thanks God!
Dr. Amâncio fingiu não vê-lo. Tirou o paletó e a gravata borboleta, arregaçou as mangas da camisa. Manolo explicou-lhe:
– Este aqui é o médico do navio – disse apontando para o acadêmico. – Mas, acho que não é médico de verdade – resmungou.
Só então o Dr. Amâncio olhou para o inglês, que permanecia paralisado, com uma expressão apalermada no rosto. Tentou perguntar-lhe quais as providências que havia tomado, qual a medicação que havia dado aos pacientes, etc...
O inglês não entendeu suas perguntas. Dr. Amâncio desistiu. Pegou a primeira criança que estava chorando sem parar no colo da mãe. Colocou-a sobre uma mesa pequena, que servia de local de exames. Mandou que a mãe lhe tirasse a roupa do corpo, apertou a região do abdome, examinou-lhe a garganta e os ouvidos. Disse para Manolo:
– Por favor, veja se consegue ferver alguma água.
Manolo saiu rapidamente, providenciando o que lhe fora pedido. O médico fazia um exame superficial nas crianças enfileiradas na enfermaria, dava-lhes algum remédio. Para a maioria, pastilhas para reidratá-los, em outros aplicava uma injeção, enfim, procurava minorar-lhes o sofrimento.
Depois de quase quatro horas de trabalho árduo, conseguiu ter uma posição aproximada dos problemas dos passageiros. A maior parte estava desidratada, alguns poucos uma infecção de garganta, uma gripe, coisas de fácil tratamento.
Pediu a Manolo:
– Por favor, avise àquele comandante imbecil que vou precisar de mais remédios, principalmente soro hidratante. Também muitas frutas, em especial laranjas e bananas. Diga para ele mandar imediatamente um barco a terra para providenciar o que estou pedindo. Se ele relutar, diga para obedecer agora mesmo, do contrário vou comunicar o que ocorreu às autoridades portuárias.
Manolo transmitiu em espanhol o recado ao imediato, aumentando um pouco a gravidade da situação.
– Olha, ele disse que vai pedir a quarentena do navio, que não vai poder sair tão cedo do porto.
O imediato, apavorado, levou a mensagem a Mr. Smith. Este, contrariado, deu um soco na mesa e virou mais um gole do líquido escocês. Ruminou uma praga em inglês, mas mandou que o pedido do médico fosse atendido sem demora.
Lá pelas onze da noite a situação estava praticamente sob controle. Dr. Amâncio, suando bastante, a camisa molhada, ajeitou as mangas, colocou com cuidado a gravata borboleta no colarinho, deu uma esticada nos suspensórios, vestiu o paletó e enfiou o chapéu panamá na cabeça grisalha. Pegou sua maleta e, acompanhado de Manolo, Raphael e do aprendiz de médico inglês, dirigiu-se ao convés.
Lá o esperavam Mr. Smith e o imediato. O médico dirigiu-se ao comandante, voz firme e severa, fisionomia fechada:
– Olhe bem, Mister ou o diabo que seja: que isso nunca mais se repita. Se não casso a tua licença para vocês deixarem de andar por aí viajando de forma tão irresponsável. Sem um médico formado a bordo, sem soro suficiente para uma viagem através do Atlântico...
O imediato traduziu com cuidado as palavras do Dr. Amâncio.  Mr. Smith entendeu o recado e ficou vermelho como um tomate maduro. Engoliu em seco. Mandou o imediato perguntar se poderiam zarpar.
– Hoje não. Vamos ver como os casos mais graves reagem até amanhã. Mas, acho que vai dar tudo certo. – respondeu o médico.
Elogiou e agradeceu a colaboração de Manolo e Raphael. Já dentro do bote que o levaria a terra, despediu-se, mandando que o acadêmico inglês ficasse de olho nos doentes que ficaram internados na enfermaria.
Intimamente, sabia que não adiantava nada comunicar o fato às autoridades brasileiras. Estas sempre fechavam os olhos para aquelas irregularidades, para o transporte desumano de imigrantes como escravos. Parecia a cópia fiel da vinda dos negros africanos um século antes para o Brasil, para trabalharem nas lavouras do país emergente... E, era irônico recordar que os ingleses, naquela época, arvoraram-se em defensores dos escravos, atacando e pondo a pique navios negreiros que vinham para o Brasil...
Para as atuais autoridades portuárias brasileiras importava somente que mais e mais navios ancorassem nos nossos portos, trazendo dinheiro e movimento às cidades tocadas pelos barcos estrangeiros. Além, é claro, das propinas que recebiam e do lucro com o contrabando de várias mercadorias que vinham de além-mar...
Mas, pelo menos, sentia-se satisfeito com o esporro que dera naqueles filhos da puta...

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