OS DESBRAVADORESI
Capítulo 51
Calfilho
LI
Na manhã
seguinte, após nova visita do Dr. Amâncio e do desembarque de alguns poucos
imigrantes que se dirigiam ao Recife, o navio foi liberado pelo médico. Deixou
ele com o acadêmico várias recomendações para o tratamento dos pacientes ainda
desidratados, além de suprir a pequena farmácia da enfermaria com alguns
medicamentos considerados como de primeira necessidade. Foi à forra: apresentou
uma conta altíssima a Mr. Smith, que, embora contrariado e dizendo mil
palavrões por dentro, não relutou em pagá-la. Nem tentou reclamar ou regatear.
Tinha um medo danado que cassassem sua licença e o impedissem de navegar.
O “Highland
Chieftain” voltou ao oceano por volta das dez e meia. Os passageiros, na sua
maioria já curados da desidratação e devidamente medicados contra o enjoo do
mar, voltavam a circular alegres pelos corredores e convés. Na hora do almoço,
novamente o refeitório ficou cheio.
Manolo e
Raphael, juntamente com o coroinha português, passaram a ser considerados como
heróis pelos demais passageiros. Eram cumprimentados a toda hora por uma mãe
agradecida ou por um ou outro português ou espanhol agora aliviados do enjoo,
das crises de vômitos ou da diarreia. O cheiro de azedo e o fedor das fezes
líquidas desapareceram como por encanto das dependências do barco inglês.
Manolo, ao
lado de Raphael, comentava, debruçado sobre a amurada do convés:
– Puxa vida, Raphael, nem conseguimos
ir a terra, conhecer um pouco a cidade do Recife. Depois de tantos dias no mar.
– É verdade – respondeu o outro. –
Mas, trabalhar do jeito que trabalhamos, não havia tempo para isso. Também,
nenhum outro dos passageiros foi a terra...
– Mas, acho que ajudamos um pouco,
não foi? – indagou Manolo.
A pergunta ficou sem resposta.
Raphael estava pensativo, olhando de maneira enigmática para o horizonte ao
longe. O navio evitava afastar-se muito da costa brasileira, temendo por outras
ondas violentas do alto-mar e nova sessão de vômitos e diarréia... O estômago e
o intestino ainda o incomodavam bastante...
A viagem até Salvador, que durou mais
dois dias, transcorreu num ambiente de alegria e descontração. As noites eram
preenchidas por músicas e danças folclóricas. Durante o dia, a algazarra das
crianças correndo pelo convés ou os jogos de malha entre os passageiros.
Do lado direito do navio, estibordo para os homens do mar,
via-se a interminável costa brasileira. Depois que deixaram Pernambuco,
surgiram as magníficas praias de Alagoas. Maceió, ao longe, com o inconfundível
“Gogó da Ema” aparecendo no horizonte, bem distante, o coqueiro símbolo
principal da terra alagoana.
Mais uma vez, Manolo e Raphael,
depois do almoço, fumavam apoiados no balaústre do convés, admirando a
paisagem.
– Muito bonito isso aqui, não é
Manolo? – perguntou Raphael.
– Você tem razão... E esse sol
maravilhoso, que não para de brilhar no céu. Tão diferente da neve e do frio a
que estávamos acostumados na nossa terra, não é? – rebateu Manolo.
Os dois companheiros de viagem, entre
uma e outra baforada de cigarro, filosofavam sobre as belezas do novo país, até
então um ilustre desconhecido para eles. Lamentaram profundamente não terem
podido conhecer Recife, devido ao problema dos doentes do navio. Ninguém desceu
até a capital pernambucana, a não ser os passageiros que ali iriam desembarcar,
mesmo assim após a devida autorização do Dr. Amâncio.
– Não tenho a mínima ideia de como
será a vida aqui no Brasil... – divagou Manolo. – Não sei como eles vivem,
quais são suas atividades principais... Ouvi falar que é a lavoura, mas também
devem estar construindo casas, abrindo estradas, erguendo pontes... E é aí que
eu pretendo entrar.
– Mas, com esse sol tão forte, quem
tem disposição para trabalhar? – rebateu Raphael. – Aposto que a sesta deles
deve durar a tarde toda e não apenas as duas horas a que estamos acostumados lá
na Espanha...
– Bem, eu vou trabalhar na lavoura e não acredito que eles não
trabalhem à tarde. Deve ser uma dureza danada
– divagou Manolo. – Ouvi dizer que tem muita plantação de café e cana-de-açúcar e que isso dá muito dinheiro, segundo meu irmão.
– divagou Manolo. – Ouvi dizer que tem muita plantação de café e cana-de-açúcar e que isso dá muito dinheiro, segundo meu irmão.
– Vou economizar tudo o que puder, só
vou gastar aquilo que for absolutamente necessário – comentou Raphael.
– Eu também – retorquiu Manolo. – E
logo que tiver algum dinheirinho guardado, compro umas terras e construo umas
casas para revender logo e fazer mais dinheiro. Foi dessa forma que vi muita gente enriquecer na Espanha.
Joaquim e Miguel
aproximaram-se dos dois.
– Vamos jogar uma
partidinha de cartas? – convidou o português.
O convite foi
aceito. Procuraram uma sombra,
sentaram-se no chão do convés e formaram a roda de baralho.