quarta-feira, setembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 12

OS DESBRAVADORES

Capítulo 12

Calfilho






 XII





A escala na enseada dos Patos ocorreu sem novidades. Como era esperado, Jeremias não conseguiu as peças necessárias para reparar a caldeira defeituosa, tendo demorado pouco tempo no porto, somente o necessário para a descarga e o carregamento de mercadorias.
Assim por volta das seis da tarde, o “Rosamar” novamente partia em direção ao seu destino. Já era o décimo dia de viagem, 30 de maio de 1916, e ainda não tinham deixado a costa do Ceará.
Mais dois dias e aportaram na enseada da Timbaúba, ainda no Ceará. Ali, Jeremias soube que em Acaraú, cidade maior ali próxima, poderia conseguir as peças necessárias para a reparação da caldeira. Decidiu mandar Zé Maria àquela cidade, enquanto tentava conseguir alguém qualificado para fazer o conserto.
Comunicou o fato a Faustino, que respondeu laconicamente:
– Tudo bem, capitão, se conseguir fazer o conserto, a gente recupera o tempo perdido. Mas, o senhor sinceramente acredita que vai conseguir?
– Não posso afirmar, “seu” Faustino, estou me baseando nas informações que me deram na cidade. Se o senhor quiser, pode descer e dormir num hotel lá, pelo menos muda um pouco de ambiente.
Faustino pensou um pouco antes de responder.
– Não, prefiro dormir aqui mesmo no navio. Pode ser que eu vá a terra, para que minha mulher conheça a cidade e faça algumas compras. Vou ver se meus homens também querem descer.
Consciente de que a rotina da viagem por mar poderia deixar os homens mais ansiosos a cada dia que passava, sabia que um pouco de diversão só iria lhes fazer bem. Chamou Pedro e disse:
– Olha, Pedro, o capitão me disse que vamos ter que passar a noite aqui e talvez o dia inteiro de amanhã. Pode avisar aos homens que eles estão autorizados a ir ao porto, tomar um porre, arranjar umas mulheres para afogar o ganso. Mas, quero todo mundo de volta aqui amanhã até as nove horas. Quem não voltar até essa hora, pode ficar por lá mesmo, entendeu?
Pedro assentiu com a cabeça. Sorriu levemente, pois sabia que aquela folga faria bem aos homens, cansados de ficarem dia após dia na cabine do navio, sem nada para fazer.
Dirigiu-se aos homens em tom duro, fazendo-lhes mil e uma recomendações, repetindo as ameaças que Faustino fizera.
– Bem, vocês são homens feitos, devem saber o que vão fazer. Só não me arranjem aborrecimento, ouviram bem? Vejam bem o que aconteceu com o João e o Firmino.
Todos concordaram, saindo apressadamente no primeiro bote que partiu em direção à cidade. Só José Ribamar, o sarará, preferiu não ir. Ficou na cabine, divertindo-se com seu violão.
Faustino e Maria Teresa pegaram outro bote mais tarde. O local era muito pobre, povoado rústico de casas de madeira, teto de sapê ou folha de bananeira, típica cidade de pescadores, que do mar tiravam o seu alimento e fonte de renda. Plantavam alguma coisa, como mandioca, banana, caju e outras frutas. Não conheciam o arroz, só o feijão manteiga. Comiam muita rapadura, melaço e carne de sol de vez em quando.
Procuraram um lugar com as condições mínimas de higiene para almoçar. Acharam uma birosca numa rua transversal à praia que, se não era um local de primeira classe, pelo menos tinha algumas mesas e cadeiras para sentar. Junto ao balcão, alguns homens tomavam cachaça e falavam alto. Quando viram Faustino e Maria Teresa entrar, olharam com curiosidade para o casal, principalmente para ela, já que era raro aparecer uma mulher por aquelas bandas. Ainda mais uma mulher bonita como ela.
Faustino, percebendo o ambiente e o olhar provocador dos homens, tirou logo o revólver da cinta, colocando-o ostensivamente sobre a mesa. Maria Teresa ficou assustada, baixando os olhos, nervosa. Aquele gesto, a princípio, intimidou os homens, que desviaram imediatamente o olhar. Mas, passados alguns minutos, voltaram a fixá-los com intensidade. Estranhavam o terno de linho branco que Faustino trajava, o chapéu de palha sobre a cabeça, os sapatos de duas cores que ele usava. As roupas que Maria Teresa vestia nunca tinham sido vistas por ali, muito menos a sombrinha que ela com graça trazia nas mãos para proteger-se do sol inclemente.
Começaram a cochichar baixinho entre eles, depois riam e olhavam de vez em quando para os dois.
Aquilo já estava começando a incomodar Faustino. Já estavam sentados ali por uns cinco minutos e ninguém veio atendê-los. Gritou alto, dirigindo-se a um homem baixinho, que estava por trás do balcão, atendendo os fregueses que bebiam cachaça:
– Ô, meu amigo. Vocês servem almoço aqui? Eu vi um cartaz lá na porta...
O baixinho demorou a responder. Finalmente respondeu, lá do balcão:
– Servimos sim. O que vocês vão querer?
Faustino retrucou, em tom de voz agressivo:
– Eu não sei o que vocês têm. Como é que vou escolher?
O camarada engoliu em seco. Respondeu, irritado:
– Carne de sol com jerimum e peixe frito com mandioca.
Faustino levantou-se, puxando Maria Teresa pela mão. Disse alto:
– Muito obrigado, não gostei do cardápio. Vou procurar outro lugar.
Pegou o revólver em cima da mesa, rodando-o nos dedos antes de colocá-lo de volta na cartucheira.
Todos os homens ficaram olhando para os dois, sem nada dizer. Saíram devagar do local, Faustino com os olhos grudados em todos eles.
Do lado de fora, escondido atrás de uma porta de madeira, Pedro observava atentamente a cena, pronto para entrar em ação. Faustino não percebeu a presença do fiel escudeiro, saindo dali com Maria Teresa dependurada em seu braço direito. Andaram um pouco pela beira da praia, acabando por voltar para o navio ainda a tempo de pegar o almoço.  Jeremias, dessa vez, não almoçou com eles, já que estava em terra procurando solucionar o problema do conserto da caldeira.
Mas, o pior estava para acontecer.
Raimundo, Venâncio, Zeferino e Mário rodaram por várias biroscas, beliscando um peixe frito aqui, um camarão ali, bebendo uma caninha num lugar, um traçado em outra. Lá pelas duas da tarde, já falando alto e empolgados pelo efeito do álcool, acabaram entrando na tendinha onde Faustino e Maria Teresa tinham estado anteriormente.
Os mesmos homens que estavam encostados no balcão naquela ocasião, ali permaneciam. Agora, mais embriagados do que antes.
Raimundo chegou apressadamente junto ao balcão, acompanhado pelos outros três. Batendo na madeira, ordenou:
– Quatro cachaças aqui pra gente!
Os outros homens olharam para eles, desconfiados. Viram logo que não era gente do local. Um deles logo começou a provocação:
– Essa cidade hoje tá cheia de babaca. Sai um, vêm logo outros.
Zeferino não entendeu. Quando o baixinho de trás do balcão serviu as doses de aguardente, ele virou a sua de um só gole. Ordenou:
– Bota mais uma aqui!
O baixinho obedeceu.
Outro dos homens continuou a provocação:
– Esse vai voltar a nado pro navio.
Os outros riram. Venâncio, percebendo que era com eles, reagiu:
– Tá rindo de quê, seu babaca?
Fez-se silêncio. Os homens se encararam. Um deles quebrou uma garrafa de cerveja contra o balcão, apontando o fundo do casco para Raimundo e seus acompanhantes. Disse:
– O que vocês estão querendo, seus merdinhas? Querem apanhar?
Venâncio puxou uma peixeira da bainha da calça.
– Vem, podem vir. Tou doido pra furar um.
Ficaram os dois grupos se encarando por alguns instantes. Raimundo, num pulo, agarrou um dos outros homens pela cintura, levantando-o até meio metro de altura. Depois, atirou-o com força contra a parede.
Eram todos eles homens fortes, de musculatura robusta, acostumados à vida dura do mar ou do sertão... Entraram em luta corporal, rolando alguns pelo chão de terra da tendinha. Quebraram mesas, cadeiras, garrafas, o baixinho atrás do balcão gritava como um louco.
De repente, ouviram-se dois estampidos de arma de fogo.
Na porta da tendinha, Pedro, ainda com o revólver saindo fumaça na mão direita, gritou, com voz calma:
– Parem com isso, se não vou atirar para acertar.
Os homens, alguns no chão, finalmente se separaram. Só por milagre ninguém saiu ferido gravemente, uns sangrando um pouco, outros com o rosto arranhado, mas nada de mais grave. Pedro chamou seus homens, mandando que fossem para fora da tendinha. Saiu, apontando o revólver para os que ali ficaram, dizendo:
– Olhe, é melhor vocês se acalmarem e respeitar quem vem de fora. Se provocarem de novo, vou deixar correr frouxo e vocês é que vão sair perdendo. Ali fora só tem cabra macho, vocês não sabem o que eles são capazes de fazer.
Do lado de fora, cara amarrada, disse para os quatro:
– Quer dizer que não adianta nada encher vocês de recomendação, não é? Basta botar um pouco de cachaça pra dentro que vão logo fazer merda.
Venâncio tentou justificar:
– Mas, foram eles que provocaram, Pedro. A gente só pediu pra tomar a cachaça. Eles é que vieram com gracinha pra cima da gente.
– Não interessa – rebateu Pedro, irritado. – Vocês é que atraem a confusão. Parecem que têm visgo no corpo.
Raimundo perguntou, com voz humilde:
– Você não vai contar nada pro “seu” Faustino, vai Pedro? Dá mais uma chance pra gente.
Os outros três também olhavam para ele, com uma súplica nos olhos.
Pedro encarou um por um, demoradamente:
– Bem, vou pensar. Voltem logo pro navio, antes que se metam em outra confusão. E, puteiro agora, nem pensar.
Mário ainda tentou argumentar. Pedro logo o cortou:
– Nem pensar, ouviram bem?
– Tudo bem, Pedro, tudo bem – respondeu Venâncio, mandando que Mário ficasse quieto.
Apesar de demonstrar que não apoiava a atitude dos quatro, no fundo Pedro sabia que eles estavam com a razão. Isto porque, desde que presenciara a atitude dos homens provocando Faustino e Maria Teresa, ficou de olho no pessoal do seu grupo, antevendo o que poderia acontecer.
E, pior que aconteceu.
Pedro, apesar de não querer dar o braço a torcer, sabia que os homens estavam com a razão. O pessoal daquelas cidadezinhas menores não suportava a presença de gente de fora. Ficavam logo enciumados, partiam para a provocação.
Depois, dava no que deu.

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