domingo, setembro 25, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 16



OS DESBRAVADORES

Capítulo 16

Calfilho




XVI







Os dias se sucederam, uns após os outros, lentamente, monótonos, sem nenhuma novidade digna de registro. Parecia que, do amanhecer ao crepúsculo, o tempo parava. Ou, se avançava, era tão vagarosamente como a marcha empreendida pelo “Rosamar”. Ninguém tinha pressa de nada, as tarefas de rotina do navio eram cumpridas mecanicamente, como se uma mão invisível delas se incumbisse, sem necessidade de algum ser humano por trás dela para movimentá-la.
Enfim, deixaram a costa do Ceará, entrando na do Piauí.
Nesse estado, pararam em apenas um porto, Coqueiro. Cidade semelhante àquelas em que aportaram no Ceará. Uma praia bonita, coqueiros, evidentemente, que deram nome ao vilarejo, pequenas casas de pescadores, comércio incipiente, população noventa por cento de analfabetos.
Feita a carga e descarga das mercadorias encomendadas, logo deixaram o pequeno porto.
No dia seguinte, à tardinha, já divisavam ao longe o litoral do Maranhão.
Aportaram em Paulino Neves, onde também ficaram por pouco tempo, aproximadamente umas quatro horas.
Depois, já novamente navegando, divisaram as maravilhosas dunas dos Lençóis Maranhenses. Vista maravilhosa, que a todos extasiou, principalmente Maria Teresa.
A próxima parada, esta um pouco mais demorada, foi na ilha de São Luís, a capital do Estado.
Desceram a terra, almoçaram, fizeram compras, mataram a saudade de uma cidade mais civilizada, mais urbana. Passearam pelas ruas antigas, admiraram o belo casario revestido de azulejos, característico de São Luís, sentiram fortemente a presença marcante da civilização francesa na colonização da cidade.
Faustino aproveitou para levar Maria Teresa para uma consulta com o médico que dele tratara quando passara por São Luís na volta da última expedição, tremendo de febre em decorrência da malária. Naquela ocasião, o Dr. Souza foi até o navio, viu seu estado e receitou-lhe a medicação adequada para que ele chegasse até Fortaleza.
Agora, em seu consultório, no centro da cidade, o velho médico examinou Maria Teresa cuidadosamente, prescreveu-lhe alguns remédios e, dirigindo-se aos dois, disse:
– Tudo bem com sua gravidez, minha senhora. Estou receitando algumas vitaminas e alguns remédios para enjôo.
Faustino sorriu. Disse:
– O que ela tinha que vomitar, já vomitou, doutor. Agora, nem sente mais o balanço do mar.
Dr. Souza também sorriu. Retrucou:
– Bem, de qualquer jeito, ela vai continuar enjoando um pouco por causa da gravidez.
Fez uma pausa. Continuou, agora dirigindo-se a Faustino:
– Fico contente de ver que o senhor se recuperou da malária. Ainda tem alguma crise?
– Às vezes ela ameaça voltar. Mas, tenho tomado o remédio e acho que está sob controle.
Despediram-se e foram almoçar.
Jeremias procurou um mecânico seu conhecido para que fizesse uma revisão geral nas máquinas do “Rosamar”, o que foi muito importante para o bom prosseguimento da viagem. Algumas peças foram trocadas, todas passaram por uma sessão de lubrificação.
À noite, Faustino e Maria Teresa foram assistir a uma festa, um típico bumba-meu-boi, numa pracinha da cidade. Muita música, barraquinhas, comida regional, já que era o mês das festas juninas. Dançaram um pouco, beberam, comeram, divertiram-se bastante.
Dos homens da expedição, somente Pedro foi à cidade. Os outros, não se sabe o motivo, preferiram ficar no navio.
Pedro voltou com mais mercadorias que comprou e mais um homem que contratou. Um português radicado há muito tempo em São Luís que, com o mesmo espírito aventureiro de Faustino, ficou entusiasmado com a possibilidade de tirar o umbigo de trás do balcão de um botequim e tentar a possibilidade de ficar rico em pouco tempo. Quando soube que Pedro procurava gente para a expedição, logo a ele se apresentou, aceitando de pronto as condições que lhe foram apresentadas. Não tinha medo de nada, gostava de enfrentar o perigo e de há muito acalentava o sonho de ir para a selva amazônica, lugar misterioso, cheio de encantos e do qual ouvira muito falar pelos que lá estiveram e passavam por São Luís.
No navio, como não havia mais beliche disponível, não reclamou de ter que dormir no chão da cabine, aquela já ocupada por Raimundo, Venâncio, Zeferino e Mário.
E, engraçado, enquanto os outros tratavam o índio Auã com indiferença, até uma certa hostilidade, ele, logo ele que era português, tornou-se seu maior amigo. Conversavam muito, passaram a andar sempre juntos, trocavam idéias, até confidências. Essa a grande mágica que o Brasil fazia nas pessoas: mesmo de nacionalidades, cor de pele e culturas diferentes: as pessoas se interligavam, mantinham um relacionamento cordial e amigo, sem qualquer espécie de preconceito ou superioridade de umas em relação às outras.
No dia seguinte, partiram.
No Maranhão, ainda pararam rapidamente em Alcântara e Turiaçu, seguindo “celeremente” em direção ao Pará.XVI

quinta-feira, setembro 22, 2016

EXEMPLOS DE VIDA...




EXEMPLOS DE VIDA...

Calfilho



             Se nossa vida terrena é apenas uma passagem como muitos sustentam, ou se é algo que tem começo, meio e fim, sem possibilidade de recomeço, como vários outros admitem e aceitam, entendo que algumas reflexões são cabíveis quando acabamos de assistir os Jogos Paralímpicos (ou Paraolímpicos?) em nossa cidade.
              Passados os dezesseis dias de euforia que vivemos quando da realização dos Jogos Olímpicos, quando vimos que a cidade, além de maravilhosa, sabe ser agradável, alegre, receptiva e até razoavelmente tranquila, saímos agora do período dos Jogos Paralímpicos que reuniu atletas do mundo inteiro também, apenas com a característica de apresentarem algum tipo de deficiência física ou mental.
        Sinceramente, pensei que não iria emocionar-me com a Paraolimpíada depois de ter assistido os melhores atletas do mundo tentando quebrar recordes, dando o máximo de si nas competições que disputaram. Assisti outras anteriores, em outros países, mas, estes Jogos deixaram sua marca, talvez até impregnados do calor humano carioca, talvez até com maior relevância que aqueles outros que os precederam.
             Vimos nesses últimos dias nas piscinas, nas pistas de atletismo, nas quadras, nas ruas e até no mar, como pessoas que nasceram com algum tipo de deficiência ou foram atingidos em algum momento da vida por um acidente, uma bala perdida ou mesmo até uma doença qualquer, vão alegres, com um sorriso nos lábios disputar uma medalha em alguma modalidade esportiva. É o prazer da vida, de continuarem lutando mesmo que o infortúnio os tenha atingido de alguma forma, tentando viver da melhor forma possível e fazendo dessa luta diária um motivo a mais para continuarem entre nós. O esforço que fazem em cada disputa esportiva realmente é digno de nossos aplausos e nossa admiração.
         Vários deles, campeões em suas modalidades, afirmaram e reafirmaram que não querem ser vistos com pena, com comiseração... desejam que nós outros (os normais?) reconheçam neles os méritos e qualidades dos atletas, que são bons realmente naquilo que fazem, que treinaram duramente para atingir os resultados que alcançaram e que a sociedade deve reconhecer em todos eles esse mérito...
         Por isso, realmente não entendemos como muitos daqueles que não apresentam qualquer deficiência física ou de saúde vivem sempre reclamando de alguma coisa, de algum ínfimo problema do cotidiano. Talvez não tenham a menor consciência da dificuldade daqueles que tentam subir num ônibus diariamente para trabalhar e chegam no ponto do coletivo em uma cadeira de rodas... e o elevador da porta do veículo não funciona... Ou então aqueles outros que não conseguem atravessar uma rua e... na outra calçada não existe uma rampa para facilitar-lhe o acesso...
       Assistimos, com muita emoção a alegria de nadadores paraolímpicos sem um braço, uma perna, às vezes ambos, quando atingiam a borda da piscina, mesmo que em último lugar, mas que sentiam o prazer de ter ultrapassado a dificuldade que a vida lhes impôs... Ou então, da atleta paraolímpica, cega, ao cruzar a linha de chegada na prova dos 100 metros rasos, ostentando, vaidosa, sorriso escancarado ns lábios, uma venda estilizada nos olhos...
          Nós, os normais (?), temos o hábito de reclamar de quase tudo que nos cerca diariamente... Alguns até cometem o suicídio, incapazes de enfrentar qualquer dificuldade que a vida coloca em nossa frente...                    Deveríamos trocar de lugar, apenas por um dia para sentir a experiência, com alguns daqueles que, atingidos pelo infortúnio de uma deficiência qualquer, lutam bravamente para serem apenas... iguais a nós (os ditos normais?)

OS DESBRAVADORES Capítulo 15




OS DESBRAVADORES 

Capitulo 15

Calfilho




XV







Pedro voltou ao navio acompanhado de um homem alto, mais de um metro e oitenta, muito forte, mas quase nu. Vestia apenas uma tanga minúscula, um colar de contas no pescoço. Trazia uma faca presa à tanga, na cintura. Pele bem morena, cor de azeitona, quase escura.
Faustino, que estava encostado na amurada do navio aguardando o retorno do último bote, olhou com curiosidade para o acompanhante de seu capataz. Logo que os dois pisaram no convés, Pedro foi logo explicando:
– Patrão, esse aqui é o Auã, ele vai conosco se o senhor não tiver nada contra.
Faustino, que não costumava discutir as decisões de Pedro nessa matéria, apenas olhou para o homem de alto a baixo, como costumava fazer. Perguntou:
– Você fala português?
– Sim, sinhô – respondeu o outro, com um sotaque difícil de compreender.
Pedro interveio:
– Patrão, ele é índio, lá da Amazônia. Veio pra cá e não conseguiu dinheiro para voltar. Quer ir com a gente, trabalhar na expedição e depois ficar por lá, junto dos seus.
Faustino meditou por um instante:
– Você explicou bem a ele nosso ambiente de trabalho, a dureza que vai ser, a disciplina que eu exijo?
Pedro fez um sinal afirmativo com a cabeça. Emendou:
– E o melhor, patrão: ele conhece o Amurã, é de uma tribo amiga da dele.
Faustino ficou mais sossegado. Disse:
– Está bem, leva ele pra junto dos outros. E arranja umas roupas decentes para ele vestir. Não quero ver esse cara desfilando por aí com a piroca balançando. E manda ele tirar essa faca da cinta.
Pedro sorriu e fez um sinal com a mão para que o índio o acompanhasse. Levou Auã para a sua própria cabine, onde já estavam alojados João Paulo e José Ribamar, justamente os dois que substituíram João e Firmino, aqueles já conhecidos anteriormente de Pedro. Depois que foram mandados embora por Faustino, o capataz achou melhor ficar com os novatos perto dele por algum tempo, podendo assim conhecê-los melhor.
Indicou a Auã o último beliche vazio da cabine, que era de quatro lugares. Arranjou-lhe uma muda de roupas novas:
– Tome, vista isso. Você não pode ficar pelado por aí. Ah!...  e me dá essa faca, o patrão não gosta de ver ninguém armado, a não ser eu e ele – disse.
O índio entregou a faca meio contrariado. Sem qualquer constrangimento, tirou a tanga, vestindo a ceroula, a calça comprida e a camisa que Pedro lhe entregara. A roupa ficou meio apertada nele. João Paulo riu, tendo Auã olhado com cara fechada para o mesmo, tendo o sorriso de deboche desaparecido imediatamente da cara do negro.
– Ele é índio e vai conosco – disse Pedro, olhando para João Paulo e José Ribamar.  – Não sabe falar português direito. Espero que vocês não criem problemas com ele. Já viram que o homem é meio enfezado.
Depois, apresentou Auã aos outros homens da expedição. Venâncio, Zeferino, Raimundo e Mário, que ainda estavam meio escabreados desde o episódio da briga em Timbaúba, com medo de que Faustino viesse a despedi-los. Olharam para o índio meio desconfiados. Nunca tinham visto um de perto, achavam que todos eles fossem perigosos, ardilosos, dissimulados e que poderiam atacá-los pelas costas quando menos esperassem.
Pedro repetiu-lhes as mesmas recomendações que fizera a João Paulo e a José Ribamar.
– Tratem ele muito bem. Cuidado, que a sorte de vocês pode virar – advertiu-os, fazendo uma velada referência à briga de Timbaúba.
Os quatro baixaram os olhos, concordando com a cabeça.
Foram todos para o refeitório da tripulação, onde faziam as refeições. Auã foi apresentado aos marujos do navio, causando um pouco de estranheza, a princípio. Mas, depois que deixou de ser novidade, integrou-se à rotina da viagem.








sábado, setembro 17, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 14




OS DESBRAVADORES

Capítulo 14

Calfilho






XIV






Próxima parada: Camocim, última escala da costa cearense.
Dia 4 de junho de 1916.
– Pronto, “seu” Faustino – disse Jeremias. – Essa é a nossa última parada no Ceará. Daqui pra frente, vamos parar menos. Quase não temos mercadoria para o Piauí e o Maranhão. O senhor vai a terra?
– Acho que sim, capitão. Já não aguento mais ficar aqui dentro do navio.
– Pois é, para o senhor ver. Eu, passo minha vida toda aqui dentro dele, já até acostumei a andar balançando o corpo – brincou. – O senhor viaja uma vez ou outra, fica logo saturado.
– É muito monótono, capitão. A gente chega num ponto em que não tem mais nada pra fazer. Ainda bem que eu trouxe alguns livros para ler. Agora, imagine os meus homens, que nem ler eles sabem direito. Confinados naquela cabine, vão acabar se matando uns aos outros – brincou também Faustino.
– O senhor, pelo menos, tem o consolo de voltar rico da sua viagem. Eu não, pra mim vai continuar tudo na mesma.
Os dois conversavam encostados na amurada do navio, vendo Camocim aproximar-se ao longe. Jeremias, com o seu inseparável cachimbo preso no canto da boca, Faustino com o cigarro de palha pendurado nos lábios.
– Veja só, capitão, como esse Brasil é grande. Quanta terra desabitada, onde ninguém ainda colocou os pés – filosofou Faustino. – Pra gente ir de um lugar ao outro são vários dias de viagem. Já imaginou isso tudo povoado, cheio de gente, o avião realmente funcionando, encurtando distâncias, essa terra imensa produzindo de tudo, botando essa riqueza toda pra fora? Quem o senhor acha que poderá segurar esse país?
– É verdade, “seu” Faustino. Veja o seu exemplo. Vai pra dentro da selva, trabalha duro, é verdade, mas fica rico logo, logo, com a extração da borracha. E se o povo explorasse as outras riquezas que nós temos? – retrucou Jeremias.
– Foi assim nos Estados Unidos da América. Desbravaram o oeste, transformaram o país numa grande potência. E, olha que eles têm aproximadamente a mesma idade do Brasil, quatrocentos e poucos anos – continuou Faustino. – O brasileiro, infelizmente, ainda é muito acomodado, muito indolente. Fica satisfeito com o pouco que consegue alcançar, não se lança a voos mais arrojados.
– É verdade – confirmou Jeremias. – Aqui, quando se consegue obter o que comer, não se progride mais. As pessoas se acomodam, não têm ambição. Com exceções, é claro. O senhor, por exemplo...
Faustino o interrompeu:
– Não, o senhor está enganado, eu não posso servir de exemplo. Tudo o que ganhei nas duas expedições anteriores, eu perdi. Ou no jogo ou em farras. Agora que a idade chegou é que estou mais ajuizado, pensando no futuro. Mas, também não quero ficar rico, guardar dinheiro. Quero apenas o suficiente para manter minha família, dar uma boa educação para o meu filho e só. Nada de acumular riquezas pois não vou levar nada comigo quando morrer.
– O senhor está certo, “seu” Faustino. A gente tem que aproveitar a vida enquanto se está por aqui. Depois que morrer, ninguém vai dar valor ao que a gente fez, o mundo é muito ingrato.
Foram interrompidos em suas divagações por Zé Maria, que gritou lá da ponte de comando:
– Capitão, podemos jogar a âncora aqui? Estou com medo de me aproximar mais, acho que tem muito banco de areia.
Jeremias mediu visualmente a distância que separava o “Rosamar” do embarcadouro lá embaixo. Olhou para a água do mar, límpida e cristalina, onde quase se podia ver a areia no fundo. Respondeu:
– Pode sim, Zé Maria. Aqui está bom, não se aproxime mais.
Passados alguns instantes, ouviu-se o ranger da grossa corrente descendo a âncora na proa do navio.
Faustino despediu-se de Jeremias.
– Bem, capitão, vou lá na cabine ver se minha mulher vai querer descer. Até já.
– Até já, “seu” Faustino – retrucou ele, enquanto se dirigia para a ponte para ajudar Zé Maria nas manobras de parada do navio.
Pedro encontrou Faustino no caminho. Perguntou:
– Patrão, vai querer que eu desça pra ver se contrato mais alguém?
Faustino respondeu, depois de pensar um pouco:
– Não sei, Pedro. O que é que você acha?
– Não custa nada ver. Pode ser que haja algum que sirva.
– Então, está bem. Mas, não demore muito, o capitão disse que só vamos ficar aqui só três horas – concluiu Faustino.
Maria Teresa já saía da cabine, usando um vestido branco que ia até o tornozelo e carregando uma sombrinha na mão, pronta para o passeio em Camocim.
Faustino apenas esboçou um sorriso...

segunda-feira, setembro 12, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 13



OS DESBRAVADORES

Capítulo 13


Calfilho






XIII






Felizmente, Zé Maria conseguiu comprar as peças necessárias para a recuperação da caldeira. Mas, Jeremias não achou ninguém em Timbaúba capaz de fazer o conserto.
E o “Rosamar” acabou seguindo viagem no dia seguinte, ainda em velocidade moderada.
Jeremias comentou com Faustino:
– Vamos ver se no próximo porto a gente consegue alguém que saiba fazer o conserto.
A próxima escala seria Jericoacoara, ainda costa do Ceará, que parecia não terminar nunca.
Praia deslumbrante, areia branquinha como a neve, dunas de encher os olhos, a cidade já aparecia ao longe quando o navio se aproximava. Maria Teresa ficou fascinada com a beleza do lugar.
– Puxa, Faustino, que lindo! Pena que a gente, em Fortaleza nem tem noção que isso aqui existe, ainda dentro do nosso Estado. Quero ir a terra, você me leva?
– Claro, Teresa, aqui deve ser mais civilizado que Timbaúba, acho que a gente pode descer sem problemas.
Faustino não ficou sabendo nada sobre a briga dos homens lá em Timbaúba. Só estranhou que eles tivessem voltado tão cedo para o navio e estivessem tão ressabiados quando passavam por ele. Não perguntou nada a Pedro. Confiava cegamente em seu auxiliar, não queria melindrá-lo, nem discutir suas decisões. Mas, que alguma coisa ocorrera, disso não tinha dúvida.
O “Rosamar” ancorou ao largo de Jericoacoara por volta das duas da tarde. Faustino e Teresa foram a terra no primeiro bote que encostou, juntamente com Jeremias.
Lá, o capitão saiu em busca de um mecânico que entendesse de caldeira. Faustino e a mulher foram dar uma volta pela cidade. Esta, apesar de ainda manter uma aparência selvagem, pela beleza de suas dunas e a exuberância de seus coqueiros, tinha um razoável número de habitações, até um pequeno hotel possuía. Tendinhas, muitas. As ruas, sem calçamento, as casas sem luz elétrica, era uma típica cidade da primeira metade do século XX do nordeste brasileiro.
Andando pelas ruas estreitas, Maria Teresa achou alguns armarinhos e pequenas lojas onde eram vendidos vestidos prontos, sapatos vindos do Rio ou São Paulo, tecido para fazer roupas. Comprou alguma coisa e deu de presente um outro chapéu para Faustino, de cor bege com uma fita azul. Almoçaram fartamente num pequeno bar local, buchada de bode com batata cozida.
O pessoal da cidade pareceu muito hospitaleiro, agradável, querendo demonstrar sua satisfação em receber tão ilustres visitantes. Enfim, tudo bem diferente de Timbaúba.
Encontraram Jeremias afobado, andando apressado numa das ruas da cidade.
– Parece que encontrei alguém, “seu” Faustino – disse ele. – Vou levar o cabra lá no navio pra ele dar uma olhada na caldeira. Ele me disse que acha que pode consertar.
– Tudo bem, capitão – respondeu Faustino. – Espero que ele faça o conserto.
Pedro também foi a terra ver se achava mais alguns homens para fazer parte da expedição. Contratou um, João Paulo, um negão de quase dois metros de altura, forte como um touro e bronco como ele só. Analfabeto, falava quase soluçando, aos tropeções. Mas, segundo Pedro relatou a Faustino, já participara de uma expedição ao Amazonas, tendo, portanto, experiência da vida na selva.  Segundo ainda Pedro, de acordo com as informações colhidas na cidade, era homem pacato, leal e muito trabalhador. Vivia sozinho, não tinha família nem ninguém que o prendesse aquele local.
Faustino ainda procurou um médico na cidade, para que fizesse um exame de rotina em Maria Teresa, verificar como estava indo sua gravidez. Também queria comprar mais quinino, que passou a usar desde que foi atacado pela malária.
Infelizmente, não havia médico no local, só um farmacêutico, mesmo assim um prático, nem formado era. Decidiu esperar até chegar em Belém para a consulta da mulher. Conseguiu comprar, entretanto, três frascos de quinino.
Quando retornaram ao “Rosamar”, a boa notícia: a caldeira fora consertada e o navio poderia retomar sua velocidade normal, que, apesar de ser muito baixa, pelo menos era aquela que deveria seguir.
Às sete da noite, zarparam em direção a uma nova escala.

quinta-feira, setembro 08, 2016

ALBER PESSANHA...

ALBER PESSANHA...

Calfilho






               Determinadas pessoas que tiveram grande importância em nossas vidas, influenciando-nos na transição da adolescência para a fase adulta, são aquelas cuja amizade não é afetada pela passagem do tempo e permanece sólida para sempre, mesmo que a distância nos tenha separado.
         Já falei aqui, em outro tópico, sobre minha querida professora do Liceu Nilo Peçanha, nos meus dois últimos anos do curso científico, Nícia Muniz. Mesmo tendo sido ela minha professora de matemática, matéria que nunca mais utilizei na minha vida profissional, não esqueço nunca sua bondade e sensibilidade no trato com seus alunos, poucos anos mais novos que ela, que também tinha estudado no nosso colégio. Mesmo sabendo que muitos daqueles seus alunos seguiriam carreiras onde nunca teriam que usar a matemática avançada do curso científico, tinha a percepção de que reprová-los seria um erro grave, pois faria com que eles perdessem um ano repetindo matérias que jamais utilizariam em suas vidas no futuro. Preferia deixá-los passar de ano, concluir o curso científico e seguirem com suas vidas. 
         Foi o meu caso, no terceiro ano científico do Liceu Nilo Peçanha. Acabei fazendo faculdade de Direito, fui advogado, promotor de Justiça, magistrado. Tudo diferente do que eu havia planejado para o meu futuro. Jamais precisei saber o que era derivada, integral ou logaritmos na minha vida profissional. Por isso, ela me deu quatro na prova oral do final do terceiro ano científico, mesmo sabendo que eu não merecia aquela nota. Mas, era o que eu precisava para concluir o curso.
       Muitos anos depois, quando eu já estava aposentado na magistratura e ela há mais tempo como professora, conseguimos voltar a manter contato. Contei-lhe, pelo telefone, sobre esse fato, que estava narrado num livrinho que escrevi sobre o meu Liceu.                   Ela riu muito e disse-me:
            "-- Eu mordia, mas depois assoprava".
          Mas, quero falar hoje sobre um professor de Educação Física, que entrou para o colégio quando eu cursava o segundo ano científico, em 1958. Apesar de nunca ter sido seu aluno, criamos uma sólida amizade a partir da sua entrada para o corpo docente do Liceu. Seu nome é Alber Pessanha.
          Naquele ano de 1958 eu e outros colegas de turma (Irapuam, Telúrio, entre outros) conseguimos eleger o aluno Jorge Carrano presidente do nosso grêmio cultural e esportivo. Carrano tinha vindo de outro colégio, estudava em uma turma de série inferior à nossa, mas logo conosco se entrosou, até porque, como todos nós, adorava participar dos animados "rachas" na nossa quadra de basquete ou mesmo na menor, a de vôlei. Eu era o diretor de futebol de salão, Telúrio o diretor de esportes e Irapuam o diretor social.
          Conseguimos recuperar o Grêmio e passamos a promover, nos sábados à tarde, torneios internos e amistosos contra outros colégios de Niterói. Alber, também ele um apaixonado por futebol (era ligado ao São Cristóvão, do Rio de Janeiro), aproximou-se de nós e passou a acompanhar nossas atividades. Para nós foi excelente essa aproximação, pois estávamos encontrando alguma dificuldade em abrir o colégio aos sábados à tarde, já que o então diretor, Professor Aldo Muylaert, não queria permitir a abertura sem a presença de um professor. Alber ofereceu-se para nos "vigiar" e o obstáculo foi então superado. Contamos também com a colaboração de Azer Ribeiro, o "seu" Azer, zelador do colégio, que nos abria o vestiário e as dependências esportivas do Liceu.
            Depois de algum tempo, já estreitado nosso relacionamento, o professor Alber convidou a mim e Irapuam para visitá-lo em seu apartamento e conhecer sua família. Ficava na Feliciano Sodré, esquina com a Visconde do Uruguai, no quarto e último andar. Lá tivemos o prazer de conhecer sua esposa, Dª. Lucia, sempre com um sorriso generoso nos lábios, e os filhos, Alcia, Carlos Alberto (o Nick) e Gloria, todos com menos de 10 anos de idade.
          Alber sempre nos acolhia com uma cervejinha gelada para brindarmos alguma coisa: uma vitória do Liceu, uma partida de futebol, o campeonato mundial de 1958 na Suécia, que escutamos pelo rádio. 
         Irapuam já namorava uma liceísta que morava numa casa colada ao prédio de Alber, na rua Visconde do Uruguai. Eu estava de olho numa menina que morava em frente, na mesma rua. Então, depois de uma breve conversa com as duas, passávamos no apartamento de Alber para uma cerveja amiga. O presidente do Grêmio, Carrano, também morava no mesmo prédio, num outro bloco. Mais um pretexto para visitarmos Alber, depois de termos passado na casa de Carrano para resolver algum assunto do Grêmio. 
         Alber acompanhou a delegação do Liceu na excursão a Angra dos Reis, onde disputamos várias modalidades contra o Colégio Naval.
          Em sua casa, assistimos pela televisão o América sagrar-se campeão carioca de 1960. Também lá acompanhamos pelo rádio o Brasil sagrar-se bicampeão mundial de futebol em 1962.
           Alber foi o técnico do Canto do Rio F.C., que na época ainda disputava o Campeonato Carioca de futebol, numa excursão que o clube realizou à Europa, nos primeiros anos da década de 60. 
          Antes de ir trabalhar no Liceu ele já era professor no antigo Colégio Nilo Peçanha, situado no Largo do Barradas. Em sua casa conhecemos vários alunos desse colégio que eram também seus amigos.
         Esse contato frequente perdurou por alguns anos, cinco ou seis, não me recordo ao certo.
      A passagem do tempo nos afastou. Eu fui morar em São Francisco em 1961 e em 1964 fui trabalhar em Cantagalo, no interior do Estado.
             Já na década de 70, encontrei-me com ele na rua e o convidei para me fazer uma visita para que conhecesse meus filhos. Fiz questão que ele levasse toda a família pois queria ver como Alcia, Nick e Gloria tinham crescido. Ele atendeu meu convite e tive o prazer de rever Dª. Lucia e os filhos, realmente já bem crescidos.
                Lembro-me que lhe fiz uma visita certa vez quando ele estava morando em Macaé e eu era Promotor de Justiça em Casimiro de Abreu.
                  Depois, realmente, perdemos o contato. Tentei levar-lhe o convite de casamento de minha filha em 1988, mas não sabia ao certo onde ele estava morando. Por informações de amigos, fui até um condomínio onde me disseram que ele estaria morando, no começo da rua Barão de Amazonas. O porteiro disse-me que ele não estava em casa, que talvez estivesse em Rio das Ostras. Deixei o convite, mas ele não apareceu.
               Só agora, há poucos dias atrás, Carrano me informou por e-mail que o filho de Alber, Carlos Alberto (o Nick) tinha entrado em contato com ele pela internet. Consegui localizá-lo e ele me informou que Alber e Dª. Lucia estavam morando em Rio das Ostras. Enviei-lhe e a Alber, um exemplar do livrinho que escrevi sobre o Liceu. Para minha tristeza, soube que Alcia, a garotinha que conhecera com 8 ou 9 anos de idade, havia falecido.
         Telefonei-lhe, batemos um longo papo, com ele e a esposa, matamos as saudades dos bons momentos vividos no final dos anos 50, início dos 60 do século passado.
       Aquelas visitas que lhes fazíamos quase que diariamente criaram entre nós uma amizade muito grande, que mesmo com a posterior distância física sempre mantivemos viva em nossa memória. 
           Já disse aqui e repito: minha época do Liceu, principalmente depois que assumimos a direção do Grêmio, foi a mais importante da minha vida, talvez aquela que mais tenha contribuído para a formação da minha personalidade como adulto. 
           E Alber e Dª. Lucia tiveram marcante influência nessa minha transição de vida... Pelo exemplo que davam de união, da importância da família no nosso dia a dia... Essa lição trago comigo desde aquela época até os dias de hoje...
               Muito obrigado aos dois...

quarta-feira, setembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 12

OS DESBRAVADORES

Capítulo 12

Calfilho






 XII





A escala na enseada dos Patos ocorreu sem novidades. Como era esperado, Jeremias não conseguiu as peças necessárias para reparar a caldeira defeituosa, tendo demorado pouco tempo no porto, somente o necessário para a descarga e o carregamento de mercadorias.
Assim por volta das seis da tarde, o “Rosamar” novamente partia em direção ao seu destino. Já era o décimo dia de viagem, 30 de maio de 1916, e ainda não tinham deixado a costa do Ceará.
Mais dois dias e aportaram na enseada da Timbaúba, ainda no Ceará. Ali, Jeremias soube que em Acaraú, cidade maior ali próxima, poderia conseguir as peças necessárias para a reparação da caldeira. Decidiu mandar Zé Maria àquela cidade, enquanto tentava conseguir alguém qualificado para fazer o conserto.
Comunicou o fato a Faustino, que respondeu laconicamente:
– Tudo bem, capitão, se conseguir fazer o conserto, a gente recupera o tempo perdido. Mas, o senhor sinceramente acredita que vai conseguir?
– Não posso afirmar, “seu” Faustino, estou me baseando nas informações que me deram na cidade. Se o senhor quiser, pode descer e dormir num hotel lá, pelo menos muda um pouco de ambiente.
Faustino pensou um pouco antes de responder.
– Não, prefiro dormir aqui mesmo no navio. Pode ser que eu vá a terra, para que minha mulher conheça a cidade e faça algumas compras. Vou ver se meus homens também querem descer.
Consciente de que a rotina da viagem por mar poderia deixar os homens mais ansiosos a cada dia que passava, sabia que um pouco de diversão só iria lhes fazer bem. Chamou Pedro e disse:
– Olha, Pedro, o capitão me disse que vamos ter que passar a noite aqui e talvez o dia inteiro de amanhã. Pode avisar aos homens que eles estão autorizados a ir ao porto, tomar um porre, arranjar umas mulheres para afogar o ganso. Mas, quero todo mundo de volta aqui amanhã até as nove horas. Quem não voltar até essa hora, pode ficar por lá mesmo, entendeu?
Pedro assentiu com a cabeça. Sorriu levemente, pois sabia que aquela folga faria bem aos homens, cansados de ficarem dia após dia na cabine do navio, sem nada para fazer.
Dirigiu-se aos homens em tom duro, fazendo-lhes mil e uma recomendações, repetindo as ameaças que Faustino fizera.
– Bem, vocês são homens feitos, devem saber o que vão fazer. Só não me arranjem aborrecimento, ouviram bem? Vejam bem o que aconteceu com o João e o Firmino.
Todos concordaram, saindo apressadamente no primeiro bote que partiu em direção à cidade. Só José Ribamar, o sarará, preferiu não ir. Ficou na cabine, divertindo-se com seu violão.
Faustino e Maria Teresa pegaram outro bote mais tarde. O local era muito pobre, povoado rústico de casas de madeira, teto de sapê ou folha de bananeira, típica cidade de pescadores, que do mar tiravam o seu alimento e fonte de renda. Plantavam alguma coisa, como mandioca, banana, caju e outras frutas. Não conheciam o arroz, só o feijão manteiga. Comiam muita rapadura, melaço e carne de sol de vez em quando.
Procuraram um lugar com as condições mínimas de higiene para almoçar. Acharam uma birosca numa rua transversal à praia que, se não era um local de primeira classe, pelo menos tinha algumas mesas e cadeiras para sentar. Junto ao balcão, alguns homens tomavam cachaça e falavam alto. Quando viram Faustino e Maria Teresa entrar, olharam com curiosidade para o casal, principalmente para ela, já que era raro aparecer uma mulher por aquelas bandas. Ainda mais uma mulher bonita como ela.
Faustino, percebendo o ambiente e o olhar provocador dos homens, tirou logo o revólver da cinta, colocando-o ostensivamente sobre a mesa. Maria Teresa ficou assustada, baixando os olhos, nervosa. Aquele gesto, a princípio, intimidou os homens, que desviaram imediatamente o olhar. Mas, passados alguns minutos, voltaram a fixá-los com intensidade. Estranhavam o terno de linho branco que Faustino trajava, o chapéu de palha sobre a cabeça, os sapatos de duas cores que ele usava. As roupas que Maria Teresa vestia nunca tinham sido vistas por ali, muito menos a sombrinha que ela com graça trazia nas mãos para proteger-se do sol inclemente.
Começaram a cochichar baixinho entre eles, depois riam e olhavam de vez em quando para os dois.
Aquilo já estava começando a incomodar Faustino. Já estavam sentados ali por uns cinco minutos e ninguém veio atendê-los. Gritou alto, dirigindo-se a um homem baixinho, que estava por trás do balcão, atendendo os fregueses que bebiam cachaça:
– Ô, meu amigo. Vocês servem almoço aqui? Eu vi um cartaz lá na porta...
O baixinho demorou a responder. Finalmente respondeu, lá do balcão:
– Servimos sim. O que vocês vão querer?
Faustino retrucou, em tom de voz agressivo:
– Eu não sei o que vocês têm. Como é que vou escolher?
O camarada engoliu em seco. Respondeu, irritado:
– Carne de sol com jerimum e peixe frito com mandioca.
Faustino levantou-se, puxando Maria Teresa pela mão. Disse alto:
– Muito obrigado, não gostei do cardápio. Vou procurar outro lugar.
Pegou o revólver em cima da mesa, rodando-o nos dedos antes de colocá-lo de volta na cartucheira.
Todos os homens ficaram olhando para os dois, sem nada dizer. Saíram devagar do local, Faustino com os olhos grudados em todos eles.
Do lado de fora, escondido atrás de uma porta de madeira, Pedro observava atentamente a cena, pronto para entrar em ação. Faustino não percebeu a presença do fiel escudeiro, saindo dali com Maria Teresa dependurada em seu braço direito. Andaram um pouco pela beira da praia, acabando por voltar para o navio ainda a tempo de pegar o almoço.  Jeremias, dessa vez, não almoçou com eles, já que estava em terra procurando solucionar o problema do conserto da caldeira.
Mas, o pior estava para acontecer.
Raimundo, Venâncio, Zeferino e Mário rodaram por várias biroscas, beliscando um peixe frito aqui, um camarão ali, bebendo uma caninha num lugar, um traçado em outra. Lá pelas duas da tarde, já falando alto e empolgados pelo efeito do álcool, acabaram entrando na tendinha onde Faustino e Maria Teresa tinham estado anteriormente.
Os mesmos homens que estavam encostados no balcão naquela ocasião, ali permaneciam. Agora, mais embriagados do que antes.
Raimundo chegou apressadamente junto ao balcão, acompanhado pelos outros três. Batendo na madeira, ordenou:
– Quatro cachaças aqui pra gente!
Os outros homens olharam para eles, desconfiados. Viram logo que não era gente do local. Um deles logo começou a provocação:
– Essa cidade hoje tá cheia de babaca. Sai um, vêm logo outros.
Zeferino não entendeu. Quando o baixinho de trás do balcão serviu as doses de aguardente, ele virou a sua de um só gole. Ordenou:
– Bota mais uma aqui!
O baixinho obedeceu.
Outro dos homens continuou a provocação:
– Esse vai voltar a nado pro navio.
Os outros riram. Venâncio, percebendo que era com eles, reagiu:
– Tá rindo de quê, seu babaca?
Fez-se silêncio. Os homens se encararam. Um deles quebrou uma garrafa de cerveja contra o balcão, apontando o fundo do casco para Raimundo e seus acompanhantes. Disse:
– O que vocês estão querendo, seus merdinhas? Querem apanhar?
Venâncio puxou uma peixeira da bainha da calça.
– Vem, podem vir. Tou doido pra furar um.
Ficaram os dois grupos se encarando por alguns instantes. Raimundo, num pulo, agarrou um dos outros homens pela cintura, levantando-o até meio metro de altura. Depois, atirou-o com força contra a parede.
Eram todos eles homens fortes, de musculatura robusta, acostumados à vida dura do mar ou do sertão... Entraram em luta corporal, rolando alguns pelo chão de terra da tendinha. Quebraram mesas, cadeiras, garrafas, o baixinho atrás do balcão gritava como um louco.
De repente, ouviram-se dois estampidos de arma de fogo.
Na porta da tendinha, Pedro, ainda com o revólver saindo fumaça na mão direita, gritou, com voz calma:
– Parem com isso, se não vou atirar para acertar.
Os homens, alguns no chão, finalmente se separaram. Só por milagre ninguém saiu ferido gravemente, uns sangrando um pouco, outros com o rosto arranhado, mas nada de mais grave. Pedro chamou seus homens, mandando que fossem para fora da tendinha. Saiu, apontando o revólver para os que ali ficaram, dizendo:
– Olhe, é melhor vocês se acalmarem e respeitar quem vem de fora. Se provocarem de novo, vou deixar correr frouxo e vocês é que vão sair perdendo. Ali fora só tem cabra macho, vocês não sabem o que eles são capazes de fazer.
Do lado de fora, cara amarrada, disse para os quatro:
– Quer dizer que não adianta nada encher vocês de recomendação, não é? Basta botar um pouco de cachaça pra dentro que vão logo fazer merda.
Venâncio tentou justificar:
– Mas, foram eles que provocaram, Pedro. A gente só pediu pra tomar a cachaça. Eles é que vieram com gracinha pra cima da gente.
– Não interessa – rebateu Pedro, irritado. – Vocês é que atraem a confusão. Parecem que têm visgo no corpo.
Raimundo perguntou, com voz humilde:
– Você não vai contar nada pro “seu” Faustino, vai Pedro? Dá mais uma chance pra gente.
Os outros três também olhavam para ele, com uma súplica nos olhos.
Pedro encarou um por um, demoradamente:
– Bem, vou pensar. Voltem logo pro navio, antes que se metam em outra confusão. E, puteiro agora, nem pensar.
Mário ainda tentou argumentar. Pedro logo o cortou:
– Nem pensar, ouviram bem?
– Tudo bem, Pedro, tudo bem – respondeu Venâncio, mandando que Mário ficasse quieto.
Apesar de demonstrar que não apoiava a atitude dos quatro, no fundo Pedro sabia que eles estavam com a razão. Isto porque, desde que presenciara a atitude dos homens provocando Faustino e Maria Teresa, ficou de olho no pessoal do seu grupo, antevendo o que poderia acontecer.
E, pior que aconteceu.
Pedro, apesar de não querer dar o braço a torcer, sabia que os homens estavam com a razão. O pessoal daquelas cidadezinhas menores não suportava a presença de gente de fora. Ficavam logo enciumados, partiam para a provocação.
Depois, dava no que deu.

segunda-feira, setembro 05, 2016

VIAGENS MARÍTIMAS...

VIAGENS MARÍTIMAS...

Calfilho




            Acho que já comentei aqui, em matéria anterior, que uma das principais dúvidas com que se depara aquele que pretende fazer uma grande viagem para o exterior, é escolher entre uma excursão ou um roteiro por conta própria. Entendo que as duas têm vantagens e desvantagens.
      Numa excursão, você é bem assessorado por guias profissionais, fica alojado geralmente em hotéis de categoria 4 estrelas, não precisa ter preocupação com malas, é levado a conhecer os lugares principais das cidades visitadas. Mas, tudo é muito corrido, não se tem tempo de curtir o povo de cada lugar, os locais onde almoça ou janta são aqueles já escolhidos pelos guias (que ganham comissão para isso), não se pode ficar muito longe do grupo e, o que acho pior, pode-se ter que conviver com pessoas de temperamento diferente do seu, às vezes, inconvenientes ou mesmo muito chatos durante quinze ou vinte dias seguidos. Tem gente que gosta das excursões até mesmo para conhecer outras pessoas, fazer novas amizades. Entretanto, quando chega o fim da excursão, você pouco ou quase nada lembra dos lugares visitados, dada a rapidez e superficialidade com que as visitas são feitas.
        Prefiro as viagens que faço por conta própria, aquelas em que escolho meu roteiro, quantos dias pretendo ficar em cada cidade, sem ficar preso a horários estabelecidos pelos guias, enfim, ter liberdade para fazer minhas refeições onde quiser, visitar e até descobrir lugares diferentes, sentindo o prazer da descoberta, do improviso. É claro que um conhecimento, mesmo pequeno, da língua dos países a serem visitados ajuda e muito na escolha dessa opção. O contato direto com as pessoas do país visitado é muito agradável e interessante. Normalmente, você é muito bem recebido, principalmente quando é reconhecido como um turista brasileiro, pois os europeus, em sua maioria, têm muita curiosidade e admiração pelo Brasil.
           Depois da minha aposentadoria, em 1990, quando passei a ter tempo livre para viajar, passei eu mesmo a organizar minhas viagens para o exterior. A princípio, com a ajuda de uma agência de viagem, que conhecia melhor que eu hotéis, reservas de trem e avião, traslados e outras pequenas coisas necessárias para uma viagem. Atualmente, procuro diretamente na internet o que pretendo e consigo resolver tudo isso praticamente sozinho.
             Foi assim que, a partir de 1990, passei a fazer uma, às vezes duas viagens anuais para o exterior, principalmente para a Europa e o cone sul do nosso continente.
               Viajava, em princípio, de avião, fazendo de Paris minha cidade principal e dali partindo de trem para outras cidades da França e da Europa. Minha companhia aérea preferida sempre foi a Air France, por ter um voo direto para Paris e vice-versa, pela boa qualidade do voo e por eu estar inscrito no seu programa de milhagem, o Flying Blue, que já me proporcionou fazer algumas viagens totalmente gratuitas. Fui com minha mulher, meus filhos (um de cada vez), meu neto, meu irmão e cunhada, alguns casais amigos. Viajei também pela TAP (muito boa companhia), pela Alitalia (também muito boa) e pela British Airways (a pior delas, que me fez esperar seis horas no aeroporto de Londres para uma conexão para Paris e enviou uma das minhas malas para o aeroporto que não foi aquele em que desembarquei).
          Já no novo século, em sua primeira década, o dono de uma agência de turismo de quem fiquei amigo, infelizmente já falecido, sugeriu-me fazer a travessia do Atlântico de navio, do Brasil para a Europa.  
             Já tinha feito quatro viagens marítimas anteriormente. 
          Em 1948, quando fomos do Rio para Fortaleza, onde meu pai, médico pediatra, iria chefiar o Departamento Nacional da Criança no Estado do Ceará. Foi uma viagem de quinze dias, num navio do Ita, o Itaimbé, que levou, inclusive, nossa mobília. Paramos em Salvador, Recife, Maceió, Cabedelo e Natal. Essa viagem ficou fortemente marcada na mente do então menino com oito anos de idade.
          Depois, em 1957, quando meu pai decidiu levar toda a família para a Europa, onde ele iria participar de um congresso médico. Eu iria completar quinze anos de idade no mês seguinte. Embarcamos no navio italiano "Conte Grande", no porto do Rio de Janeiro e fomos até Nápoles, na Itália, numa viagem também de quinze dias, com escalas em Salvador, Recife, Dakar, Lisboa, Barcelona e Gênova. Voltamos num navio inglês o "Highland Chieftain".
              Em 1980, minha mãe decidiu convidar a família toda (eu, mulher e filhos e meu irmão também com mulher e filhos) num passeio até Manaus no navio português "Funchal". Partida e chegada no Rio de Janeiro, numa viagem de pouco mais de 20 dias. Muito boa a viagem, principalmente com a subida do rio Amazonas, de Belém até Manaus. Fizemos escalas em vários portos brasileiros, como Salvador, Recife, Fortaleza e Santarém.
             Quando recebi a sugestão de fazer novamente a travessia do Atlântico, saindo do Rio de Janeiro e chegando em Savona, na Itália, fiquei interessado. Como já estava aposentado desde 1990, tinha tempo livre para sair um pouco da rotina do avião.
           Gostei tanto da experiência que fiz várias outras viagens marítimas, inclusive para a Patagônia, no extremo sul do continente sul americano.
           A viagem de navio, principalmente as mais longas, com mais de dez dias de duração (não gosto das curtas, aquelas de 3, 7 ou 9 dias) são muito repousantes e nos dá tempo para colocar a leitura de um bom livro em dia, de usar o tempo  da travessia do Atlântico propriamente dita, de Funchal até Recife ou Salvador (cinco ou seis dias) para refletirmos sobre nossa vida, relembrar nosso passado e pensar sobre o futuro. Para os mais jovens, muitas atrações: discoteca, brincadeiras de salão, etc... Para aqueles que estão na meia idade, o cassino, as piscinas, a academia de ginástica, os shows diários no teatro. Para os da terceira idade como eu, a biblioteca, os vários salões onde podemos saborear um coquetel diferente ou bater papo com algum casal interessante, principalmente os estrangeiros, onde podemos trocar ideias sobre os costumes de nossas regiões.
           Fora isso, podemos apreciar a diversificada culinária a bordo, nas lautas refeições servidas: café da manhã, almoço, lanche, jantar e ceia noturna. Só devemos tomar cuidado com a balança...
              Alguns acham a viagem de navio muito monótona, muito cansativa. Não é o meu caso.
              No Brasil, atualmente, na época do nosso verão, chegam da Europa navios da Costa Cruzeiros e da MSC Cruzeiros. Durante os meses de dezembro, janeiro e fevereiro ficam eles fazendo passeios para o nordeste e sul do Brasil, indo até Buenos Ayres. Existem outras companhias que fazem o percurso Santiago/Rio de Janeiro, passando por Ushuaia, na Patagônia, nas ilhas Malvinas, Buenos Ayres e Montevidéu.
               Antigamente, tínhamos linhas regulares de navio por toda a costa brasileira (lembram do "Rosa da Fonseca" e do "Ana Nery"?) e outros que também faziam regularmente a rota Brasil/Europa (como o "Conte Grande", o "Augustus", o Conte Biancamano", o "Provence", o "Bretagne"). Com o rápido desenvolvimento da aviação comercial, essas  linhas desapareceram, só funcionando no nosso verão.
          Pena, pois um país como o Brasil, como uma costa tão extensa, com tantas praias maravilhosas, algumas até desconhecidas de nós, brasileiros, não aproveite essa dádiva da natureza para fazer voltar os navios nacionais que poderiam explorar esse imenso manancial turístico...

quinta-feira, setembro 01, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 11



OS DESBRAVADORES

Capítulo 11

Calfilho





XI






O primeiro problema com o “Rosamar” ocorreu entre Baleia e a enseada dos Patos, a próxima escala do navio.
Enquanto Faustino, Maria Teresa e Jeremias almoçavam, conversando alegremente, entrou Zé Maria no refeitório. Fisionomia séria, demonstrando preocupação.
O imediato cumprimentou os presentes, dirigindo-se em voz baixa a Jeremias:
– Capitão, o senhor me desculpe interromper seu almoço, mas estamos com um problema. Uma das caldeiras estourou.
Jeremias acabava de enfiar uma garfada de espaguete boca adentro.
– Eu sabia, estava demorando a acontecer.
Levantou-se rapidamente, passando antes o guardanapo na boca suja de molho de tomate.
– Queiram me desculpar, “seu” Faustino, minha senhora. Vou ter que ver isso.
 Levantou as mãos para o alto, apertando-as fortemente uma contra a outra.
 – Tomara que não seja nada grave – disse, em voz baixa, como se fizesse uma prece.
Só mais tarde, após terem acabado de almoçar e quando descansavam sentados numas das poucas cadeiras que havia no convés, foi que Faustino e Maria Teresa souberam o que realmente acontecera.
Jeremias aproximou-se e disse, com sua voz de trombone:
– Bem, acho que vou ter o prazer de sua companhia por mais tempo que o previsto.
Faustino e Maria Teresa olharam para ele interrogativamente.
– Realmente, uma das caldeiras estourou e acho difícil consertá-la aqui em viagem. Vamos tentar numa das nossas escalas, mas acredito que só em Belém vamos conseguir. Mas, a viagem vai continuar, só que vamos demorar um pouco mais.
Faustino não escondeu sua preocupação:
– Quanto tempo mais, capitão? Eu já contratei uma gaiola para me levar para a Amazônia, ela vai estar me esperando em Belém na data em que a gente devia chegar lá.
– Infelizmente, não sei, “seu” Faustino. Acredito, em princípio, em dois ou três dias mais. Nem que a gente tenha que diminuir o tempo de parada nos portos seguintes.
– Tudo bem, capitão, acho que não vai me atrapalhar muito não. Mas, eu preciso passar um telegrama para o pessoal lá de Belém.
– Sem problema, “seu” Faustino. A gente providencia isso.
Jeremias afastou-se, deixando o casal a sós. Faustino comentou:
– Está vendo, Teresa, nesse tipo de negócio surge sempre um imprevisto. Mas, já estou acostumado com isso, esse é o menor dos problemas.
Apesar de ter ficado um pouco chateado com o atraso, Faustino não queria passar essa preocupação para a mulher. Estava doido para brincar com ela, dar-lhe um susto com a cobra empalhada que comprara em Baleia. Mas, receando que o susto pudesse ser muito grande e aquilo pudesse interferir com a gravidez de Teresa, acabou por contar-lhe:
– Olha, Teresa, eu ia fazer uma brincadeira contigo, te dar um susto com uma cobra que comprei na nossa última escala, lá em Baleia. Mas, não sei qual seria a tua reação, por isso desisti.
– Cobra, que cobra, Faustino? Você teve coragem de trazer uma cobra para me assustar? Onde está ela? Na cabine? – perguntou ela, assustada.
Ele riu sonoramente:
– Não, sua boba, ela ficou com o Pedro.
– O quê? Com o Pedro? E ele não está com medo? Está alimentando ela?
Ele riu novamente. Disse:
– Alimentando como, Teresa? A cobra está morta, empalhada...
Continuou a rir, gozando da ingenuidade da mulher. Ela disse, resmungando:
– Você me paga, vai ver só...
– Depois, eu te mostro. Deixa o Pedro acabar de almoçar.
– Não quero ver cobra nenhuma, pode ficar com ela – disse Teresa levantando-se e caminhando resoluta para a cabine.
Ele permaneceu sentado, continuando a rir.
O “Rosamar”, agora adoentado, desfalcado de uma das caldeiras, continuava sua lenta marcha através dos mares nordestinos...