OS DESBRAVADORES
Capítulo 17
Calfilho
XVII
O “Rosamar”
parou primeiro em Quatipuru, já no litoral paraense.
Voltaram às mesmas cidades pequenas à beira-mar, pelas
quais haviam passado anteriormente.
Ali ficaram por pouco tempo, o necessário para a
rotina de carregar e descarregar mercadorias.
Ainda bem que estavam chegando a Belém.
Faustino, apesar de saber que aquilo fatalmente
acabaria por acontecer, estava começando a ficar preocupado com a ansiedade que
tomava conta de seus homens. Acostumados que estavam ao trabalho duro, estavam
há quase um mês sem nada fazer, comendo, dormindo, encerrados em suas
minúsculas cabines. Até Mário, que seria o cozinheiro da expedição, estava
chateado. Gostava de mexer com suas panelas, molhos, temperos, assados e
cozidos. Mesmo que às vezes tivesse tentado ajudar um pouco na cozinha do
navio, não era a mesma coisa para ele. Gostava de ter sua autonomia, escolher
os pratos que iriam ser servidos, caprichar nesse ou naquele, sentir a
satisfação do elogio por uma refeição bem feita.
Pedro já tivera que separar um início de briga entre
Raimundo e Venâncio, que começara por um motivo imbecil. Só porque o último
deixou cair a fotografia da namorada no chão da cabine e Raimundo assoviou,
dizendo:
– Que mulher gostosa, Venâncio. Quem é ela? Me
apresenta?
Os dois já estavam engalfinhados no chão, sendo que
Mário e o português, Manuel, tentavam separá-los. Pedro chegou, gritou com os
dois, que se afastaram, resmungando.
– Porra, o que é vocês querem? – berrou Pedro. –
Voltar pra casa? Se é assim, por que vieram? Vocês já sabiam que ia ser duro,
mas, porra, se achavam que não iam aguentar, deviam ter ficado em casa... Não
vou ficar o tempo todo servindo de babá pra marmanjo.
Pedro estava realmente furioso. Falava rapidamente, as
palavras atropelando umas às outras em sua boca. Toda vez que falava, cuspia
pelo buraco do dente que faltava na frente da boca.
– O que foi que aconteceu agora? – perguntou, com
raiva.
Ninguém respondeu. Gritou novamente:
– O que foi que aconteceu, PORRA? – agora, berrou.
Venâncio, que tinha um medo danado dele, acabou respondendo
com voz baixa, quase sussurrando:
– Ele ficou assoviando pro retrato da Francisca...
– E quem é essa porra de Francisca?
Depois de um instante de silêncio, Venâncio respondeu,
encabulado, os olhos fitando o chão:
– É minha namorada, lá de Fortaleza...
Pedro explodiu:
– E por isso vocês estavam agarrados um no outro? Puta
que o pariu, isso é coisa de viado. Em vez de estarem agarrados na tal da
Francisca, se agarraram os dois, não é? Vão acabar comendo um ao outro...
Dirigiu-se a Venâncio:
– Me dá esse retrato da Francisca aqui, que eu quero
ver.
Venâncio relutou a princípio. Pedro continuou olhando
fixamente para ele, olhar de meter medo. Venâncio acabou pegando o retrato
debaixo do travesseiro, passando-o com mãos trêmulas a Pedro. Este deu uma olhada
na fotografia, depois bateu na mesma com a mão direita, dizendo:
– E é por causa dessa merda de mulher que vocês
estavam brigando? Uma mulher magra, não tem nem carne pra se apertar...
Venâncio ficou furioso, mas engoliu em seco. Pedro
rasgou a fotografia em vários pedaços na frente deles.
– Bem, agora acabou o motivo da briga – disse.
Virou as costas e, antes de sair da cabine, concluiu:
– Se alguém não ficou satisfeito, pode vir falar
comigo, que mando de volta no primeiro porto.
Pedro relatou por alto o incidente a Faustino, mais
tarde, após o jantar. Este refletiu um pouco sobre a decisão a tomar.
Perguntou:
– O que você acha, Pedro? Mandamos os dois de volta?
– Não sei, patrão, não sei – respondeu o outro. –
Talvez a gente não ache outros pra botar no lugar.
– Mas, porra – esbravejou Faustino – eles não sabiam
que ia ser assim? A gente não explicou, não preveniu tudo antes da viagem?
Os dois sabiam que aqueles homens eram broncos, rudes,
analfabetos ou pouco mais que isso, acostumados a gastar tudo que ganhavam em
mulheres e cachaça. Mas, era essa a mão de obra que tinham que contar para uma
expedição daquelas.
Pedro indagou com cuidado, já sabendo de antemão qual
seria a resposta de Faustino:
– Patrão... posso sugerir uma coisa?
Faustino, tirando o chapéu da cabeça, batendo na aba
para tirar a poeira:
– Fala, Pedro, fala logo... se esses putos ficarem me
enchendo o saco, daqui a pouco largo todos eles aqui, vou só com você...
Pedro hesitou antes de falar. Finalmente, disse:
– E, se a gente... se a gente... desse pra eles uma rodada de cachaça de vez
em quando? E, no próximo porto, deixasse eles ir num puteiro? Mesmo que a gente
vigiasse de longe?
Faustino ouviu em silêncio a sugestão do capataz.
Pensou por um instante, depois disse:
– Não sei, Pedro, é um risco muito grande. Talvez você
tenha razão, mas pode dar tanto certo como errado. E, se eles saírem fazendo um
monte de merda por aí? Acabou a expedição, vamos ficar todos desmoralizados,
ninguém vai querer vender nem comprar mais nada da gente.
Faustino dizia aquilo porque quase toda a previsão da
produção de borracha que pretendiam extrair já estava mais ou menos apalavrada
para venda para determinados exportadores com os quais mantivera contato ainda
em Fortaleza. Se a expedição fracassasse, estaria falido. Assinara
promissórias, hipotecara as casas que comprara na Praça José de Alencar,
empenhara jóias e objetos pessoais, apostando que tudo daria certo naquela
viagem. Aquela era a sua expedição, ele era o chefe, as coisas iriam transcorrer
de acordo com sua vontade e orientação. Não seria como as outras, em que
obedecia ordens, era um simples empregado.
Finalmente, decidiu:
– Tudo bem, Pedro, vamos fazer como você quer. No
próximo porto, a gente desce com eles, fica vigiando os putos.
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