OS DESBRAVADORES
Capítulo 22
Calfilho
XXII
Às sete da manhã, no cais do porto de Belém, as
despedidas.
Todos da família de Morais compareceram: Ana, os
filhos, as empregadas. Os votos de boa sorte, sucesso na expedição, bom parto,
foram repetidos. Até o Dr. Malaquias compareceu para as últimas recomendações.
Morais, camiseta de meia, charuto na boca, deu a ordem
para ligar o motor. A gaiola gemeu, resfolegou, a hélice começou a girar.
Miranda, o auxiliar de Morais, soltou as amarras. O barco ganhou as águas do
rio, as pessoas no cais acenando com lencinhos brancos nas mãos.
Agora, sim, iria começar a grande aventura.
Faustino, em pé, na proa da “Filomena”, inspirava
profundamente aquele ar delicioso, cheiro de rio e de mato, enchendo os pulmões
com aquela sensação gostosa da qual sentia tanta falta, que lhe fazia tanto
bem.
Maria Teresa, que tinha ido verificar suas coisas em
baixo da rede onde dormiria, aproximou-se dele, apertando-lhe o braço direito.
Perguntou:
– Tá sonhando, Faustino?
Ele virou-se para a mulher, ainda com o olhar perdido:
– Estou sim, Teresa – respondeu. – Tudo isso aqui me
faz um bem danado, você nem imagina quanto. Essa mata toda em nossa volta, esse
silêncio que faz barulho...
– Silêncio que faz barulho? – interrompeu ela, rindo.
– Sim, Teresa, silêncio que faz barulho. Você não
percebe que tudo em nossa volta é tão grande, tão imenso, que parece que
estamos num poço tão fundo, de um silêncio que não tem medida? Ao mesmo tempo,
ouvimos perfeitamente o barulho que fazem os pássaros cantando, a força do
movimento do rio, do vento batendo nas árvores... você não está sentindo?
– Não sei, Faustino, não deu ainda pra perceber –
disfarçou ela, não querendo demonstrar sua falta de sensibilidade.
A gaiola avançava lentamente deixando Belém para trás
do lado esquerdo, enquanto Marajó aparecia imponente do lado direito.
Mário, o cozinheiro, começava finalmente a exercer
suas funções. O cheiro de café fresquinho sobressaía forte no interior da
gaiola, sendo todos convidados a saboreá-lo.
Foi servindo uma caneca para cada um, perguntando a
Faustino:
– Então, “seu” Faustino, o que vai querer para o
almoço?
– Peixe, Mário, peixe... Guarda a carne de vaca
salgada pra quando a gente estiver acampado, lá vai ser muito difícil
conseguir. Aqui, o melhor é comer peixe, que é mais fácil de encontrar –
respondeu Faustino.
– Tudo bem, patrão. Consegui comprar um peixe muito
bom ontem em Belém. Deixei no gelo picado, vou descongelar – retrucou Mário.
Estavam todos distribuídos em redes espalhadas pelo
convés da gaiola. Ali, não havia o conforto e a privacidade das cabines do
Rosamar, mas estavam razoavelmente bem alojados. Faustino e Maria Teresa, na
popa da embarcação, Pedro e os homens na parte da frente, após a casa da
máquina. Morais e seu ajudante, Miranda, que se revezavam na condução do barco,
dormiam um de cada vez numa rede próxima ao timão.
Na tarde do dia seguinte, já estavam no estreito de
Breves, o caminho inicial para ingressar na imensidão do Amazonas.
Faustino comentou com Morais, este com a roda do leme
nas mãos, enquanto soltava baforadas de seu charuto, dependurado no canto da
boca:
– A “Filomena” está rápida, não é, Morais? Já
avançamos bastante de ontem para hoje.
– Também, a gente viajou a noite toda passada. Quero
andar bem rápido nesse trecho inicial, sair logo do Pará, para que as
mercadorias não estraguem, não fiquem podres.
Na realidade, além das frutas e legumes, carregavam
muita coisa perecível, principalmente a carne de vaca. Por melhor que
estivessem salgadas, corriam o risco de estragar. O resto, poderiam pescar ou
caçar na região, mas, carne de vaca seria difícil conseguir.
– Onde você pretende fazer a primeira parada? –
perguntou Faustino.
– Não sei, talvez em Gurupá, o que você acha? – respondeu Morais, apontando a cidade com o
dedo num grande mapa à sua frente.
Faustino olhou na carta náutica o local apontado por
Morais. Respondeu:
– Tudo bem. Assim, a gente dá uma boa esticada antes
de entrar no Amazonas, ganha bastante tempo.
À medida que a “Filomena” avançava, aquela paisagem
extraordinária começava a se destacar. Das duas margens do estreito, a mata
cerrada, verde impenetrável. No caminho do rio por onde navegavam, desembocavam
pequenos igarapés, que aumentavam o volume d’água daquela imensidão fluvial.
Quando passavam por algum acampamento ou amontoado de casebres em alguma das
margens, dali surgiam, velozes, pequenas canoas conduzidas com golpes vigorosos
de remo por crianças, homens e mulheres, que exibiam os produtos que tinham
para vender: carne de jacaré, pirarucu, redes, rendas, vários produtos artesanais.
Eram todos moradores ribeirinhos, a maioria fruto da
mistura de branco com índio, outros índios puros, habitantes primitivos da
região.
Da “Filomena” podia-se ver a pobreza das habitações em
que viviam, meros casebres construídos rusticamente com madeira, barro socado,
palha e folha de paxiúba.
Maria Teresa estava encantada. Nunca tinha visto tanta
beleza em um só lugar. Depois das praias da costa nordestina, agora aquilo...
E, “aquele silêncio que fazia barulho”, como disse Faustino, realmente começava
a penetrar-lhe os ouvidos. Estava começando a ficar contagiada com a imensidão
de tudo aquilo, com a impressão de que a gaiola onde viajavam era um minúsculo
e ínfimo grão de areia escondido no infinito daquele horizonte tão belo.
Mas, ao mesmo tempo em que ficava extasiada com a
beleza daquela paisagem extraordinária, ficou triste ao constatar a miséria e a
pobreza de seus habitantes.
Algumas crianças, que se aproximavam do barco nas
velozes canoas, pediram para subir ao convés. Morais autorizou, sendo alguns
deles içados para dentro da “Filomena”.
Maria Teresa levou um susto, o coração apertou-se em
seu peito. Crianças, meninos e meninas esquálidas, os ossos do tórax
sobressaindo nos dorso nus, cabelos compridos, bocas quase sem dentes. As
barrigas enormes, denotando a indisfarçável presença de vermes. Sorriam
alegremente, oferecendo suas mercadorias.
Ela tentou conversar com algumas delas, mas a
comunicação foi difícil: falavam um português misturado com seus dialetos
indígenas, de pouca ou nenhuma compreensão. Somente através da linguagem dos
sinais conseguiram uma comunicação razoável. Nas canoas, algumas mulheres
tinham junto a si crianças de colo, subnutridas, também já ostentando um ventre
dilatado.
Morais, percebendo a reação espantada de Maria Teresa,
comentou:
– Pois é, Maria Teresa, esse pessoal aqui vive longe
de tudo e de todos. Nunca viram um médico, não sabem o que é vacina, nem como
tratar das “bichas” que infestam seus intestinos. São atacadas pelos mosquitos
à noite, bebem água poluída durante o dia. Infelizmente, esse é o Brasil
esquecido pelos políticos do Rio e de São Paulo. Aqui, quando conseguem chegar
à idade adulta, é de teimosos que são.
Ela não conseguiu conter as lágrimas que rolavam de
seus olhos. Faustino passou o braço sobre seu ombro, tentando confortá-la.
Maria Teresa queria ajudá-las de alguma forma, já não
suportando mais a cara de fome e o olhar de súplica que elas lhe dirigiam.
Pediu ao marido:
– Faustino, compre alguma coisa delas, só para ajudar.
Nem roupa do tamanho delas eu tenho pra dar, só tenho coisas de neném.
Foi lá no seu baú, debaixo da rede onde dormia,
abriu-o e apanhou alguns sabonetes e pasta de dente, entregando-os às crianças.
Deu-lhes também goiabada em caixinhas de madeira e queijo de coalho.
As crianças agradeceram, escancarando um sorriso
inocente nas bocas sem dentes. Faustino deu-lhes algum dinheiro, recebendo em
troca alguns arcos e flechas feitos à mão. Quando voltaram para as canoas e se
afastaram, Maria Teresa ficou olhando para elas com uma expressão de tristeza e
melancolia no olhar distante. Foi secar as lágrimas em sua rede.
Aquelas cenas se repetiriam muitas vezes durante o
percurso nos rios, típicas daquele trecho da selva amazônica. Maria Teresa a
elas foi-se acostumando, o coração endurecendo dia após dia, entrando de vez no
ambiente da exploração da borracha. Faustino, que a princípio ficou um pouco
preocupado com a reação da mulher, com o decorrer dos dias acabou se tranquilizando,
acompanhando de perto como ela se portava a cada abordagem com aquelas
crianças.
Chegaram a Gurupá no início da tarde de 30 de junho.
Encostaram no porto rudimentar, Morais foi tratar do reabastecimento da gaiola.
Comprou mais carvão para alimentar a máquina da embarcação e algum ou outro
suprimento de que necessitavam. Mário, o cozinheiro, saiu em busca de mais um
peixe grande ou uma boa carne de caça que pudessem durar pelo menos dois ou
três dias. Comprou também mais gelo picado, coisa difícil de encontrar naquela região.
Faustino e Maria Teresa desceram, foram almoçar num
pequeno botequim do vilarejo. Ele comeu carne de jacaré ensopada, acompanhada
de muita pimenta e farinha de mandioca. Ela, um guisado de capivara com batatas
cosidas. Beberam, como é lógico, suco de açaí.
Retornaram à “Filomena” antes das quatro. Morais deu
partida na embarcação, Faustino e a mulher foram fazer a sesta, descansando um
pouco do lauto almoço. Os outros homens da expedição jogavam cartas alegremente
na proa do barco.
Mário, que havia comprado dois surubins e um pirarucu,
além de carne de bode salgada, refletia no que iria fazer para o jantar.
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