domingo, outubro 16, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 19



OS DESBRAVADORES

Capítulo 19


Calfilho






XIX






Quando Jeremias autorizou, desceram à terra.
Os homens estavam escabreados, olhando com desconfiança para Pedro e Faustino, sentados na frente do bote. Daquela vez, somente Auã, o índio, não quis descer, preferindo ficar no navio. Não bebia e mulher para ele, só se fosse índia. Primeiros sinais de racismo na cultura brasileira...
Já Manuel, o português, gostava muito de uma mulatinha e não tinha nenhum preconceito quanto à cor da pele de suas eventuais parceiras. José Ribamar, o sarará, apesar de muito religioso e também não beber nada alcoólico, não rejeitava uma mulherzinha de vez em quando. Os outros, Raimundo, Venâncio, Zeferino, Mário e João Paulo, esses eram casos perdidos. Estavam ansiosos, brincavam, falando baixando entre eles, riam gostosamente, antegozando os momentos de prazer e diversão que iriam ter. Venâncio e Raimundo esqueceram suas desavenças, a briga por causa do retrato de Francisca.
Mas, olhavam todos com receio para Faustino e Pedro, sentados lá na frente, encarando-os com firmeza, cada um trazendo nas mãos um chicote de couro cru.
José Ribamar quase desistiu de descer, depois da dura advertência que Pedro fez antes de entrarem no bote. Só concordou em ir depois que os outros insistiram muito, chegando a duvidar de sua masculinidade.
“– Porra, ô sarará! Tá com medo de encarar uma xoxota?” – debochou Raimundo.
“– Já imaginou aquele negócio preto, todo cabeludo na tua cara?” – ironizou Zeferino.
Quando chegaram na praia, após o desembarque, Faustino reuniu todos e fez a última advertência:
– Bem, eu e o Pedro vamos procurar alguma coisa para comprar nas lojas daqui. Dêem uma volta por aí, tomem umas cachaças, procurem um puteiro e às três da tarde, todo mundo aqui de volta no bote. Quem não estiver aqui, vai ficar, está bem claro?
Enquanto falava, batia sugestivamente com o chicote na mão esquerda. Os homens entenderam a mensagem.
Separaram-se, indo Faustino e Pedro para um lado e os demais para o outro.
Faustino comentou com Pedro:
– Esses putos pensam que a gente não sabe onde é o puteiro que eles vão. Não sabem que a gente passou por aqui duas vezes antes.
Pedro somente esboçou um sorriso, concordando com a cabeça.
Rodaram por algumas lojas, encomendaram algumas mercadorias, encontraram Jeremias na rua, afobado como sempre.
Faustino convidou-o:
– Capitão, estamos indo almoçar. Quer nos acompanhar?
O velho marinheiro limpou o suor da testa. Respondeu:
– Tudo bem, vamos sim. Tinha ainda muita coisa para fazer, mas pode esperar. Tenho que descansar um pouco, tomar uma boa cerveja, bater um papo com meus amigos. Já escolheram o restaurante?
– Não, a gente estava procurando. O que o senhor sugere?
– Venham comigo, conheço um lugarzinho escondido que tem um pirão de peixe maravilhoso.
Seguiu na frente, Faustino e Pedro foram atrás.
Já sentados confortavelmente no local indicado por Jeremias, beliscavam uns peixinhos fritos, servidos como aperitivo, enquanto o almoço era preparado.
– Mas, capitão, diga aí, em todo porto que a gente pára o senhor sai nessa correria toda?
Jeremias virou um gole de seu copo de cachaça. Respondeu, mastigando uma manjubinha:
– Para o senhor ver, “seu” Faustino. Comandar um vapor não é só ficar dando ordens para a tripulação. Em cada porto, temos que ver o combustível mais barato, fazer um ou outro reparo, substituir um marujo que vai desembarcar ou deu problema. Parecidos com o seu problema na sua expedição para a selva.
Faustino riu. Colocou pimenta no seu pedaço de peixe. Comentou:
– Ainda bem que eu só faço expedição de vez em quando. O senhor não, vai e volta.
– E o senhor não sabe os aborrecimentos que eu tenho com a entrega das mercadorias encomendadas e com aquelas que tenho que embarcar. Tem reclamação dos dois lados, nunca ninguém está satisfeito. Às vezes dá vontade de largar tudo, afundar o navio e mandar todo o mundo pra puta que o pariu.
Faustino soltou uma gostosa gargalhada. Pedro também riu. Jeremias continuou, filosofando:
– Se toda a minha vida não estivesse enterrada no Rosamar, bem que eu fazia isso... mas, até minhas cuecas nele estão empenhadas,
Faustino continuava a rir. Observou:
– Que é isso, capitão, e o gosto pela aventura que eu senti no senhor? Acho que se ficasse um dia longe do cheiro do mar, morreria no dia seguinte... Estou enganado?
Jeremias olhou para o peixe fumegando na tigela de barro que o dono do restaurante acabara de colocar na mesa. Uma mocinha de uns treze anos de idade veio logo atrás trazendo outra tigela com o pirão.
Jeremias abaixou o nariz próximo às duas vasilhas, aspirando prazerosamente o odor da comida.
– Que delícia, “seu” Faustino. Que beleza de peixe... – comentou.
Serviram-se os três generosamente dos pratos expostos à sua frente. Faustino insistiu:
– Mas, então capitão, o senhor não me respondeu. Teria coragem de largar o mar, vender seu navio, ficar em casa dormindo na rede, tomando água de coco?
Jeremias lutava com uma espinha do seu peixe. Depois que dela se desvencilhou, respondeu:
– Não, “seu” Faustino, não teria. Como o senhor disse, morreria no dia seguinte. O mar é a minha vida, acho que fora dele seria um peixe fora d’água. Além disso, o Rosamar é como se fosse um filho meu, seria muito difícil dele me separar.
– Eu sabia, tinha certeza – retrucou Faustino. – Quem ama o que faz, só larga quando morre.
A filosofia de peixe com pirão rolava solta. Naquele ambiente tranquilo, três homens duros, acostumados a enfrentar os piores perigos, debatiam descompromissadamente alguns dos mais profundos problemas existenciais. Uma pimentinha aqui, um gole de cerveja ali, a vida humana e seus complicados enigmas eram ali dissecados sem grandes pretensões de se alcançar a verdade absoluta. Mas, uma coisa era certa: muitas dessas verdades ali eram ditas, sem que aqueles que a diziam tivessem exata consciência disso.
Após o almoço, do qual os três saíram da mesa batendo com satisfação a mão na barriga, Jeremias despediu-se de Faustino e Pedro. Foi tomar as últimas providências para o embarque, enquanto os dois seguiam em direção ao puteiro. Souberam que a dona do mesmo se chamava Selma.
Entraram, sentaram numa mesa de fundo, pediram uma cerveja. Algumas mulheres estavam espalhadas pelo recinto acanhado, sorrindo maliciosamente para os dois quando entraram. Nenhum dos homens estava à vista.
Apareceu uma mulher gorda, de uns sessenta anos aproximadamente, rebolando em direção a eles.
– Boa tarde. Meu nome é Selma, sou a dona do local. Os distintos cavalheiros desejam algo de especial? – perguntou.
Olhava fixamente para Faustino, que realmente chamava a atenção com seu bonito terno branco de linho, chapéu panamá na cabeça, botas bem lustradas de couro preto até os joelhos, rosto moreno com o bigode fininho sobre os lábios. Nem se dignou a olhar para Pedro em suas roupas de peão, sandálias surradas de couro nos pés encardidos de poeira.
Faustino virou um gole de cerveja. Respondeu:
– Obrigado, dona Selma. Estamos só olhando. A propósito, a senhora viu alguns homens de fora passar por aqui?
Ela pensou um pouco, desconfiada, antes de responder.
– Sim, eles estão nos quartos com algumas das meninas. O senhor está com eles?
– Estou sim – respondeu Faustino. – São meus empregados e estou aqui para levá-los embora. Já está na hora da gente partir para o navio.
– Ah! bom – disse ela, com uma expressão de alívio. – Agora entendi. Eles não devem demorar. Mas, se quiserem alguma menina para distraí-los enquanto esperam, à vontade.
– Mais uma vez obrigado, dona Selma.
Ela afastou-se, com os quadris balançando. Faustino perguntou a Pedro:
– Pedro, se você quiser, pega uma delas e vai tirar teu atraso. Eu espero aqui.
– Não, obrigado patrão. A Santinha não iria me perdoar se eu traísse ela com outra.
Santinha era a mulher de Pedro, muito amiga de Faustino.
– Eu não iria contar nada pra ela – disse sorrindo, enquanto despejava um pouco mais de cerveja nos copos dos dois.
– Não, patrão, mais uma vez obrigado. Se eu dou azar, pego uma doença aqui, ela corta o meu peru fora – retrucou Pedro.
Daí a uns vinte minutos os homens começaram a sair dos quartos, meros cubículos separados uns dos outros por um lençol de chita.
Uns vinham ainda meio alegres pelo efeito da cachaça ingerida, outros totalmente embriagados, mas todos contentes e satisfeitos, como se tivessem tirado um grande fardo das costas. Mário, o cozinheiro, foi o último a sair. Veio arrumando as calças na cintura e falando alto:
– Porra, minha gente. Dei três trepadas em seguida e ainda estou de pau duro.
Quando viu Faustino e Pedro no local, ficou sem graça, perdendo o rebolado.
Pedro falou alto:
– Bem, seus vagabundos, paguem à dona Selma aqui e vamos embora. O bote já está esperando.
Voltaram cantando alegremente para o navio.

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