quinta-feira, fevereiro 05, 2015

MANEL'S E OUTROS MAIS

MANEL'S E OUTROS MAIS 
Calfilho

                                   A mercearia tinha como nome de fantasia "Casa Palmyra". Ficava no lado esquerdo da rua Lemos Cunha, direção Campo de São Bento/Rua Joaquim Távora, fazia esquina com a rua Mariz e Barros. 
                                    Irapuam, meu colega de turma no Liceu de Niterói, ali me levou pela primeira vez, nos anos finais da década de 1950. Talvez 1958 ou 1959. Terminado nosso "expediente" vespertino no Grêmio Cultural Nilo Peçanha, no Liceu de Niterói, onde apresentamos, no intervalo do recreio, a "Hora do Grêmio", e tendo atendido na nossa "sede" os liceístas que ali acorriam para comprar passes de trolley ou bonde, deixávamos o colégio por volta das cinco e meia da tarde. Às vezes, íamos até a Gruta de Capri, em Icaraí, outras até o Riviera, no início da rua da Conceição, no centro da cidade. Ali tomávamos um ou dois chopes, mastigávamos uma fatia de pizza, o máximo que nossa curta mesada que recebíamos dos pais dava para gastar.
                                    Num desses finais de tarde, saindo do Liceu, Irapuam comentou:
                                     -- Olha, achei um lugar em Icaraí onde podemos "pendurar" a conta e só pagar no fim do mês, quando recebermos nossa mesada.
                                      -- Vamos lá ver -- retruquei.
                                      Pegamos um trolley, saltamos no ponto da Estácio de Sá (hoje Roberto Silveira, que, na época, era mão dupla), esquina com Mariz e Barros, descemos a última até a esquina com a rua Lemos Cunha. As portas do estabelecimento estavam abertas, exibindo uma mercearia onde algumas senhoras faziam suas compras.
                                       Guiado por Irapuam, dobrei a esquina à direita, e, já na Lemos Cunha, havia uma pequena porta  tipo "Far West", aquelas de vai- e-vem, onde, após entrarmos, vi que ali funcionava um pequeno botequim, com mesas de tampo de mármore e pés de ferro. Irapuam apresentou-me a um dos sócios do estabelecimento, o Manuel, um português forte, ostentando vastos bigodes lusitanos. Convidou-nos a sentar. Ocupamos uma das mesas vagas (existiam apenas umas quatro ou cinco no espaço diminuto), ele foi providenciar o que Irapuam havia pedido: uma porção de queijo prato cortado em cubos e uma Portuguesa bem gelada.
                                        Já na terceira cerveja e beliscando umas fatias de salaminho, Manuel apresentou-nos o outro sócio, o Fred, bem mais novo que ele, também português.
                                        Quando deixamos o estabelecimento, lá pelas sete e meia da noite, Irapuam chamou Manuel:
                                         -- "Seu" Manuel, por favor, feche aqui e coloque na minha conta.
                                         O português respondeu:
                                           -- Está certo, "seu" Irapuam, vou anotar.
                                         Confesso que aquela cena me surpreendeu. Apesar de alguns estabelecimentos de Niterói ainda utilizarem as cadernetas de compras, onde o freguês que já fosse bem conhecido podia pagar as contas no final do mês, quando eram depositados (ou pagos em espécie) os salários de cada  um, isso não era muito comum em bares e restaurantes, onde junto ao caixa se via um pequeno cartaz que dizia '' FIADO, SÓ AMANHÃ".
                                          Comentei com Irapuam:
                                          -- Legal esse lance do "seu" Manuel. Assim podemos comer e beber durante todo o mês e só pagar quando recebermos a mesada.
                                          Poucos de nós já trabalhavam naquela época, quando ainda não havíamos terminado o científico ou o clássico. Que me lembre, só o Toninho Matheus, grande amigo de peladas e carnavais do Canto do Rio (estudava no turno da noite, trabalhava durante o dia) e Silvinho Ribeiro, o nosso amigo Ximú.
                                           E, assim fizemos.
                                           Quase todos os fins de tarde, durante a semana, após atendermos o turno da tarde do Liceu, dávamos uma passada na Mercearia Palmyra, para uma Portuguesinha e um tira-gosto rápidos. Nossa intimidade com "seu" Manuel aumentava. Nem precisávamos pedir quando chegávamos, ele vinha logo com uma cerveja numa das mãos e um prato com salgadinhos na outra. E, pagávamos religiosamente, as contas penduradas quando recebíamos nossa mesada.
                                            Com o tempo, fomos chamando a Palmyra de "Manuel's, devido ainda à forte influência da cultura americana e da língua inglesa aqui no Brasil, para, finalmente, aportuguesarmos um pouco o nome do estabelecimento para "Manel's".
                                             Vários outros colegas liceistas passaram a ali frequentar, como o Josa, o Toninho, o Carrano, o Silvinho. Fora disso, nas outras mesas, sentavam-se os fregueses habituais, como o Teófilo, o Coelho e outros não tão eventuais, que, depois que nos conheceram, passaram conosco a dividir a filosofia de botequim.
                                              Foi com imensa saudade que, alguns meses atrás, comparecendo a um almoço de confraternização de antigos amigos do futebol da Praia de Icaraí, de que participei naquela época, verifiquei que o restaurante escolhido fora o Zagatti, também esquina de Lemos Cunha com Mariz e Barros, só que na esquina em diagonal, no lado direito de quem vai para a Joaquim Távora, logo após passar a Mariz e Barros.
                                             Comentei com Irapuam e Josa, também presentes ao almoço:
                                               -- Olhem lá, do outro lado da rua, o que virou o "Manel's"...
                                                E, com tristeza, olhando para aquela esquina tão querida, palco de muitos dos nossos fins de tarde daquela época que ficou marcada em nossas memórias, às vezes ponto de partida para nossas  aventuras da juventude nos bailes de sábado ou domingo, vimos que o "Manel's" transformara-se numa reles oficina mecânica, sem graça, sem vida, sem histórias para contar.
                                                 Por isso, ao ler, dias atrás, no blog do meu amigo CARRANO, uma publicação sua sobre o Manel's, não resisti. Decidi, também, dar aqui o meu testemunho sobre aquele local que nos deixou tantas e tão boas recordações...
                                                 Em outra oportunidade, tentarei contar alguma coisa mais sobre os outros botequins de Niterói, que fizeram parte da história da cidade...
                                        
                                         




5 comentários:

Jorge Carrano disse...

Pois é, Carlos Augusto, nunca tive, como você e o Irapuam, uma conta pendurada no Manel's.
Não teria como salda-la depois, ao final do mês.
A grana lá em casa era muito curta na época (agora é mais - rsrsrs).
Estive lá algumas poucas vezes e, é claro, graças a divulgação que vocês faziam do lugar.
Isto me lembra que somente muitos anos após o lançamento do filme "Casablanca" alguém teve a ideia de abrir um bar na cidade de Casablanca com o nome de "Rick's" Bar.

Jorge Carrano disse...

Amigo,
O restaurante citado não é Zanardi, e sim Zagatti.
Abraço

Calfilho disse...

Valeu, Carrano, vou fazer a correção... Fui nesse restaurante junto com a "turma da Praia de Icaraí" somente umas duas vezes, por isso não guardei o nome direito. Mas, lembro bem de onde era o Manel's...

Jorge Sader Filho disse...

Mundo pequeno! Cansei de comprar cigarros para o meu pai na "Palmira", que ficava a um quarteirão da casa onde até hoje moro.
Aos domingos, sempre trazia também uma garrafa de vinho "Nossa Adega". Acabou fechando, mas muitos anos depois.
Abração, Carlos Augusto.
Jorge

Calfilho disse...

Valeu, Jorginho, obrigado pelo comentário, um abração