segunda-feira, outubro 24, 2016

BOTAFOGO...

BOTAFOGO, a surpresa...

Calfilho




            Não pretendia fazer qualquer comentário aqui sobre o Botafogo até terminar o campeonato brasileiro deste ano... Aliás, uma das superstições botafoguenses é não elogiar muito o time porque isso pode dar azar e a época de boa maré que atravessamos atualmente pode rapidamente transformar-se em um terrível maremoto e tudo ir por água abaixo nessas últimas seis rodadas.
           De há muito se foi a época em que tínhamos um timaço, uma equipe repleta de vários craques em praticamente todas as posições. Foi a época em que nosso goleiro Manga, antes de um jogo contra o Flamengo, dizia que já podia gastar o "bicho" na véspera porque a vitória seria certa no dia seguinte.. A época em que o Botafogo era o maior fornecedor de jogadores para a seleção brasileira e rivalizava com o Santos de Pelé, Coutinho e Cia. a honra de ser considerado o melhor time do Brasil... A época em que a equipe botafoguense era requisitada para excursões em vários países do mundo...
          Desde aqueles tempos nunca mais formamos um grande time... Ficamos 21 anos sem ganhar um campeonato carioca, formamos uma equipe razoável em 1995 quando fomos campeões do Brasileiro, tivemos alguma esperança na época de Dodô e Seedorf, apenas isto. Visitamos a série B por duas vezes, voltamos para a A apenas para ser participante, terminando quase sempre em posições intermediárias, no máximo ganhando aqui e ali um decadente campeonato carioca...
        Sucessivas diretorias do clube foram fazendo-o afundar mais e mais, até chegarmos praticamente ao fundo do poço, acabando por perder nossa sede gloriosa de General Severiano...Conseguimos voltar para nossa casa com muito esforço e colaboração de abnegados botafoguenses. Mas, em campo, as equipes eram muito medíocres, muito longe da grandeza alvinegra...
         Ano passado novamente visitamos a série B do Brasileiro, tendo voltado à elite da série A neste ano de 2016, como campeões da B.
          No início do ano, formado o time, sinceramente não esperava grande coisa. Achava que nossa luta seria para não sermos rebaixados outra vez. Contrataram alguns estrangeiros de qualidade duvidosa, mesclando-os com alguns juniores e outros jogadores remanescentes da campanha da série B. Não poderíamos ir mesmo muito longe.
     Nosso técnico, Ricardo Gomes, que nos reconduziu à série A, apesar de excelente ser humano, não tinha a vibração necessária para mexer com os brios do time. Recuperando-se ainda de um violento AVC que sofrera anos antes, apenas ficava em pé, na beira do campo, sem nada dizer, sem nada falar.
       Fizemos um ridículo primeiro turno do Brasileiro, até que Ricardo recebe uma proposta do São Paulo, time também em crise. Aceitou-a e foi tentar fazer alguma coisa melhor num clube estável financeiramente e com um elenco, em tese, superior ao do Botafogo.
           Para o seu lugar, a diretoria escolheu Jair Ventura, até então um jovem auxiliar, com 35 anos de idade e que, como currículo só tinha o fato de ser filho de um dos maiores ídolos botafoguenses, o nosso Jairzinho. Apenas isso, nenhum trabalho em outro clube anterior, nada. Somente a vantagem de ter sido treinador das categorias de base do clube, conhecendo bem os jogadores que agora tentavam a sorte na equipe principal.
              E não é o que o time encheu-se de brios, passou a correr o tempo todo, disputando cada bola palmo a palmo, não considerando nenhuma delas como perdida? E os resultados começaram a aparecer... Hoje, seria o vice colocado do returno, perdendo apenas para o Palmeiras, líder absoluto. E já estamos na quinta colocação, disputando uma vaga na Libertadores.
              O time é praticamente o mesmo, já que os reforços que vieram (Camilo, Pimpão e Dudu Cearense) lá já estavam quando Ricardo Gomes ainda era o treinador.
               A presença de Jair Ventura na boca do túnel, vibrante, intenso, jogando com o time pode ter sido uma das causas do sucesso repentino. Jogador de futebol tem que ser cobrado, exigido, ameaçado de ficar na reserva, para que dê em retorno o futebol que dele é esperado.
             A equipe do Botafogo realmente surpreendeu-me. Raça, dedicação, entrega, apesar de não termos nenhum craque, nenhuma estrela de primeira grandeza.
        Compreendo bem as dificuldades que teve a diretoria para formar essa equipe e manter o pagamento dos salários em dia. Fiz parte do Conselho Deliberativo do clube quando ainda não tínhamos voltado para General Severiano. Senti de perto como as coisas do futebol eram tratadas com total amadorismo, por pessoas bem intencionadas, é certo, mas sem nenhuma experiência em um trabalho profissional de uma empresa, que é o que hoje são os clubes de futebol.
           Por isso, tiro o chapéu (apesar de não usá-lo) para o que essa diretoria e o departamento de futebol conseguiram fazer com esse nosso time, tirando realmente leite da pedra.
            Parabéns, Botafogo... rumo à Libertadores!!!!

sexta-feira, outubro 21, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 23





OS DESBRAVADORES


Capítulo 23

Calfilho





XXIII






Mais dois dias ininterruptos de viagem e ingressaram, afinal, na imensidão do rio Amazonas. Aportaram rapidamente em Prainha, ainda no Pará. Outro reabastecimento, algumas pequenas compras de víveres e seguiram novamente viagem.
A paisagem, agora, era realmente de imensidão, de deslumbramento. Às vezes, mesmo viajando pelo meio do rio-mar, não se conseguia enxergar uma das margens, tão largo era o Amazonas. Aquele monumental volume d’água às vezes dava medo, outras causava uma espécie de paralisia nas pessoas. Nas margens, árvores enormes, de mais de quinze metros de altura. Vegetação cerrada, cipós, bambus, toda espécie de plantas. Silêncio absoluto, quebrado apenas pelo roncar da máquina da “Filomena”, pelo rumorejo das águas do rio ou pelo grito estridente de um ou outro pássaro. Viram vitórias-régias, jacarés, muitos macacos pendurados nas árvores ribeirinhas, preguiças, tucanos, araras, papagaios. Pescaram várias qualidades de peixes, que eram servidos com fartura no almoço ou jantar.
Finalmente, dois outros dias de viagem e chegaram a Santarém, onde o Amazonas cor de barro recebia as águas negras e quase transparentes do Tapajós. Era o primeiro encontro das águas da região. A cidade surgia ao longe, as casas brancas com telhas vermelhas e a paisagem costumeira por trás: grandes árvores, vegetação cerrada, o verde da mata predominando sobre as outras cores.
Santarém já era uma cidade de razoável porte, sendo considerada a segunda em importância do Pará. Por ali escoava grande parte da produção de borracha, bem como da extração de madeira. Já tinha uma infraestrutura de cidade média, com agência de banco, farmácia, hospital, escola pública, hotéis. O comércio era relativamente forte, já que era grande a circulação de dinheiro proveniente da compra e venda da borracha e da madeira. Vários navios de grande calado ali já aportavam, mesmo que ao largo, pois o porto não oferecia condições para que encostassem diretamente.
Uma gaiola como a “Filomena”, entretanto, podia encostar tranquilamente no rudimentar cais de madeira. Praticamente todos foram visitar a cidade, esticando as pernas e aproveitando para esquecer um pouco a rotina de vários dias passados em navegação contínua.
Faustino continuava com o terno de linho branco e o chapelão de abas largas. Maria Teresa, entretanto, colocou umas roupas mais leves, não tão formais como os costumeiros vestidos compridos, que chegavam a cobrir os tornozelos. Já calçava também botas de cano longo, saia de tecido grosso, blusa simples de algodão. Trocou a sombrinha que usava para se proteger do sol por um chapéu de palha também de abas largas.
 Agora, as investidas dos mosquitos já eram mais frequentes e todos já protegiam a pele com óleos repelentes. Como os banhos na gaiola eram difíceis de serem tomados, aproveitavam qualquer parada como aquela para irem até um hotel e banharem-se decentemente. Os homens da expedição, exceto Faustino e Morais, tomavam banho nas próprias águas do rio.
Faustino aproveitou para ir até o banco para saber com o gerente a cotação da borracha no mercado internacional. Apesar de não ser aquele o preço cobrado na realidade nas transações de venda do ouro viscoso, quis apenas atualizar-se quanto ao valor médio da mercadoria.
O gerente do banco fez uma advertência:
– Os preços da borracha estão despencando a uma velocidade espantosa, “seu” Faustino. Depois que os ingleses conseguiram contrabandear as sementes da seringueira e começaram a plantar nas colônias deles lá na Ásia, quase toda a exploração aqui na Amazônia foi paralisada. A sua talvez seja uma das últimas. É só as árvores deles estarem crescidas e aqui vai parar tudo.
– É verdade mesmo? – perguntou Faustino. – Já tinha ouvido boatos sobre isso, mas não consegui acreditar. Pensei que haveria mercado para todo mundo.
– Nada disso, “seu” Faustino. Aqui só teve mercado bom até 1912. De lá para cá, a exploração vem caindo ano a ano e agora, quase não tem mais nada.
Faustino deu um suspiro de alívio. Comentou:
– Ainda bem que a minha produção está praticamente toda vendida antecipadamente. Até essa minha expedição foi toda financiada pelos meus compradores.
– Mas, como é que o senhor conseguiu isso? Vender tudo antecipadamente, sem saber o preço real da hora da venda?
Faustino retrucou, sem esconder uma ponta de vaidade:
– Confiança no meu trabalho, meu amigo, confiança. As pessoas sabem com quem estão lidando e a palavra de um homem de bem vale mais que tudo.
– É verdade, “seu” Faustino. Coisa rara hoje em dia, quando se dá mais valor a uma promissória, a um papel assinado.
Despediram-se e foram almoçar os três, Faustino, Maria Teresa e Morais, no restaurante do hotel em que tomaram banho.
Faustino iniciou a conversa:
– Então, Morais, está indo tudo bem, não é?
– Claro, a gente tem dado sorte. Ainda não choveu um só dia – respondeu.
 Virando-se para Maria Teresa, perguntou:
– E você, Maria Teresa, está estranhando muito? Estou gostando de ver sua coragem, quase não reclama de nada.
Faustino soltou uma gostosa gargalhada, enquanto saboreava um pedaço de carne de capivara:
– Essa aí, Morais, é ferro malhado. Enfrenta tudo com um sorriso nos lábios. Quando eu comecei a namorar com ela, pensei até que ela fosse da Paraíba.
Maria Teresa interveio:
– É claro que a gente estranha um pouco, Morais. Mas, fora os mosquitos e o enjôo que eu tive no mar, o resto está indo tudo bem. E, a mulher tem que acompanhar o marido onde ele for, não é mesmo?
Morais assentiu com a cabeça. Comentou:
– Mas, a Ana, duvido que ela tivesse coragem de me acompanhar numa viagem dessa até aqui. Não abre mão do seu conforto.
Continuaram conversando animadamente até as três da tarde.
Entre os homens, Pedro levou Raimundo, que novamente estava com problemas estomacais, até uma farmácia local, onde lhe passaram um remédio.
À tardinha partiram novamente.

quinta-feira, outubro 20, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 22



OS DESBRAVADORES

Capítulo 22

Calfilho





XXII






Às sete da manhã, no cais do porto de Belém, as despedidas.
Todos da família de Morais compareceram: Ana, os filhos, as empregadas. Os votos de boa sorte, sucesso na expedição, bom parto, foram repetidos. Até o Dr. Malaquias compareceu para as últimas recomendações.
Morais, camiseta de meia, charuto na boca, deu a ordem para ligar o motor. A gaiola gemeu, resfolegou, a hélice começou a girar. Miranda, o auxiliar de Morais, soltou as amarras. O barco ganhou as águas do rio, as pessoas no cais acenando com lencinhos brancos nas mãos.
Agora, sim, iria começar a grande aventura.
Faustino, em pé, na proa da “Filomena”, inspirava profundamente aquele ar delicioso, cheiro de rio e de mato, enchendo os pulmões com aquela sensação gostosa da qual sentia tanta falta, que lhe fazia tanto bem.
Maria Teresa, que tinha ido verificar suas coisas em baixo da rede onde dormiria, aproximou-se dele, apertando-lhe o braço direito.
Perguntou:
– Tá sonhando, Faustino?
Ele virou-se para a mulher, ainda com o olhar perdido:
– Estou sim, Teresa – respondeu. – Tudo isso aqui me faz um bem danado, você nem imagina quanto. Essa mata toda em nossa volta, esse silêncio que faz barulho...
– Silêncio que faz barulho?  – interrompeu ela, rindo.
– Sim, Teresa, silêncio que faz barulho. Você não percebe que tudo em nossa volta é tão grande, tão imenso, que parece que estamos num poço tão fundo, de um silêncio que não tem medida? Ao mesmo tempo, ouvimos perfeitamente o barulho que fazem os pássaros cantando, a força do movimento do rio, do vento batendo nas árvores... você não está sentindo?
– Não sei, Faustino, não deu ainda pra perceber – disfarçou ela, não querendo demonstrar sua falta de sensibilidade.
A gaiola avançava lentamente deixando Belém para trás do lado esquerdo, enquanto Marajó aparecia imponente do lado direito.
Mário, o cozinheiro, começava finalmente a exercer suas funções. O cheiro de café fresquinho sobressaía forte no interior da gaiola, sendo todos convidados a saboreá-lo.
Foi servindo uma caneca para cada um, perguntando a Faustino:
– Então, “seu” Faustino, o que vai querer para o almoço?
– Peixe, Mário, peixe... Guarda a carne de vaca salgada pra quando a gente estiver acampado, lá vai ser muito difícil conseguir. Aqui, o melhor é comer peixe, que é mais fácil de encontrar – respondeu Faustino.
– Tudo bem, patrão. Consegui comprar um peixe muito bom ontem em Belém. Deixei no gelo picado, vou descongelar – retrucou Mário.
Estavam todos distribuídos em redes espalhadas pelo convés da gaiola. Ali, não havia o conforto e a privacidade das cabines do Rosamar, mas estavam razoavelmente bem alojados. Faustino e Maria Teresa, na popa da embarcação, Pedro e os homens na parte da frente, após a casa da máquina. Morais e seu ajudante, Miranda, que se revezavam na condução do barco, dormiam um de cada vez numa rede próxima ao timão.
Na tarde do dia seguinte, já estavam no estreito de Breves, o caminho inicial para ingressar na imensidão do Amazonas.
Faustino comentou com Morais, este com a roda do leme nas mãos, enquanto soltava baforadas de seu charuto, dependurado no canto da boca:
– A “Filomena” está rápida, não é, Morais? Já avançamos bastante de ontem para hoje.
– Também, a gente viajou a noite toda passada. Quero andar bem rápido nesse trecho inicial, sair logo do Pará, para que as mercadorias não estraguem, não fiquem podres.
Na realidade, além das frutas e legumes, carregavam muita coisa perecível, principalmente a carne de vaca. Por melhor que estivessem salgadas, corriam o risco de estragar. O resto, poderiam pescar ou caçar na região, mas, carne de vaca seria difícil conseguir.
– Onde você pretende fazer a primeira parada? – perguntou Faustino.
– Não sei, talvez em Gurupá, o que você acha?  – respondeu Morais, apontando a cidade com o dedo num grande mapa à sua frente.
Faustino olhou na carta náutica o local apontado por Morais. Respondeu:
– Tudo bem. Assim, a gente dá uma boa esticada antes de entrar no Amazonas, ganha bastante tempo.
À medida que a “Filomena” avançava, aquela paisagem extraordinária começava a se destacar. Das duas margens do estreito, a mata cerrada, verde impenetrável. No caminho do rio por onde navegavam, desembocavam pequenos igarapés, que aumentavam o volume d’água daquela imensidão fluvial. Quando passavam por algum acampamento ou amontoado de casebres em alguma das margens, dali surgiam, velozes, pequenas canoas conduzidas com golpes vigorosos de remo por crianças, homens e mulheres, que exibiam os produtos que tinham para vender: carne de jacaré, pirarucu, redes, rendas, vários produtos artesanais.
Eram todos moradores ribeirinhos, a maioria fruto da mistura de branco com índio, outros índios puros, habitantes primitivos da região.
Da “Filomena” podia-se ver a pobreza das habitações em que viviam, meros casebres construídos rusticamente com madeira, barro socado, palha e folha de paxiúba.
Maria Teresa estava encantada. Nunca tinha visto tanta beleza em um só lugar. Depois das praias da costa nordestina, agora aquilo... E, “aquele silêncio que fazia barulho”, como disse Faustino, realmente começava a penetrar-lhe os ouvidos. Estava começando a ficar contagiada com a imensidão de tudo aquilo, com a impressão de que a gaiola onde viajavam era um minúsculo e ínfimo grão de areia escondido no infinito daquele horizonte tão belo.
Mas, ao mesmo tempo em que ficava extasiada com a beleza daquela paisagem extraordinária, ficou triste ao constatar a miséria e a pobreza de seus habitantes.
Algumas crianças, que se aproximavam do barco nas velozes canoas, pediram para subir ao convés. Morais autorizou, sendo alguns deles içados para dentro da “Filomena”.
Maria Teresa levou um susto, o coração apertou-se em seu peito. Crianças, meninos e meninas esquálidas, os ossos do tórax sobressaindo nos dorso nus, cabelos compridos, bocas quase sem dentes. As barrigas enormes, denotando a indisfarçável presença de vermes. Sorriam alegremente, oferecendo suas mercadorias.
Ela tentou conversar com algumas delas, mas a comunicação foi difícil: falavam um português misturado com seus dialetos indígenas, de pouca ou nenhuma compreensão. Somente através da linguagem dos sinais conseguiram uma comunicação razoável. Nas canoas, algumas mulheres tinham junto a si crianças de colo, subnutridas, também já ostentando um ventre dilatado.
Morais, percebendo a reação espantada de Maria Teresa, comentou:
– Pois é, Maria Teresa, esse pessoal aqui vive longe de tudo e de todos. Nunca viram um médico, não sabem o que é vacina, nem como tratar das “bichas” que infestam seus intestinos. São atacadas pelos mosquitos à noite, bebem água poluída durante o dia. Infelizmente, esse é o Brasil esquecido pelos políticos do Rio e de São Paulo. Aqui, quando conseguem chegar à idade adulta, é de teimosos que são.
Ela não conseguiu conter as lágrimas que rolavam de seus olhos. Faustino passou o braço sobre seu ombro, tentando confortá-la.
Maria Teresa queria ajudá-las de alguma forma, já não suportando mais a cara de fome e o olhar de súplica que elas lhe dirigiam. Pediu ao marido:
– Faustino, compre alguma coisa delas, só para ajudar. Nem roupa do tamanho delas eu tenho pra dar, só tenho coisas de neném.
Foi lá no seu baú, debaixo da rede onde dormia, abriu-o e apanhou alguns sabonetes e pasta de dente, entregando-os às crianças. Deu-lhes também goiabada em caixinhas de madeira e queijo de coalho.
As crianças agradeceram, escancarando um sorriso inocente nas bocas sem dentes. Faustino deu-lhes algum dinheiro, recebendo em troca alguns arcos e flechas feitos à mão. Quando voltaram para as canoas e se afastaram, Maria Teresa ficou olhando para elas com uma expressão de tristeza e melancolia no olhar distante. Foi secar as lágrimas em sua rede.
Aquelas cenas se repetiriam muitas vezes durante o percurso nos rios, típicas daquele trecho da selva amazônica. Maria Teresa a elas foi-se acostumando, o coração endurecendo dia após dia, entrando de vez no ambiente da exploração da borracha. Faustino, que a princípio ficou um pouco preocupado com a reação da mulher, com o decorrer dos dias acabou se tranquilizando, acompanhando de perto como ela se portava a cada abordagem com aquelas crianças.
Chegaram a Gurupá no início da tarde de 30 de junho. Encostaram no porto rudimentar, Morais foi tratar do reabastecimento da gaiola. Comprou mais carvão para alimentar a máquina da embarcação e algum ou outro suprimento de que necessitavam. Mário, o cozinheiro, saiu em busca de mais um peixe grande ou uma boa carne de caça que pudessem durar pelo menos dois ou três dias. Comprou também mais gelo picado, coisa difícil de encontrar naquela região.
Faustino e Maria Teresa desceram, foram almoçar num pequeno botequim do vilarejo. Ele comeu carne de jacaré ensopada, acompanhada de muita pimenta e farinha de mandioca. Ela, um guisado de capivara com batatas cosidas. Beberam, como é lógico, suco de açaí.
Retornaram à “Filomena” antes das quatro. Morais deu partida na embarcação, Faustino e a mulher foram fazer a sesta, descansando um pouco do lauto almoço. Os outros homens da expedição jogavam cartas alegremente na proa do barco.
Mário, que havia comprado dois surubins e um pirarucu, além de carne de bode salgada, refletia no que iria fazer para o jantar.

terça-feira, outubro 18, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 21



OS DESBRAVADORES

Capítulo 21

Calfilho





XXI







As águas barrentas do rio Pará já anunciavam a chegada a Belém.
Do lado direito do “Rosamar” divisava-se a costa imensa da ilha de Marajó, a terra dos búfalos brasileiros. A floresta virgem estendia-se cerrada, uniforme, até onde a vista alcançava. Do lado esquerdo, apontava ao longe a capital do Pará. Os telhados de cor vermelha contrastavam com o branco predominante do casario da cidade.
Em pé, na amurada do convés, Faustino e Maria Teresa viam a terra se aproximando lentamente. Pedro e os homens também já estavam prontos para o desembarque.
Dia 26 de junho de 1916, trinta e sete dias de viagem.
Quando o “Rosamar” finalmente desligou suas máquinas, os preparativos para deixar o navio sucederam-se rapidamente, com a movimentação frenética dos marinheiros gritando ordens, descendo e subindo cordas, escadas, mercadorias
– Capitão, então, mais uma vez muito obrigado. E bom retorno a Fortaleza – disse Faustino, apertando a mão direita de Jeremias.
– Obrigado “seu” Faustino. Boa sorte na sua expedição. Deseja algum recado para sua família em Fortaleza? – respondeu Jeremias.
– Sim, se for possível, diga às minhas irmãs e ao meu pai que chegamos bem até aqui. Vou tentar escrever para eles, mas o senhor sabe, correio aqui é artigo de luxo. O senhor sabe o endereço?
– Sei sim. O casarão da Praça José de Alencar, não é?
– Isso mesmo. E peça a eles, por favor, que avisem à família da minha mulher  – concluiu Faustino.
Jeremias fez um gesto cerimonioso, inclinando-se respeitosamente em frente a Maria Teresa.
– Boa viagem, madame, e uma boa hora – despediu-se.
Ela também fez um gesto de agradecimento com a cabeça, respondendo:
– Obrigado, capitão. Boa sorte na volta.
Faustino e Maria Teresa também se despediram de Zé Maria, repetindo-se os votos de boa sorte, boa viagem, bom retorno e bom parto.
Já em terra firme, o porto de Belém abria-se movimentado, cheio de barracas que vendiam de tudo. Principalmente, peixe e frutos do mar. Mas, também outras mercadorias, como pimenta, ervas, especiarias, legumes, frutas, roupas, peneiras, tamancos e uma infinidade de tudo que podia ser vendido. Também passarinhos em gaiolas, cobras sem dentes, pequenos animais em jaulas de madeira, araras, papagaios, etc...
Os barraqueiros e ambulantes, logo que Faustino e Maria Teresa pisaram o chão de Belém, aproximaram-se em bando, ávidos para oferecer seus produtos. Cercaram o casal elegantemente trajado, ele, com o costumeiro terno de linho branco, chapéu de aba larga na cabeça, botas de cano alto até o joelho; ela com um vestido longo que lhe cobria os sapatos, a habitual sombrinha numa das mãos para se proteger do sol. Pedro, à frente dos dois, ia afastando os insistentes vendedores, que gritavam a plenos pulmões a qualidade de seus produtos.
Mais à frente, Faustino divisou Morais, o dono da gaiola que havia contratado. Barriga volumosa, camisa aberta no peito, chapelão na cabeça grande, charuto no canto da boca, abriu um largo sorriso quando viu Faustino caminhando em sua direção.
Os dois já se conheciam das duas vezes anteriores em que Faustino fora à Amazônia, em 1909 e 1912. Fora ele quem transportara em sua rudimentar gaiola as duas expedições, nas quais Faustino era o capataz.
Abriu os braços gordos, neles enlaçando Faustino.
– Que prazer, Faustino. Vejo que ficou bom da malária...
– Graças a Deus, Morais. Quem é ruim não morre cedo – brincou.
Apontou para a mulher, apresentando-a ao dono da gaiola:
– Essa aqui é Maria Teresa, minha mulher.
Morais fez uma curvatura com a cabeça, tirando o chapéu do couro cabeludo e  apertando-lhe  a mão.
– Muito prazer, minha senhora. O Faustino já havia me falado da senhora. Vai com a gente ou vai ficar aqui em Belém?
Faustino respondeu:
– Ela vai, Morais. Está esperando o meu filho e quero ver ele nascer.
Morais franziu o cenho por um segundo, quase imperceptivelmente. Faustino notou sua preocupação:
– Já sei o que você está pensando. Selva, bichos, mosquitos, índios, falta de conforto, etc... Mas, já a preveni disso tudo e ela quis vir comigo. O que eu podia fazer? – perguntou, fingindo um ar de resignação, abrindo os braços num gesto largo.
Morais retrucou:
– Bem, ninguém melhor que você para saber o que vai ter pela frente.
Virou-se para Maria Teresa e disse:
– Dona Teresa, ninguém conhece melhor esse lugar aqui que seu marido. É querido por todo mundo, os índios o tratam com um respeito que só vendo. Enfim, se a senhora quis mesmo vir, ninguém melhor que ele para levá-la de volta sã e salva.
Faustino perguntou:
– Bem, Morais como estão com as coisas? Está tudo preparado? Ainda preciso contratar mais uns dois homens, comprar mais alguma coisa... Quero partir logo que puder.
Morais retrucou:
– Da minha parte, tudo pronto. A “Filomena” está em ponto de bala. E, já adivinhando que você ia precisar de mais gente, selecionei alguns homens antes de você chegar. Você decide quem levar.
Morais e Faustino se davam muito bem, tinham uma amizade muito forte um pelo outro. Quando Faustino pegou a malária, foi ele quem foi buscá-lo no acampamento, trazendo-o até Belém, onde lhe foram prestados os primeiros socorros. Acolheu-o em sua casa, até que chegasse um navio que pudesse transportá-lo até Fortaleza. Tratavam-se como irmãos, sem nenhuma cerimônia entre os dois, fruto da amizade que cultivaram durante todos aqueles anos.
– Obrigado, Morais, foi bom você ter feito isso, já me poupa tempo de sair procurando gente por aí.
Chamou Pedro;
– Pedro, pode embarcar nossas tralhas na “Filomena”. Depois, vai ver esses homens que o Morais arranjou. Escolhe mais dois e vamos partir, se possível amanhã cedinho.
Pedro cumprimentou Morais, seu velho conhecido das vezes anteriores em que ali estivera com Faustino.
Chamou os homens e os conduziu até a gaiola, onde começaram a embarcar os utensílios que iriam utilizar na expedição.
Faustino e Maria Teresa acompanharam Morais até a casa deste, a umas três quadras do porto. Foram caminhando, o casal de braço dado, Morais ao lado de Faustino, conversando os dois alegremente sobre episódios das expedições anteriores, relembrando fatos passados nos quais se solidificou a amizade entre ambos. A manhã estava quente, como costuma acontecer em Belém. Abafada mesmo. Entretanto, as ruas emolduradas de frondosas mangueiras, tinham a sombra destas projetada sobre as calçadas, tornando mais amena a temperatura ambiente. As calçadas e ruas coalhadas de mangas caídas pelo chão era outra das características mais marcantes da capital paraense.
– Pois veja bem, Teresa – disse Faustino. – É a esse homem aqui do lado da gente a quem você deve o fato de estar casada comigo atualmente. Se não fosse ele, eu certamente teria morrido da malária lá no meio da selva. Quando soube que eu estava doente, largou tudo que tinha que fazer por aqui e foi lá me buscar. E, aqui na casa dele, os cuidados que ele e Ana, a mulher dele, me dispensaram, foi o que realmente me salvou.
Maria Teresa ouvia tudo com admiração, imaginando como os fatos deveriam ter ocorrido e como seria sua vida naqueles próximos meses.
Morais retrucou, com modéstia:
– Nada disso, dona Teresa. Posso lhe chamar de Teresa, a senhora não se importa, não é?
Sem esperar resposta, continuou:
– Não fiz mais nada que minha obrigação. Amigos são para essas coisas e eu não me perdoaria se não tivesse partido em seu socorro. Agora, o que ele não conta é que quando eu precisei comprar um barco novo, ele me emprestou o dinheiro que ganhou com a borracha e, quando eu fui pagar, não quis receber. E, olha que não foi pouco dinheiro, não. Disse que era um presente e que se sentiria ofendido se eu insistisse em pagá-lo. Isso antes de eu socorrê-lo quando ele pegou a malária, quando nem direito ele me conhecia.
Pela primeira vez, Maria Teresa viu o marido ficar encabulado. Ele virou o rosto para o lado, sem palavras para responder na hora. Ela olhou para Faustino com admiração. Não conhecia aquele seu lado, sempre o vira como uma pessoa muito confiante em tudo que fazia, sem vacilações, sem maiores emoções. Era duro com seus homens, rigoroso demais até, achava ela. Foi duro a vida toda com as irmãs. Normalmente, aparentava ser frio, insensível, com um coração de aço. Só com ela, quando estavam a sós, permitia-se o extravasamento de algumas emoções, de momentos de carinho. Mesmo assim, muito vagamente, muito distante.
Ele, afinal, retrucou a observação de Morais, quase num tom ríspido:
– Se eu te dei o barco foi porque você mereceu – disse. – Além do mais, eu estava visando meus interesses, você é que não sabia – brincou. – Aquela tua antiga banheira ia me deixar na mão a qualquer hora e eu já adivinhava que ia pegar a malária.
Morais riu sonoramente:
– Presta bem atenção, Teresa, posso lhe chamar assim? – repetiu, esquecendo-se de que fizera a mesma pergunta momentos antes.
– É claro, “seu” Morais, o meu nome é esse mesmo – respondeu ela, rindo.
Morais continuou:
 – Esse seu marido só falta rasgar dinheiro. Quando está com o bolso cheio, joga tudo fora. Ajuda todo mundo que precisa, veja como o Pedro adora ele. Por que ele tinha necessidade de me dar um barco de presente? Podia apenas me emprestar o dinheiro, depois eu pagava... Mas, não, é mão aberta, gosta de gastar... Toma cuidado, dona Teresa, caso contrário a senhora e seu filho vão acabar na miséria – brincou.
Finalmente, chegaram à casa. Ana, a mulher de Morais, já os esperava. Abriu um largo sorriso em direção a Faustino:
– Como vai, Faustino? – cumprimentou-o efusivamente, dando-lhe um forte abraço.
Feitas as apresentações à Maria Teresa, inclusive o filho e a filha do casal, Nilson e Maria do Céu, já estavam todos confortavelmente sentados na espaçosa varanda da casa, tomando um refresco de seriguela.
Ana comentava com Maria Teresa, sentada ao seu lado:
– Você precisava ver, Teresa, o jeito que seu marido chegou aqui. Magrinho, ardendo de febre, suando em bica. Nem parecia o homenzarrão que a gente tá vendo hoje aqui.
– É, eu vi em Fortaleza quando ele estava se recuperando. Mas, acho que ele já devia estar bem melhor do que quando esteve aqui – disse Teresa.
Ficaram ali jogando conversa fora até pouco depois do meio-dia, quando a empregada avisou que o almoço estava servido.
Dirigiram-se todos até a ampla sala da residência, onde uma grande mesa retangular, com várias cadeiras em sua volta, dominava o ambiente. O chão era de tábuas enormes, as paredes decoradas com vários quadros retratando a cultura da região: búfalos de Marajó, mangueiras de Belém, as redes dos pescadores, as igrejas da cidade, o grande mercado junto ao cais, as largas ruas ou estreitas ruelas de casas antigas. Três grandes janelas, de quase três metros de altura, todas elas abertas, deixavam entrar a resplandecência da luz do sol e a brisa refrescante que amenizava o forte calor daquela hora.
Todos à mesa, atracaram com vontade o farto e variado almoço que estava servido: peixe ensopado, peixe frito, camarão pitu, carne de sol, carne de porco, galinha ao molho pardo, acompanhamentos diversos. Como sobremesa, frutas variadas, principalmente as da região, e doces caseiros de várias qualidades.
Faustino brincou:
– Vocês chamaram a cidade inteira para o almoço? Cadê eles, ainda não chegaram?
Ana ficou um pouco encabulada. Mas, logo retrucou a brincadeira:
– Você, Faustino, eu já sabia o que gosta de comer. Mas, a Teresa aqui, eu não sabia. Já imaginou se ela não gosta de peixe? Ou de galinha? Ou carne de porco? Por via das dúvidas, pedi para fazer um pouquinho de cada coisa. Assim, também, a gente pode experimentar de tudo um pouco.
Faustino continuou brincando:
– Pode deixar que eu vou experimentar mesmo – sorriu, enquanto ia colocando uma colher cheia de cada coisa em seu prato.
Virou-se para Teresa:
– E você, Teresa? Também vai experimentar um pouquinho de cada coisa? Olha, que essa comida aqui de Belém você não encontra em lugar nenhum.
Ela, timidamente:
– Só um pouquinho, Faustino. Não quero abusar.
Faustino voltou-se para Ana, ainda com a boca cheia de farinha de mandioca e pernil de porco:
– Ah! Ana, foi bom a Teresa falar em não abusar... queria te pedir um favor.
Ela olhou para ele interrogativamente. Ele continuou:
– Queria te pedir que você levasse Maria Teresa para uma consulta com aquele médico que vocês trouxeram aqui quando eu tive a malária. Não lembro mais o nome dele, qual era mesmo? Um velhinho boa praça...
– Dr. Malaquias – respondeu Ana.
Faustino prosseguiu, agora atracado numa posta de pirarucu:
– Essa talvez seja nossa última oportunidade dela ser examinada por um médico antes da gente se embrenhar na selva. Lá, só Deus vai estar do nosso lado.
– Claro, Faustino, claro. Se você preferir, peço a ele para vir aqui ou então levo ela no consultório – retrucou ela, com aquele seu sotaque nordestino.
– Se não der muito trabalho, se ele puder vir aqui, eu preferia... queria que ele me orientasse sobre a hora do parto e as medidas que devo tomar antes de chegar essa hora... lá, só vou contar com a ajuda de umas índias parteiras e mais ninguém...
– Tudo bem, mando um recado pra ele. Também acho que ele vai querer te rever, ver tua recuperação.
Depois do farto almoço, com o estômago bem cheio, Faustino e Morais foram sentar-se na varanda, tomando um licor de jenipapo e fumando seus cigarros e charutos. Ana levou Maria Teresa até seu quarto.
Disse-lhe, na porta:
– Descansa um pouco, Teresa. Vou mandar avisar o médico. Ele deve vir lá pelas três e meia, antes da chuva da tarde.
Realmente, em Belém quase sempre chove muito forte nos fins de tarde. Isso todo dia, durante o ano inteiro.
Faustino e Morais ainda estavam deitados em confortáveis redes na varanda quando a chuva caiu forte, fazendo com que mais mangas caíssem ao chão, trazendo um aroma delicioso de terra molhada.
Um homem de terno, chapéu e sapatos brancos bateu o portão de entrada da casa, subindo as escadas apressadamente. Trazia nas mãos um guarda-chuva que tinha dificuldade em fechar. Morais e Faustino se levantaram. Ele cumprimentou Morais e quando apertava a mão de Faustino, ficou olhando para ele com curiosidade.
– Eu não conheço o senhor? Sua fisionomia não me é estranha... – perguntou.
Olhava por trás de grossas lentes dos óculos que tirou para limpá-las da água da chuva.
Faustino sorriu, enquanto apertava a mão do médico:
– Acho que engordei um pouco, por isso o senhor não me reconhece. Mas, devo lhe agradecer mais uma vez: se não fosse o senhor cuidar de mim naquela ocasião, quando a malária estava brava, eu já teria morrido.
Malaquias, agora colocando novamente os óculos, reconheceu Faustino:
– “Seu” Faustino... como o senhor está diferente... graças a Deus, ficou curado, não é?
– Graças a Deus e à medicina – retrucou Faustino. – Se não fossem os seus conhecimentos, adeus...
Morais convidou o médico para entrar um pouco.
– Toma um conhaque, doutor? Por causa da chuva, pra não ficar resfriado...
– Não, obrigado, Morais. Quero ver a paciente antes – respondeu.
Morais chamou a mulher. Ana foi acordar Maria Teresa.
Ela, ainda sonolenta, veio até a sala. Ana apresentou-a ao Dr. Malaquias.
– Onde o senhor vai querer examiná-la, doutor? – Ana perguntou.
– Não sei, dona Ana, qualquer lugar serve. Que tal num quarto sossegado?
– Vou providenciar, só um minuto.
Depois da consulta, que durou uma meia hora, Malaquias voltou à sala. Dirigiu-se a Faustino:
– “Seu” Faustino, tudo bem com sua senhora. A gravidez está evoluindo normalmente, não constatei nada de anormal. Ela já está com três meses, não é?
– Acho que sim, doutor. Agora, se o senhor me permite, queria que me orientasse sobre algumas coisas que devo fazer. Não sei se o senhor sabe, mas nós vamos para a Amazônia, bem no meio da selva, e ela deve ter a criança lá. Sem médico nem ninguém capacitado a fazer o parto. Vou ter que recorrer a alguma índia parteira, mas queria que o senhor me orientasse sobre os cuidados que devo ter antes e na hora da criança nascer.
– Pois não, “seu” Faustino. Estou às suas ordens. Vou também receitar alguns medicamentos para ela tomar durante o resto da gravidez, que o senhor deve comprar aqui em Belém, pois não vai achar lá na selva – retrucou Malaquias.
– Obrigado, doutor.
Malaquias começou a esclarecer Faustino sobre os pontos mais necessários e as medidas que deveria tomar. Ficaram conversando por quase uma hora, Faustino anotando as recomendações do médico.
Terminada a consulta, os dois se levantaram. Faustino perguntou:
– Quanto lhe devo, doutor?
Malaquias sorriu.
– Nada, “seu” Faustino. Foi um prazer atendê-lo.
– Não senhor, doutor. Faço questão de pagar.
O médico olhou para Morais, olhos zombeteiros.
– Se o senhor insistir em me pagar, o Morais aqui me dá um tiro na cara. De jeito nenhum, foi um prazer.
Faustino despediu-se do médico, dando uma bronca em Morais:
– Assim, não venho mais na sua casa. Você não me deixa pagar nada, porra. Isso já é sacanagem.
– Você é meu hóspede, Faustino. Não se esqueça disso.
Ele desistiu de insistir.
– Está certo, você venceu – disse. – Mas, como eu sabia que isso ia acontecer, já me preveni e trouxe uns presentes para vocês todos. O Pedro chega daqui a pouco com eles.
 Lá pelas seis da tarde, depois que a chuva passou, Pedro e Raimundo chegaram carregados de embrulhos. Morais mandou que eles se acomodassem, serviu-lhes uma bebida, deixou-os à vontade. Chamou a mulher e os filhos. Faustino e Maria Teresa fizeram a distribuição dos presentes.
Aqueles agradecimentos de sempre:
“– Tão bonito, obrigada. Não precisava, Faustino”, agradeceu Ana a bela mantilha de renda para usar nas missas de domingo.
“– Obrigado,“seu” Faustino”, disse Nilson, o filho de Morais, exibindo o chapéu de couro e o cinturão de cangaceiro que ganhou.
Assim também agradeceram Maria do Céu e Morais. Este recebeu um belo punhal com o cabo cravejado de esmeraldas.
– As pedras vieram de Minas Gerais – disse Faustino, enquanto Morais se derramava em elogios à beleza do presente recebido.
Mais tarde, depois que Pedro fez o relatório das providências tomadas durante a tarde, dizendo a Faustino que tudo estava em ordem, os dois se despediram.
Faustino disse:
– Bem, amanhã às sete a gente parte. Previne o pessoal. Ah! outra coisa: o Morais arranjou dois homens para irem com a gente. Vê se fala com eles ainda hoje à noite, vê se servem e acomoda eles com o pessoal, se você aprovar.
– Tá certo, patrão – disse Pedro. – O resto do pessoal já tá todo mundo acomodado, é só soltar as amarras da gaiola.
Os dois, Pedro e Raimundo, depois de se despedirem dos donos da casa, retiraram-se. Morais indicou a Pedro onde encontrar os homens que arranjara.
Maria Teresa e Ana ficaram conversando um pouco mais, até às nove. Foram dormir logo em seguida. Faustino e Morais continuaram o papo até à meia-noite, molhando a língua com generosas canecas de cerveja.
Já na “Filomena”, Pedro conferiu mais uma vez se tudo estava em ordem, mercadorias e tripulação. Saiu para procurar os homens indicados por Morais. Depois que falou com eles, Marivaldo e Luiz Carlos, aprovou os dois, mandando que voltassem cedo na manhã seguinte para o embarque.
        Quando foi dormir, tinha certeza de que estava tudo pronto para a longa viagem.



segunda-feira, outubro 17, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 20



OS DESBRAVADORES

Capítulo 20

Calfilho






XX






Penúltima parada: Colares, já bem perto de Belém.
A ansiedade pela aproximação do fim da longa e cansativa viagem tomava conta de todos. Mesmo Jeremias, habituado de muito àquelas idas e vindas de Fortaleza a Belém, sua rota atual, não conseguia esconder que também estava ansioso pela chegada ao porto final. Lá, ficaria por uns dez a quinze dias, para reparos e manutenção do Rosamar, novo carregamento de mercadorias e depois o retorno à capital cearense.
Sua rotina era aquela há quase dez anos. Mas, a cada viagem que se encerrava, era invadido por uma sensação de alegria, de contentamento, da certeza do dever cumprido. Daquela vez, mesmo com todos os aborrecimentos que tivera que enfrentar, até o problema da caldeira, toda a carga fora entregue sem atraso, nada de mais grave acontecera. As reclamações de sempre, um ou outro comerciante mais chato, mas, no fim, tudo saíra bem.
Na hora do almoço, antes de atracarem, já na baía de Marajó, em frente a Colares, estavam sentados Faustino, Maria Teresa e Jeremias.
Comiam feijão de corda, jerimum, carne de sol e mandioca frita.
Faustino comentou, enquanto colocava uma concha de feijão no prato da mulher:
– Estamos chegando, não é capitão? Viagem longa, mas, graças a Deus tudo correu bem.
– Ainda bem, “seu” Faustino. Se Deus quiser, depois de amanhã, chegamos a Belém. Hoje devemos demorar um pouco mais aqui em Colares, tenho muita mercadoria para desembarcar.
Virou-se para Maria Teresa, indagando:
– E a senhora, madame? Como vai o neném? Tudo correu bem?
– Tudo bem, capitão – respondeu ela.– Pensei que fosse estranhar mais, mas só foram os primeiros dias.
– E, quantos dias vai ficar em Belém, capitão? – interveio Faustino.
– Não sei, “seu” Faustino. Talvez uns dez, quinze, vai depender da reforma do navio. Tem umas peças que já estão muito gastas, tenho que trocar. E o senhor, embarca direto pra selva ou fica alguns dias em Belém?
– Acho que logo em seguida, talvez um dia ou mais. Vai depender também do dono da gaiola que reservei. Se ele já estiver me esperando com tudo pronto, parto logo. Caso contrário, se faltar alguma coisa, espero mais um pouco. O senhor sabe como é, se eu não levar tudo que preciso, depois não consigo que ninguém me mande naquele fim de mundo.
– É verdade, o senhor tem razão. Quer saber, “seu” Faustino, admiro sua coragem. Se meter naquela selva braba, onde ninguém colocou os pés antes, é preciso ser muito macho. Chuva, sol, bichos, distância de tudo e de todos, sem ter a quem recorrer. Sem médico, sem remédio, só tendo Deus do seu lado. Realmente, é preciso muita coragem.
– Já estou acostumado, capitão – retrucou Faustino modestamente. – Não vai ser a primeira vez, sei onde vou pisar.
– Mesmo assim, não sei não. Prefiro aguentar o meu Rosamar por aqui, é mais tranquilo.
Depois do almoço, Jeremias foi até a cidade. Faustino preferiu ficar no navio, descansando um pouco. Pedro e Raimundo também desceram, foram procurar alguma coisa que valesse a pena comprar.
O Rosamar só partiu de madrugada. Finalmente, destino: Belém.
O dia inteiro seguinte foi de navegação.
À noite, Jeremias convidou Faustino e Maria Teresa para o jantar de despedida. Colocou o seu melhor uniforme de capitão: blazer azul, dragonas nos ombros, medalhas cor de ouro espalhadas por todo o peito. Faustino e a mulher também vestiram suas melhores roupas, lavadas e passadas para a ocasião. Zé Maria, o imediato, também jantou com eles.
Foi servido um pato ao molho de tucupi, para comemorar a chegada a Belém. Jeremias abriu uma garrafa de champanhe para comemorar a ocasião.
Já um pouco alcoolizado, ensaiou um pequeno discurso. Levantou-se com a taça na mão e começou:
– “Seu” Faustino, dona Maria Teresa: queiram que saibam da minha satisfação em tê-los conduzido na minha humilde embarcação. Não é todo dia que aqui recebo pessoas tão distintas e, acima de tudo, tão corajosas. Quero brindar aqui ao senhor e à senhora, exemplos vivos dos desbravadores brasileiros São pessoas como os dois que o Brasil precisa para conquistar esse nosso imenso território. Desejo aos dois e à sua expedição todo o sucesso deste mundo, que sejam felizes nesse grande empreendimento e voltem sãos e salvos à sua terra natal. E, que a criança que agora esperam nasça como exemplo dos brasileiros de coragem que os dois representam.
As taças tilintaram, todos de pé.
Faustino agradeceu, sem o tom solene do discurso:
– Obrigado, capitão, por suas palavras. Muito gentil de sua parte. Quero aproveitar a oportunidade para agradecer a forma cordial e amiga como fomos recebidos em seu navio, o que tornou a viagem muito agradável, apesar de um pouco demorada – brincou. – Tenha certeza de que guardaremos do senhor e de sua amável tripulação a melhor recordação possível e dela nos lembraremos por muito tempo. Foi esta a primeira fase de nossa expedição e só espero que as coisas daqui para frente corram tão bem como correram até aqui.
Sentaram-se todos, saboreando o delicioso jantar. Despediram-se por volta das dez da noite. Faustino levou Maria Teresa até a cabine. Disse:
– Teresa, vai acabando de arrumar as malas, faz uma conferência final para ver se não esqueceu nada. Eu vou ver como os homens estão e mandar que eles preparem a bagagem. Volto já.
Fechou a porta da cabine atrás de si, dirigindo ao alojamento dos homens. Bateu na porta da cabine de Pedro.
– Tudo bem com vocês? – perguntou, quando a porta foi aberta.
Pedro levantou-se da sua cama, que ficava na parte de baixo do beliche. Respondeu:
– Tudo, patrão. A gente já ia dormir.
– Arrumaram tudo? Conferiu o nosso material? Está tudo em ordem?
– Tudo, patrão – repetiu Pedro.
– Então, até amanhã. O capitão disse que devemos chegar por volta das dez horas. Tomem o café e depois vamos desembarcar a nossa mercadoria.
– Até amanhã – responderam os outros.
Faustino voltou para a sua cabine para dormir a última noite no Rosamar.

domingo, outubro 16, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 19



OS DESBRAVADORES

Capítulo 19


Calfilho






XIX






Quando Jeremias autorizou, desceram à terra.
Os homens estavam escabreados, olhando com desconfiança para Pedro e Faustino, sentados na frente do bote. Daquela vez, somente Auã, o índio, não quis descer, preferindo ficar no navio. Não bebia e mulher para ele, só se fosse índia. Primeiros sinais de racismo na cultura brasileira...
Já Manuel, o português, gostava muito de uma mulatinha e não tinha nenhum preconceito quanto à cor da pele de suas eventuais parceiras. José Ribamar, o sarará, apesar de muito religioso e também não beber nada alcoólico, não rejeitava uma mulherzinha de vez em quando. Os outros, Raimundo, Venâncio, Zeferino, Mário e João Paulo, esses eram casos perdidos. Estavam ansiosos, brincavam, falando baixando entre eles, riam gostosamente, antegozando os momentos de prazer e diversão que iriam ter. Venâncio e Raimundo esqueceram suas desavenças, a briga por causa do retrato de Francisca.
Mas, olhavam todos com receio para Faustino e Pedro, sentados lá na frente, encarando-os com firmeza, cada um trazendo nas mãos um chicote de couro cru.
José Ribamar quase desistiu de descer, depois da dura advertência que Pedro fez antes de entrarem no bote. Só concordou em ir depois que os outros insistiram muito, chegando a duvidar de sua masculinidade.
“– Porra, ô sarará! Tá com medo de encarar uma xoxota?” – debochou Raimundo.
“– Já imaginou aquele negócio preto, todo cabeludo na tua cara?” – ironizou Zeferino.
Quando chegaram na praia, após o desembarque, Faustino reuniu todos e fez a última advertência:
– Bem, eu e o Pedro vamos procurar alguma coisa para comprar nas lojas daqui. Dêem uma volta por aí, tomem umas cachaças, procurem um puteiro e às três da tarde, todo mundo aqui de volta no bote. Quem não estiver aqui, vai ficar, está bem claro?
Enquanto falava, batia sugestivamente com o chicote na mão esquerda. Os homens entenderam a mensagem.
Separaram-se, indo Faustino e Pedro para um lado e os demais para o outro.
Faustino comentou com Pedro:
– Esses putos pensam que a gente não sabe onde é o puteiro que eles vão. Não sabem que a gente passou por aqui duas vezes antes.
Pedro somente esboçou um sorriso, concordando com a cabeça.
Rodaram por algumas lojas, encomendaram algumas mercadorias, encontraram Jeremias na rua, afobado como sempre.
Faustino convidou-o:
– Capitão, estamos indo almoçar. Quer nos acompanhar?
O velho marinheiro limpou o suor da testa. Respondeu:
– Tudo bem, vamos sim. Tinha ainda muita coisa para fazer, mas pode esperar. Tenho que descansar um pouco, tomar uma boa cerveja, bater um papo com meus amigos. Já escolheram o restaurante?
– Não, a gente estava procurando. O que o senhor sugere?
– Venham comigo, conheço um lugarzinho escondido que tem um pirão de peixe maravilhoso.
Seguiu na frente, Faustino e Pedro foram atrás.
Já sentados confortavelmente no local indicado por Jeremias, beliscavam uns peixinhos fritos, servidos como aperitivo, enquanto o almoço era preparado.
– Mas, capitão, diga aí, em todo porto que a gente pára o senhor sai nessa correria toda?
Jeremias virou um gole de seu copo de cachaça. Respondeu, mastigando uma manjubinha:
– Para o senhor ver, “seu” Faustino. Comandar um vapor não é só ficar dando ordens para a tripulação. Em cada porto, temos que ver o combustível mais barato, fazer um ou outro reparo, substituir um marujo que vai desembarcar ou deu problema. Parecidos com o seu problema na sua expedição para a selva.
Faustino riu. Colocou pimenta no seu pedaço de peixe. Comentou:
– Ainda bem que eu só faço expedição de vez em quando. O senhor não, vai e volta.
– E o senhor não sabe os aborrecimentos que eu tenho com a entrega das mercadorias encomendadas e com aquelas que tenho que embarcar. Tem reclamação dos dois lados, nunca ninguém está satisfeito. Às vezes dá vontade de largar tudo, afundar o navio e mandar todo o mundo pra puta que o pariu.
Faustino soltou uma gostosa gargalhada. Pedro também riu. Jeremias continuou, filosofando:
– Se toda a minha vida não estivesse enterrada no Rosamar, bem que eu fazia isso... mas, até minhas cuecas nele estão empenhadas,
Faustino continuava a rir. Observou:
– Que é isso, capitão, e o gosto pela aventura que eu senti no senhor? Acho que se ficasse um dia longe do cheiro do mar, morreria no dia seguinte... Estou enganado?
Jeremias olhou para o peixe fumegando na tigela de barro que o dono do restaurante acabara de colocar na mesa. Uma mocinha de uns treze anos de idade veio logo atrás trazendo outra tigela com o pirão.
Jeremias abaixou o nariz próximo às duas vasilhas, aspirando prazerosamente o odor da comida.
– Que delícia, “seu” Faustino. Que beleza de peixe... – comentou.
Serviram-se os três generosamente dos pratos expostos à sua frente. Faustino insistiu:
– Mas, então capitão, o senhor não me respondeu. Teria coragem de largar o mar, vender seu navio, ficar em casa dormindo na rede, tomando água de coco?
Jeremias lutava com uma espinha do seu peixe. Depois que dela se desvencilhou, respondeu:
– Não, “seu” Faustino, não teria. Como o senhor disse, morreria no dia seguinte. O mar é a minha vida, acho que fora dele seria um peixe fora d’água. Além disso, o Rosamar é como se fosse um filho meu, seria muito difícil dele me separar.
– Eu sabia, tinha certeza – retrucou Faustino. – Quem ama o que faz, só larga quando morre.
A filosofia de peixe com pirão rolava solta. Naquele ambiente tranquilo, três homens duros, acostumados a enfrentar os piores perigos, debatiam descompromissadamente alguns dos mais profundos problemas existenciais. Uma pimentinha aqui, um gole de cerveja ali, a vida humana e seus complicados enigmas eram ali dissecados sem grandes pretensões de se alcançar a verdade absoluta. Mas, uma coisa era certa: muitas dessas verdades ali eram ditas, sem que aqueles que a diziam tivessem exata consciência disso.
Após o almoço, do qual os três saíram da mesa batendo com satisfação a mão na barriga, Jeremias despediu-se de Faustino e Pedro. Foi tomar as últimas providências para o embarque, enquanto os dois seguiam em direção ao puteiro. Souberam que a dona do mesmo se chamava Selma.
Entraram, sentaram numa mesa de fundo, pediram uma cerveja. Algumas mulheres estavam espalhadas pelo recinto acanhado, sorrindo maliciosamente para os dois quando entraram. Nenhum dos homens estava à vista.
Apareceu uma mulher gorda, de uns sessenta anos aproximadamente, rebolando em direção a eles.
– Boa tarde. Meu nome é Selma, sou a dona do local. Os distintos cavalheiros desejam algo de especial? – perguntou.
Olhava fixamente para Faustino, que realmente chamava a atenção com seu bonito terno branco de linho, chapéu panamá na cabeça, botas bem lustradas de couro preto até os joelhos, rosto moreno com o bigode fininho sobre os lábios. Nem se dignou a olhar para Pedro em suas roupas de peão, sandálias surradas de couro nos pés encardidos de poeira.
Faustino virou um gole de cerveja. Respondeu:
– Obrigado, dona Selma. Estamos só olhando. A propósito, a senhora viu alguns homens de fora passar por aqui?
Ela pensou um pouco, desconfiada, antes de responder.
– Sim, eles estão nos quartos com algumas das meninas. O senhor está com eles?
– Estou sim – respondeu Faustino. – São meus empregados e estou aqui para levá-los embora. Já está na hora da gente partir para o navio.
– Ah! bom – disse ela, com uma expressão de alívio. – Agora entendi. Eles não devem demorar. Mas, se quiserem alguma menina para distraí-los enquanto esperam, à vontade.
– Mais uma vez obrigado, dona Selma.
Ela afastou-se, com os quadris balançando. Faustino perguntou a Pedro:
– Pedro, se você quiser, pega uma delas e vai tirar teu atraso. Eu espero aqui.
– Não, obrigado patrão. A Santinha não iria me perdoar se eu traísse ela com outra.
Santinha era a mulher de Pedro, muito amiga de Faustino.
– Eu não iria contar nada pra ela – disse sorrindo, enquanto despejava um pouco mais de cerveja nos copos dos dois.
– Não, patrão, mais uma vez obrigado. Se eu dou azar, pego uma doença aqui, ela corta o meu peru fora – retrucou Pedro.
Daí a uns vinte minutos os homens começaram a sair dos quartos, meros cubículos separados uns dos outros por um lençol de chita.
Uns vinham ainda meio alegres pelo efeito da cachaça ingerida, outros totalmente embriagados, mas todos contentes e satisfeitos, como se tivessem tirado um grande fardo das costas. Mário, o cozinheiro, foi o último a sair. Veio arrumando as calças na cintura e falando alto:
– Porra, minha gente. Dei três trepadas em seguida e ainda estou de pau duro.
Quando viu Faustino e Pedro no local, ficou sem graça, perdendo o rebolado.
Pedro falou alto:
– Bem, seus vagabundos, paguem à dona Selma aqui e vamos embora. O bote já está esperando.
Voltaram cantando alegremente para o navio.