quarta-feira, novembro 23, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 31



OS DESBRAVADORES

Capítulo 31

Calfilho




XXXI






Faustino estava certo.
Com o passar dos dias, ainda mais depois que as índias souberam que Maria Teresa estava grávida – a barriga já começava a aumentar – elas não a deixavam ficar sozinha um só segundo.
Queriam ajudá-la a tomar banho, traziam-lhe a comida na barraca, na qual entravam sem qualquer cerimônia, a qualquer hora, sem ao menos olhar para Faustino que dormia na outra rede. Ajudavam-na a se vestir, ofereciam-lhe poções que diziam iriam fazer bem ao bebê.
O café da manhã passou a ser servido às cinco da manhã.
As índias entravam na tenda de Faustino e Maria Teresa, rindo alegremente, levando até a rede da grávida um balaio de frutas, uma xícara de café, bolo de mandioca e o que mais Mário havia acabado de preparar.
Aquela passou a ser a hora de todos acordarem no acampamento.
Em pouco tempo, Maria Teresa e seu séquito de índias já conseguiam se comunicar razoavelmente. Com as mãos, com a boca, faziam-se compreender, como dissera Faustino.
Aqueles primeiros dias de trabalho foram sem descanso, numa corrida frenética para o preparo do terreno e o início da extração do látex. Todos se movimentavam sem parar, ninguém parava para um momento de descanso, cada qual preocupado em executar suas tarefas, compenetrados, com toda a atenção fixada naquilo que tinham que fazer.
Os toqueiros, com seus facões, serras e foices, foram abrindo picadas mato adentro, conhecidas na região dos seringais como “varadouros”. Antes, iam os mateiros, que eram aqueles encarregados de selecionar as melhores áreas, onde estavam as seringueiras mais produtivas. Só depois de fixadas essas áreas, é que os toqueiros entravam em ação.
Como o pessoal de Faustino era constituído, em sua maioria, de mateiros inexperientes, ele mesmo era um daqueles que desempenhava as funções de escolher as melhores áreas. Além dele, somente Pedro e Auã tinham alguma experiência no assunto.
Partiam os três bem cedo do acampamento, acompanhados de uns quatro ou cinco homens, em direções diferentes, na tentativa de descobrir as melhores áreas de seringueiras. Ali, a qualidade e a quantidade das árvores tinham que estar conjugadas com a maior proximidade do acampamento principal, com a “colocação”, como ele era chamado pelos seringueiros. A área tinha que ser boa, produtiva, mas não podia ficar longe do ponto de partida. Caso contrário, depois de uma jornada de trabalho, não haveria tempo hábil para o retorno. Teriam, então, que dormir na selva.
Alguns dos índios de Arumã acompanhavam, divididos em grupos, os homens chefiados por Faustino. Pedro e Auã chefiavam dois outros grupos, que seguiam direções diferentes. Os índios forneciam-lhes indicações e trilhas até os seringais.
Demarcadas as áreas, retornavam eles, cansados, suados, roupas sujas de lama, suor impregnado do cheiro de mato. Aí, no dia seguinte, bastava que os toqueiros seguissem as trilhas semi-abertas pelos mateiros. Com seus instrumentos mais pesados, iam abrindo o caminho mínimo necessário para a passagem dos homens e do material que seria utilizado na extração do látex: cacimbas, carrinhos de mão, cordas, etc... Aquela rotina de homens indo e vindo, falando pouco e trabalhando muito, movimentando-se sem parar, passou a ser o dia a dia do acampamento. Fogueira sempre acesa, uma comida no fogo baixo, as vozes das pessoas sussurrando baixo, a cena só mudava quando a noite começava a cair, quando os homens, exaustos, voltavam para o acampamento.
Faustino dava ordens expressas aos toqueiros para que desbastassem somente o necessário para a passagem dos seringueiros. Detestava destruir vegetação inutilmente, defendendo com veemência a preservação da natureza. Mesmo assim, aquele pessoal ignorante cortava mais árvores que o necessário, acendia fogueiras sem utilidade, apenas para cozinhar um peixe ou um pequeno animal abatido. E, assim, a imensa floresta verde ia pouco a pouco perdendo uma parcela de sua grandiosidade. Mordida pelas beiradas, pedacinho a pedacinho.
Depois de quatro dias de trabalho duro, as áreas de extração estavam demarcadas, as trilhas para alcançá-las devidamente abertas. Agora, era só tirar o ouro viscoso das árvores, transformá-lo nas pélas, depois vendê-las ao comprador já previamente contratado. Seria trabalho demorado, suado, mas a recompensa seria farta.
Pedro, que ficava sempre próximo ao acampamento, zelando pela segurança dos que ali permaneciam, entre eles Maria Teresa, mandou que os homens derrubassem umas três árvores maiores, as quais foram transformadas em pequenas canoas, as chamadas pirogas. Assim, Mário e duas índias que passaram a ajudá-lo, saíam cedo para pescar, retornando por volta das dez horas com vários peixes nas pirogas: surubins, tucunarés, um ou outro pirarucu, se tivesse êxito o “marisco”. Naquela região, pescaria era chamada de “marisco”.
Faustino ficava o dia inteiro praticamente fora do acampamento, supervisionando o trabalho nas seis áreas escolhidas como aquelas de melhores seringueiras. Em cada uma dessas áreas, com umas vinte árvores em média cada uma, ficavam de cinco a seis homens. Um balde ou uma rudimentar cacimba era amarrado na parte inferior da árvore e, acima deles, o seringueiro fazia os sulcos em forma de um “V”. Uns seis sulcos mais ou menos. A seiva começava a escorrer lentamente dentro do recipiente e, no final do dia, este estava cheio. O seringueiro, então, lá pelas cinco da tarde, recolhia os baldes cheios de látex, que eram enfileirados numa espécie de varal de madeira.  Colocando-o sobre os ombros, dividindo o peso, ele os transportava para o acampamento. Outros faziam o transporte em carrinhos de mão, dependendo da maior ou menor facilidade de locomoção até a “colocação”.
Lá, nos barracões armados nos fundos, as duas grandes tinas de ferro, chamados de buiões, já aguardavam o material colhido durante o dia. Na parte inferior das mesmas, duas enormes fogueiras iriam defumar o látex, transformando-o nas imensas bolas de quase quarenta quilos cada uma, as pélas. Estas ficavam armazenadas nos barracões até a chegada da gaiola de Morais, que as conduziria para Belém.
Esta, a rotina da extração da borracha. Coisa rudimentar, que empregava muitos homens, exigia muito trabalho braçal, mas que, mesmo assim, dava um enorme lucro aos seus exploradores.
Foi com sua extração que Manaus tornou-se uma das mais prósperas cidades brasileiras daquela época, logo seguida de Belém, que servia de porto exportador para a mercadoria. A capital amazonense foi a primeira a ter iluminação elétrica no Brasil, assim como o bonde a trafegar em suas ruas. Também já havia água encanada e rede de esgotos. O teatro Amazonas, jóia da arquitetura, quase todo construído com material importado, como mármore de Carrara e lustres de cristal europeu, tornou-se um símbolo do fausto e riqueza da região.
Pena que, com o contrabando das sementes da “Hevea brasiliensis” pela Inglaterra, o preço internacional da borracha começou a cair vertiginosamente. Lá, nas suas colônias da Ásia, o país inglês, utilizando métodos mais modernos, começou a produzir a borracha em maior quantidade e a preço consideravelmente mais baixo.
Começou aí, infelizmente, o declínio da fase áurea da borracha no Brasil e, em consequência, a das cidades que com ela se desenvolveram rapidamente.
Faustino queria aproveitar o final daquela fase áurea. Enquanto ainda era possível...

quinta-feira, novembro 10, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 30



OS DESBRAVADORES

Capítulo 30

Calfilho






XXX





Na tarde do dia seguinte, conforme prometido, Arumã chegou. Fizeram uma festa para recepcioná-lo e aos seus bravos.
Essa fora uma tradição que Faustino aprendera nas vezes anteriores em que estivera na selva: os índios gostam de ser recebidos com festa.
Durante o dia, antes que eles chegassem, os homens haviam conseguido caçar uma enorme capivara, que, depois de limpa, foi colocada para assar por Mário. A mandioca também foi colocada no braseiro, a farofa com os miúdos do animal foi preparada, várias cestas de frutas ornamentavam a área do chão que fora limpa e que servia de mesa improvisada entre as duas fileiras de tendas.
Por volta das três da tarde já se ouvia ao longe o som dos tambores. Esse barulho foi ficando mais perto, até que lá pelas quatro horas eles irromperam na clareira. O cacique, homem alto, porte majestoso, com um belo cocar de penas de aves diversas na cabeça, vinha na frente de uns quinze homens e umas cinco mulheres aproximadamente. Os dorsos nus, vestiam eles apenas minúsculas tangas, que lhe cobriam as partes íntimas. Tanto os homens como as mulheres, já que estas desconheciam o uso do soutien para cobrir-lhes os seios, costume das mulheres das cidades ditas civilizadas.
Faustino, Pedro e os homens os aguardavam no centro do acampamento, junto às três fogueiras, já acesas. Faustino saudou Arumã com um gesto com a mão direita levantada, batendo com a mesma no peito por três vezes. Depois, abraçou calorosamente o cacique.
– Fico muito satisfeito em receber Arumã aqui no meu acampamento – disse, numa mistura de português e aruak.
– Grande chefe Fastino, amigo dos índios – retribuiu Arumã, abrindo um largo sorriso. Ele não conseguia pronunciar o “u” de Faustino, chamando-o de Fastino.
Faustino apresentou Maria Teresa:
– Esta aqui é minha mulher, Arumã. Está esperando um filho meu, que vai nascer aqui no Amazonas.
Arumã fez apenas uma reverência com a cabeça. Maria Teresa ficou com a mão estendida no ar, sem saber o que fazer, pois o cacique não a apertou, como faziam os brancos.
Faustino sussurrou em seu ouvido:
– Eles não sabem o que é cumprimentar apertando as mãos. Fazem apenas um movimento inclinando a cabeça para a frente. Retribua.
Ela retribuiu o cumprimento. Arumã voltou a abrir o sorriso, que mostrava a boca sem vários dentes na frente:
– Seja bem-vinda, grande mulher do chefe branco. Aqui com Arumã e os seus, é só mandar que a gente obedece.
– Muito obrigada, chefe Arumã – agradeceu ela timidamente. – Desculpe se eu não conheço muito bem seus costumes. Vou fazer força para aprender.
Ele riu gostosamente, soltando uma sonora gargalhada.
– Não se preocupe com isso, grande chefe branca. Nós também demoramos muito para aprender os costumes do homem branco.
Faustino mandou que os homens puxassem conversa com os outros índios, procurando deixá-los à vontade. Sentaram-se no chão, em volta da grande fogueira do centro, onde a capivara estava sendo assada. Faustino mandou Pedro e Raimundo trazerem os presentes que haviam transportado: muito remédio para doenças da selva, repelentes contra mosquitos, facas, facões, anzóis, foices, enxadas, vacinas, coisas de que realmente os índios necessitavam. Apesar de que tinham eles vivido muito bem sem nada daquilo até ali. Mas, enfim, a civilização havia chegado até eles, levando com ela as doenças e as coisas do homem branco e eles tinham que a ela se adaptar. Alguns vestidos para as mulheres, um rifle para Arumã.
As índias se acercaram de Maria Teresa. Duas delas já eram bem velhas, cabelos brancos, pele enrugada. Outras duas deviam ter por volta de quarenta anos. E, uma outra mais nova, pouco mais de trinta. Todas elas tinham os seios flácidos, caídos no peito. A não ser a mais nova, as outras quatro não tinham dentes, pelo menos os da frente.
Curiosas, passavam os dedos pelas longas tranças de Maria Teresa. Também tocavam o seu rosto branco, novidade para elas. Uma quis que ela abrisse a boca, examinando seus dentes. Riam de tudo, como se estivessem frente a frente com um brinquedo novo.
Maria Teresa mostrou-lhes algumas toalhas e guardanapos de renda, feitos à mão, produtos típicos do artesanato de Fortaleza. Elas soltaram risinhos de admiração. Uma tentou vestir a toalha, pensando que fosse um vestido. Maria Teresa não pôde conter o riso, explicando-lhes pacientemente para qual finalidade a toalha era usada, estendendo-a no chão, como se este fosse uma mesa imaginária.
Mesmo não entendendo a língua umas das outras, facilmente se entenderam pela linguagem universal dos gestos. Trocaram presentes, enormes colares feitos de pedras preciosas presenteados pelas índias; tesouras, pentes e brincos, oferecidos por Maria Teresa. Em pouco tempo, já estavam se comunicando sem maiores problemas, rindo alegremente, as índias sem parar de brincar com as tranças de Maria Teresa, coisa que, realmente, atraiu-lhes a curiosidade.
Enquanto isso, depois das saudações costumeiras, Faustino combinava com Arumã como poderiam os índios ajudar na expedição. O cacique preferiu instalar seu acampamento, sua taba, um pouco distante dali, a uns trezentos metros. Queriam ter sua privacidade, cultivar seus costumes, que nada tinham a ver com aqueles dos brancos. Estavam prontos a colaborar na extração da borracha, mediante um módico pagamento, bem menor do que aquele pago por Faustino aos homens contratados. E, vantagem maior: conheciam os caminhos da selva como ninguém, acostumados que estavam a nela se embrenhar, varando seus esconderijos mais secretos.
Aquela noite, depois de devorarem a saborosa capivara, todos no acampamento se divertiram, ouvindo e dançando sob o som dos tambores indígenas ou o violão de José Ribamar.
Por volta das onze horas, Arumã e seus bravos se retiraram, indo dormir um pouco mais longe, no local onde, no dia seguinte, ergueriam a sua taba. Estenderam esteiras de palha no chão e ali dormiram, sem medo dos mosquitos, das cobras ou de animais selvagens, coisas de que somente os brancos tinham receio.
Faustino também mandou o pessoal dormir. No dia seguinte, teriam que acordar cedo, agora realmente é que o trabalho iria começar.
Maria Teresa, encantada com a recepção das índias, estava ansiosa pelo retorno de Faustino à tenda. Quando este chegou, tirando com ar de cansado a roupa do corpo, ela perguntou:
– Faustino, pelo amor de Deus, me ensina alguma coisa da língua delas. Eu fico sem graça, elas querendo me agradar, rindo sem parar, e eu não entendendo nada do que dizem.
Ele só ria, quase gozando um pouco da aflição da mulher.
– Pode deixar, Teresa, você aprende aos poucos. Trata elas bem, seja você mesma, que logo, logo vocês vão ser unha e carne – disse, rindo, enquanto tirava com dificuldade as botas de couro dos pés cansados.

segunda-feira, novembro 07, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 28



OS DESBRAVADORES

Capítulo 28

Calfilho





XXVIII






Lá pelas quatro da tarde, finalmente chegaram.
Quase dois meses depois que deixaram Fortaleza, quando embarcaram no “Rosamar”.
Faustino não cabia em si de contentamento. Com emoção na voz, perguntou:
– Que dia é hoje do mês, Morais? Você sabe? Eu me perdi.
O dono da gaiola consultou um calendário que tinha afixado na janela em frente ao timão. Os dias passados eram marcados com um “X” grande.
– 19 de julho, Faustino – respondeu.
– Puta que o pariu – praguejou Faustino. – Dois meses só vendo água. Primeiro a salgada, agora a doce.
Antonio Ferreira avisou Morais:
– Devagar, Morais. É ali na frente, naquela pequena clareira na margem esquerda.
Já vinham navegando há horas através daqueles pequenos filetes d’água, escondidos naquele emaranhado de cipós, vegetação aquática e mata cerrada, sem que se conseguisse ver direito o céu, nem o que viria mais à frente.
Morais diminuiu ainda mais a velocidade da “Filomena”, deixando-a praticamente deslizar pelas águas calmas do igarapé. Perguntou a Antonio:
– Será se tenho profundidade para encostar na margem?
– Tem sim, já testei isso em outras vezes em que estive aqui – respondeu.
O local era maravilhoso. Faustino deliciava-se com a beleza do lugar, deixando que os pulmões se enchessem daquele ar puro, sem poluição. Não se ouvia nenhum barulho, a não ser, é claro, o cantar intermitente dos pássaros e o alvoroço dos macacos pulando de árvore em árvore, brincando alegremente naquele fim de tarde amazonense.
Maria Teresa aproximou-se de Faustino, dando-lhe o braço esquerdo.
– O que você está achando, Teresa? – perguntou ele.
– Muito lindo, Faustino. Uma paz enorme, a gente se sente dominada por esse silêncio tão profundo, que parece que engole tudo. As coisas são tão grandes: as árvores, a mata, o rio, o cheiro de umidade. Você tinha razão quando se apaixonou por tudo isso.
Morais encostou a gaiola com maestria na margem do igarapé.
Pedro foi dando as primeiras ordens aos homens para o desembarque do material que trouxeram. Faustino pôs os pés em terra firme, dando a mão a Maria Teresa para que também desembarcasse. Olhou para a pequena clareira à sua frente, pensando com seus botões como teria que aumentá-la para que comportasse todas as tendas a serem armadas.
Uma hora depois já estava tudo no chão.
Faustino perguntou a Morais e Ferreira:
– Vocês vão passar a noite com a gente ou vão retornar logo?
Morais respondeu:
– Acho melhor a gente ficar com vocês. Assim, damos uma mãozinha na arrumação das coisas. Tá de acordo, Antonio?
O outro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Então, está certo – retrucou Faustino. – Pedro, vamos arrumar as tendas para dormir em primeiro lugar. Amanhã cedo, a gente começa a aumentar a clareira, para guardar o resto das coisas.
Rapidamente, seguindo as ordens de Pedro, os homens armaram cinco grandes barracas de lona, fincando-as fixamente no solo úmido. Ficaram elas, as duas da frente, a uns dez metros da margem do igarapé, distância considerada segura por Faustino na hipótese de alguma eventual enchente. As outras três ficaram mais atrás, a uns cinco metros das duas primeiras.
Uma dessas barracas foi ocupada por Maria Teresa e Faustino, sendo a outra destinada a Morais, seu auxiliar Miranda e Antonio.
Maria Teresa começou a arrumar as coisas no interior de sua barraca. Faustino auxiliou-a a armar as duas redes de dormir, enquanto ela varria o chão de terra. As roupas de ambos ficaram guardadas dentro do baú em que vieram até ser providenciado melhor lugar para as mesmas. Foi colocada uma bacia no chão, para uma precária higiene íntima e dois pinicos junto às redes.
– Amanhã ou depois, quando a gente se acomodar melhor, vou ver se consigo ajeitar isso aqui dentro – disse Faustino. – Vou ver se te arranjo um lugar melhor para você guardar as roupas, estender uma corda para colocar alguma coisa pra secar. Hoje, ainda está tudo meio bagunçado, amanhã a gente vai ver se melhora.
– Tá certo, Faustino, amanhã a gente vê com calma.
– Vou ver também se providencio a construção de um lugar pra gente tomar banho e outro para ir no banheiro quando der dor de barriga – emendou Faustino, rindo. – Vou lá fora ver como os homens estão se virando, está bem? Você está precisando de mais alguma ajuda agora?
– Não, pode ir, eu me viro – retrucou ela.
Do lado de fora da barraca, Faustino viu que os homens estavam em frenética movimentação. Alguns deles, com seus longos facões, cortavam cipós, bambus e outras vegetações, aumentando assim rapidamente o tamanho da clareira. Outros fixavam os ferros de sustentação das outras barracas. Pedro providenciava a armação de três pequenas fogueiras entre as duas filas das tendas de lona.
Faustino perguntou a Ferreira:
– “Seu” Antonio, o senhor chegou a contatar o cacique Amurã, como eu lhe pedi?
– Contatei sim. Avisei que o senhor deveria estar aqui mais ou menos por essa época. Só não disse o dia certo, porque eu mesmo não sabia quando vocês chegariam a Parintins. Mas, deve estar aqui por perto. Ele gosta muito do senhor, sabia disso?
– Ele é muito meu amigo. Engraçado, é que eu salvei a vida dele uma vez e ele salvou a minha, pelo menos no início da doença, quando peguei a malária – retrucou Faustino.
– Como foi que o senhor salvou a vida dele? – perguntou Antonio, curioso.
– Bem, foi mordida de cobra. Um dia ele estava me ajudando juntamente com alguns da sua tribo na extração da borracha. Ele foi mordido por uma bicha daquelas venenosas e começou a gritar, sua perna a ficar roxa. Ainda bem que eu estava ali perto. Chupei todo o veneno antes que ele começasse a fazer efeito de verdade. Dei-lhe também um pouco do remédio que tinha levado comigo e ele se recuperou em dois dias. Também, o bicho é forte como um touro e precisava mais que uma cobra para derrubá-lo – relatou Faustino.
Fez uma pausa, acendendo o cigarro que acabara de enrolar. Prosseguiu:
– Quando caí doente com a malária, ele mandou buscar uma velha índia lá na aldeia dele e foi ela quem tratou de mim com suas ervas e poções até o Morais chegar com a “Filomena” e me levar para Belém. Se não fosse ela, eu certamente teria morrido.
– É aquele negócio, não é, “seu” Faustino? Aqui, nesse fim de mundo, uma mão lava a outra. Se a gente não contar uns com os outros, poucos sobreviveriam.
– Isso mesmo, “seu” Ferreira. Essa lição de solidariedade foi uma das principais coisas que a selva me ensinou.
A noite começava a cair, enchendo de mistério a atmosfera que cercava o local. Os pássaros silenciaram o seu canto, os macacos recolheram-se aos galhos das árvores, só o ruído dos grilos e outros insetos não identificados enchiam o ar.
Faustino, as botas e a roupa branca sujas de lama, recolheu-se ao interior de sua tenda. Maria Teresa, atrás de uma cortina feita com um lençol grande, fazia precariamente sua higiene pessoal, lavando as axilas e outras partes do corpo com a água da bacia.
As fogueiras, do lado de fora da barraca, iluminavam a noite escura, de um preto de breu.
Quando Maria Teresa acabou de se lavar, Faustino fez o mesmo. Tirou o chapéu, as botas, a camisa e lavou-se como podia. Se não tomou um banho completo, pelo menos tirou um pouco de suor do corpo.
– Amanhã, vou ver se providencio logo a construção do chuveiro e da latrina – disse para a mulher. – Estou sentindo o corpo todo engordurado.
– Eu também – retrucou Maria Teresa, enquanto acabava de vestir uma camisola de dormir. – Meu cabelo está que é poeira só, parece que passei uma camada de banha no corpo.
Recolheu-se à sua rede, cobrindo-a com um mosquiteiro de véu branco.
Faustino vestiu uma camisa limpa, recolocou o chapéu na cabeça.
– Vou lá fora ver como estão os homens, preparar as coisas para amanhã – disse. – Volto logo, pode dormir se quiser.
Saiu, procurou por Pedro, combinaram as providências a serem tomadas para o dia seguinte. Decidiram colocar um homem de guarda durante a madrugada, revezando-se em turnos de quatro horas. Não conheciam direito o lugar, não sabiam que perigos a noite lhes reservaria.
 Enfim, sua grande aventura, o sonho acalentado por vários anos, começava a tomar forma.
Acendeu outro cigarro, encheu antes os pulmões do ar fresco da noite úmida, deliciou-se com aquele cheiro gostoso de mato e com o ruído das águas do riacho em frente ao acampamento.
A luz bruxuleante das lamparinas acesas no interior das barracas, as vozes dos homens conversando alegremente, prontos para o trabalho do dia seguinte, compunham o cenário daquela primeira noite a ser passada na selva amazônica.
Faustino esfregou as mãos, num gesto de satisfação interior. Um largo sorriso abriu-se em sua boca, enquanto tirava outra baforada de seu cigarro.

OS DESBRAVADORES Capítulo 27



OS DESBRAVADORES

Capítulo 27

Calfilho







XXVII





Aqueles três últimos dias de viagem só fizeram aumentar a ansiedade de Faustino e de seus homens. Estavam doidos para começar a trabalhar, sentirem a seiva viscosa do látex escorrer-lhes pelas mãos.
Maria Teresa também estava curiosa para ver os trabalhos começarem. Aquilo tudo seria coisa nova para ela. Já se imaginava dormindo no interior de uma barraca, rede dependurada, chão de terra batida. E o banho, como faria para tomar banho? Seria desconfortável, não resta dúvida, mas o importante era que ela estava ali, ao lado de Faustino, apoiando-o naquele que seria o grande empreendimento de sua vida. Tinha certeza de que, apesar da gravidez, das condições precárias de higiene, alimentação, perigos da selva e tudo o mais, saberia enfrentar a situação com dignidade, cumprindo assim o seu dever de esposa. “Aquela que deve ficar sempre ao lado do marido, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nos bons e maus momentos da vida”, como dissera o padre Eustáquio quando celebrou o casamento dos dois.
Os homens comandados por Pedro, tão irritados e nervosos durante a viagem de navio, agora pareciam alegres, animados. Brincavam entre eles, cantavam, sentindo chegar a hora do trabalho duro, àquilo a que estavam acostumados, eles que ficaram praticamente sem nada fazer durante toda a viagem até ali.
Faustino e Morais conversavam junto ao leme da “Filomena”. Antonio Ferreira juntou-se a eles.
– Não vejo a hora de chegar, Morais. Foi muita água que enfrentamos, primeiro a salgada, agora a doce. Já perdi até a noção do tempo, não sei mais há quantos dias estamos viajando – comentou Faustino.
– Já estamos chegando, “seu” Faustino – disse Antonio. – Acho que hoje à tarde estamos lá.
Realmente, se Antonio não tivesse vindo com eles, teria sido difícil encontrar o local exato da gleba de terras que Faustino arrendara. Mesmo Morais, acostumado a subir e descer o Amazonas, acabaria se perdendo naquele emaranhado de pequenos igarapés, de filetes d’água nos quais bravamente a “Filomena” ousava ingressar. Onde, por vezes, os homens tinham que cortar imensos cipós para que a gaiola pudesse prosseguir seu curso. Antonio permaneceu durante aqueles dois dias de viagem ao lado de Morais, orientando-o sobre o caminho a seguir, guiando-o por invisíveis marcos que só ele conseguia divisar naquela imensidão de água, de mata, de vegetação terrestre e aquática abundantes.
A paisagem realmente era de deixar qualquer um de boca aberta, sem saber o que dizer. Enormes vitórias-régias atravessavam o caminho da “Filomena”, árvores gigantescas nas margens dos riachos, mata cerrada dos dois lados da embarcação, o alvoroço do canto dos pássaros e dos macacos pulando de galho em galho nas árvores, como se participassem de uma interminável sinfonia da qual só eles conheciam a partitura. Quase não se via o azul do céu, nem o amarelo do sol, de tão densa a vegetação sobre eles.
Aquele já era o terceiro dia de viagem desde que deixaram Parintins. Faustino já não se lembrava mais em quantos igarapés entraram, quais os caminhos por que passaram, mesmo ele que se gabava de ter excelente memória, de saber guardar na cabeça um lugar e seus detalhes desde a primeira vez que o via.
Ali, entretanto, tudo era muito grande, tão imenso, tão fantástico, que ele se sentia diminuído, pequeno, quase um grão de areia perdido na grandiosidade da selva. Procurou rabiscar um mapa do caminho trilhado, para utilizar numa emergência qualquer, caso tivesse de sair dali correndo por qualquer circunstância imprevista. Pensou na mulher no momento da criança nascer, num possível ataque de índios hostis ou de uma picada de cobra, talvez um acidente qualquer. O mapa que fez, entretanto, era apenas um arremedo da realidade, parecendo, mas não sendo o caminho verdadeiro por eles percorrido. Ali, em cada entroncamento, se a direita fosse tomada em vez da esquerda, poder-se-ia acabar a mais de 30 ou 40 kms. do local pretendido.
Morais brincou com Antonio:
– É, meu amigo, quando eu tiver que voltar aqui, você vai ter que vir comigo. Realmente, por essas bandas estou perdido.
– E o pior é que a geografia daqui muda de vez em quando. Basta uma chuva mais forte, o volume das águas do Amazonas subir mais um pouco, e uma ilha é engolida, um novo igarapé surge mata adentro. Os mapas aqui não adiantam de muita coisa. Ainda bem que eu coloquei alguns pequenos marcos aqui e ali, numa árvore, numa entrada de um riacho e é por eles que eu me guio – retrucou Antonio.
– Mas que marcos são esses? – indagou Morais. – Não tou vendo nada.
Antonio sorriu.
– Mas, eu sei onde estão, Morais. Se estivessem muito visíveis, essa terra já estava invadida e quando eu voltasse aqui, já teria gente tomado posse dela. O que não falta aqui é um monte de aventureiros, um querendo passar a perna no outro. O contrabando aqui é uma praga, principalmente de madeira de lei. Devastam tudo, em pouco tempo a Amazônia vai virar um enorme deserto. A sorte é que tem muita água nessa região, mas com o desmatamento até os rios acabam secando – respondeu.
– Bom, se você sabe o caminho é o que importa. Eu nunca me aventurei por essas bandas, navego mais é pelo Amazonas mesmo – rebateu Morais.
A “Filomena” agora tinha que navegar mais vagarosamente. Driblava os cipoais e a vegetação dos riachos, que podiam embaraçar-lhe a hélice. Pedro na frente, os homens de Faustino viajavam na proa da embarcação, grandes facões nas mãos, olhos atentos na água adiante deles, prontos para cortar um cipó ou uma planta que pudesse impedir o curso da gaiola.
Faustino fazia um comentário aqui, outro ali, apontando com a mão para um trecho qualquer do caminho, mostrando um tucano, uma arara, um mico gritando no alto de uma árvore. Estava novamente em seu ambiente, o sangue voltava a pulsar-lhe mais forte nas veias, desfrutava daquela sensação gostosa de cheiro de mato, cantar de pássaros, rumorejar do rio, coisas que tanto lhe faziam bem.
Na popa da “Filomena”, Maria Teresa conversava com seus animais, dando-lhes um pedaço de banana ou de uma outra fruta qualquer.
Lá na frente, os homens começavam a gritar e a rir ruidosamente.
– Pega, Raimundo, pega ela – gritavam alguns.
– Pega, se não ela vai fugir – diziam outros.
– Peguei, já peguei – gritou Raimundo.
Puxou para dentro da gaiola, espetada na ponta de seu enorme facão, uma cobra de uns dois metros de comprimento, que ainda se contorcia nos estertores da morte. O facão atravessava-lhe o corpo, a boca aberta, dois enormes dentes prontos para morder alguém.
Pedro gritou:
– Cuidado, Raimundo, ela pode te ferrar. Se for venenosa, pode dar adeus.
Morais, com a roda do leme nas mãos, comentou com Antonio e Faustino:
– Tá parecendo uma sucuri...
– Não sei, tá muito gorda, pode ser uma jiboia... disse Faustino.
– É, tá parecendo mais uma jiboia, aquelas bichonas que engolem um boi inteiro – comentou Antonio.
Faustino gritou para os homens:
– Cuidado com isso aí, vocês. Não vão me arranjar ideia dela morder um de vocês. Por aqui não tem hospital, não.
Os homens continuavam pulando e brincando em volta da cobra. Pareciam crianças encantadas com um brinquedo novo.
Raimundo espetou o facão no chão da gaiola, com a cobra enfiada nele. Venâncio elevou o seu facão no ar e o desceu com violência, cortando a cabeça do réptil. Os homens continuavam rindo e pulando em volta do bicho, que era cortado em sucessivas fatias. Mesmo assim, ainda se contorcia, como se não quisesse despedir da vida. Raimundo gritou para o cozinheiro:
– Mário, olhe aqui a nossa carne para o almoço. Pode colocar na panela.
Pegaram uma caçarola grande e ali depositaram os vários pedaços da cobra, afinal morta de vez.
Mário disse, pegando a panela:
– E eu sei lá como se prepara isso? Nunca fiz carne de cobra...
– Tira o couro e faz ela ensopada – disse Pedro. – Fica muito boa.
No almoço, pela primeira vez na vida, Maria Teresa comeu um gostoso ensopado de carne de cobra, acompanhado de um pirão de farinha de mandioca. Mário, com a habilidade costumeira, temperou a comida de tal forma, que ela nem parecia o que realmente era.

quinta-feira, novembro 03, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 26



OS DESBRAVADORES

Capítulo 26

Calfilho





XXVI






Faustino só acordou por volta das dez horas.
Maria Teresa, que já estava de pé há bastante tempo, vestira-se e fora até o andar inferior do hotel, onde pediu que o café da manhã fosse servido no quarto. Com a evolução da gravidez, sentia fome logo que acordava.
Tomou uma xícara de café com leite, comeu um pedaço de pão com geleia.
Faustino, quando acordou, olhou para ela, sentada numa cadeira mastigando uma banana.
– Puxa, Teresa, por que você não me acordou? – perguntou.
Ela olhou para ele fixamente. Respondeu, num tom de voz lacônico:
– Você estava dormindo tão profundamente, não quis te acordar. A que horas você voltou?
– Sei lá, já era de madrugada – respondeu, levantando-se. – Mas, acho que não era muito tarde não.
Ela sorriu interiormente. Ele pensava que ela estava dormindo quando ele entrou no quarto, mais de quatro da manhã.
– Ganhou ou perdeu? – perguntou.
– Perdi uma mixaria – respondeu ele, enquanto escovava os dentes. – Nada que vá abalar nossas finanças.
Sentou-se também numa cadeira, em frente à mesa. Colocou um pouco de café preto numa xícara. Antes, bebeu um copo de suco de mangaba.
Ela disse:
– Uma boa notícia, afinal. A chuva está parando. Falei com o Morais lá embaixo, na hora em que fui pedir o café. Ele quer partir antes do almoço.
– Ótimo – retrucou ele, levantando-se e dirigindo-se até a janela. Realmente, agora chovia fino, sem a intensidade dos dias anteriores.
Prosseguiu, voltando-se para a mulher:
– Então, vamos nos preparar. Você já tomou banho?
– Já – respondeu ela. – Já arrumei quase tudo, só falta a roupa que você dormiu.
– Então, vou tomar um banho rápido. Pede a alguém lá embaixo para vir buscar a mala.
Ele entrou no banheiro, passando-lhe a roupa de dormir, um ceroulão branco, através do vão da porta.
Ela foi procurar alguém para ajudar com a bagagem.
Por volta das onze e meia, já no saguão do hotel, Faustino despediu-se do dono do mesmo e de Florisvaldo. Pagou a conta e dirigiu-se ao cais, de braço dado com Maria Teresa, que carregava um macaquinho no ombro.
Na “Filomena”, todos já os aguardavam.
Faustino dirigiu-se a Pedro:
– Tudo certo, Pedro? Conferiu se houve algum problema com a nossa mercadoria?
– Tudo certo, patrão. Podemos ir embora.
Faustino gritou para Morais, já em seu posto de comando:
– Na hora que você quiser, Morais. Com o meu pessoal está tudo certo.
Morais deu a ordem para que fossem desamarradas as cordas que prendiam a embarcação ao cais. A “Filomena” começou a gemer, o motor a girar, a embarcação afastando-se vagarosamente do atracadouro.
Em pouco tempo já estavam novamente no meio das águas barrentas do rio-gigante. A chuva havia parado por completo, o sol voltara com sua luz resplandecente, brilhando em toda sua intensidade.
Faustino foi fazer uma conferência no seu pessoal e na mercadoria que transportava. Verificando que tudo estava em ordem, voltou para perto de Maria Teresa. Enrolou vagarosamente um cigarro entre os dedos amarelados.
Perguntou à mulher, em tom de provocação:
– Então, você não vai querer saber quanto perdi?
Ela olhou para ele, os dois olhos verdes cintilando contra a luz forte do sol. Respondeu, com voz calma:
– Não, Faustino, não vou perguntar. Você já está bem grandinho para saber controlar o seu dinheiro. Além do mais, se você mexeu no que estava separado para a expedição, você sabe bem quais são as conseqüências.
Ele riu alto. Abraçou a mulher, deu-lhe um beijo na testa.
– Por isso é que eu gosto da minha mulher. Tem total confiança no marido.
Fez uma pausa, tirando uma profunda tragada do seu cigarro. Continuou:
– Mas, fique tranquila, não perdi muito não. E não mexi no dinheiro da expedição. Desculpe ter voltado tarde para o quarto, mas é aquele negócio de jogador: a gente que está perdendo pensa sempre que vai recuperar na próxima rodada.
– Eu nem vi a hora que você voltou – mentiu ela, que estava bem acordada quando ele abriu a porta do quarto.
– Eu reparei – retrucou ele sorrindo, pois sabia que ela estava acordada quando se deitou ao seu lado. – Bem, agora vamos entrar no Amazonas. No Estado e não no rio – acrescentou, mudando de assunto.
A paisagem continuava praticamente a mesma: mata cerrada de um lado e do outro do rio, a “Filomena” vencendo metro a metro a correnteza forte, os pequenos botes dos habitantes ribeirinhos surgindo velozmente a todo instante das margens, oferecendo suas mercadorias.
Maria Teresa já comprara um papagaio, uma arara e um pequeno mico, que mantinha presos por pequenos pedaços de corrente fina junto à sua rede.
Divertia-se durante o dia, alimentando os animais e brincando com eles.
Na parte da frente da gaiola, os homens da equipe de Faustino, sentindo que o fim da longa viagem se aproximava, batucavam e cantavam alegremente.
Chegaram a Parintins dois dias depois, numa manhã quente, o sol inclemente sobre suas cabeças.
No cais, já os aguardava Antonio Ferreira, o homem contatado por Faustino e que iria mostrar-lhes a localização das terras que arrendara. Sujeito baixo, gordo, vestido com um terno branco de linho, chapelão de palha na cabeça, o que, aliás, era a moda masculina na região. Logo que a “Filomena” atracou, subiu na embarcação.
Cumprimentou Morais, que fora o intermediário entre ele e Faustino. O dono da gaiola fez as apresentações.
Os dois homens apertaram-se as mãos. Morais disse:
– Bem, agora que vocês já se conhecem, vou deixá-los a sós.
Antonio disse, olhando para Faustino:
– Se o senhor preferir, podemos conversar num local mais calmo, em terra.
Faustino concordou. Chamou Pedro e Maria Teresa, apresentando-os a Antonio. Disse:
– Pedro, Teresa, vou sair por alguns minutos com o “seu” Antonio aqui para resolvermos alguns assuntos sobre o local onde vamos explorar. Se vocês quiserem podem dar uma volta pela cidade. Devo demorar uma meia hora. Não vamos ficar muito tempo aqui, já combinei com o Morais.
Dirigindo-se a Pedro:
– Pedro, vê se os homens também querer descer um pouco, esticar as pernas, comprar alguma coisa.
Depois à mulher:
– Teresa, fique junto do Pedro, não fique sozinha nem um momento. Acho que tem umas lojas por aqui, vê se você quer comprar alguma coisa para a criança.
Afastaram-se os dois, Faustino seguindo Antonio, que se dirigiu ao restaurante do melhor hotel da cidade.
Sentaram-se em confortáveis cadeiras de palha, que rodeavam grandes mesas de madeira de lei espalhadas pelo amplo salão. Um garçom veio correndo atendê-los:
– Pois não, senhor Ferreira. O que deseja?
Antonio perguntou:
– Toma alguma coisa, “seu” Faustino?
– Uma cerveja, por favor.
O garçom afastou-se para cumprir o pedido. Voltou em seguida, com uma garrafa de cerveja e dois copos, depositando-os sobre a mesa.
Antonio despejou a bebida nos dois copos, saboreando vagarosamente o líquido amarelo e estalando a língua. Comentou:
– Nada como uma boa cerveja gelada para matar a sede nesse calor, não é?
– Verdade, “seu” Antonio, verdade – retrucou Faustino, enquanto examinava o homem.
Antonio tirou um mapa do bolso do paletó, abrindo-o sobre a mesa.
– Bem, vamos logo aos negócios. O senhor não deve querer perder mais tempo.
Faustino concordou com a cabeça.
Antonio continuou, apontando para um lugar no mapa.
– Sua gleba de terras fica aqui – mostrou com o dedo. – Fica perto de Itacoatiara... quer dizer, mais ou menos perto – disse sorrindo. – As distâncias por aqui são muito grandes, a gente nunca sabe exatamente quais são.
Faustino olhava atentamente para o local indicado por Antonio. Nas outras expedições anteriores, os locais de exploração eram mais distantes, mais perto de Manaus, bem depois de Itacoatiara.
Perguntou:
– Bem, essas terras estão livres mesmo, não é? Completamente desembaraçadas? Não quero ter problemas com ninguém depois de sentar acampamento e começar a extração da borracha.
– Pode ficar tranqüilo, “seu” Faustino. As terras estão devidamente registradas pelo proprietário que me autorizou a arrendá-las. Tenho todos os documentos comigo, o senhor pode examiná-los com calma.
Tirou um calhamaço de papéis de uma pasta surrada de couro, passando-os a Faustino.
– Tome, aqui estão. Os títulos de propriedade e a autorização para o arrendamento. O senhor não precisa ficar preocupado, o Morais me conhece há vários anos, sabe que eu já arrendei várias áreas pra outros exploradores, nunca houve nenhum problema.
Faustino examinou os documentos. Apesar de precários, todos escritos à mão, cheios de erros de português, como era comum na época, pareciam ter validade.
– Bem, parece que estão em ordem – disse Faustino, com voz firme. – Mas, se eu tiver algum problema, é com o senhor que vou me entender, com mais ninguém está claro?
Antonio respondeu:
– Pode deixar, “seu” Faustino. A responsabilidade é toda minha, pode me procurar se alguma coisa der errado. Inclusive, eu vou acompanhá-los agora na viagem até o local onde estão situadas as terras arrendadas, pode ficar tranqüilo. Vou lhes mostrar tudo.
– Então, está tudo certo. Só falta eu lhe pagar.
Tirou um maço de notas do bolso interno do paletó. Contou o dinheiro, passando-o a Antonio.
– Tome, está aqui o preço combinado. Queira conferir, por favor.
Antonio respondeu, colocando o dinheiro na pasta:
– Não é preciso, “seu” Faustino. Vê-se logo que o senhor é um homem de bem.
Pediram mais uma cerveja.
Antonio preparou um recibo, passando-o a Faustino. Este assinou uns papéis, o contrato de arrendamento.
Encerrada a transação, enquanto saboreavam a cerveja, Antonio perguntou:
– O senhor já tem comprador para a sua borracha, “seu” Faustino? Se não tiver, posso lhe arranjar alguém. Apesar do preço atualmente estar em baixa, acho que ainda consigo quem pague um valor razoável.
Faustino perguntou, curioso:
– Mas, o preço caiu tanto assim? Ouvi falar, mas não acreditei. Das vezes anteriores que estive por aqui, vendemos por um ótimo preço.
– Caiu muito, sim. Depois que os ingleses contrabandearam as sementes, por volta de 1912, a produção despencou. Eles ainda não tiveram a primeira safra, por isso aqui ainda se consegue vender alguma coisa. E, com a guerra lá na Europa, eles estão precisando cada vez mais de borracha para fabricar pneus. Mas, nem se compara com os bons tempos, quando só a gente mandava.
– É pena, lá se vai mais uma das riquezas do Brasil – comentou Faustino. – Ainda bem que eu já vendi toda a minha produção antecipadamente, lá em Fortaleza mesmo, não vou ter prejuízo. Agradeço sua oferta, mas, como lhe disse, já comecei a viagem com a borracha toda vendida. Infelizmente, essa deve ser minha última vinda para a Amazônia, pois daqui pra frente não vai mais valer à pena extrair a borracha.
– É, as riquezas vêm e vão, somem por entre os nossos dedos – filosofou Antonio, olhar triste, perdido no horizonte.
Acabaram de beber a cerveja, levantaram-se, apertaram-se as mãos, despedindo-se.
Ao sair para a rua, Faustino viu Maria Teresa acompanhada de Pedro, num armarinho ali perto.
Entrou na loja. Dirigiu-se a Pedro:
– Pedro, pode deixar que eu fico com ela. Já resolvi tudo. Se você quiser fazer alguma coisa, ficar algum tempo lá com os homens, pode ir.
– Então, está certo, patrão. Vou ver o que aqueles caboclos estão fazendo.
Faustino acercou-se de Maria Teresa, abraçando-a carinhosamente por trás. Ela enrubesceu, com vergonha da dona da loja, que sorriu amigavelmente.
Maria Teresa perguntou:
– Resolveu tudo, Faustino?
– Tudo certo, Teresa. Até agora estava com medo de não encontrar o homem aqui, foi tudo tratado por carta, nem sabia quem era ele. Só tinha as informações que o Morais me passava. Mas, graças a Deus, correu tudo bem. O Antonio me pareceu ser uma pessoa honesta, vai até nos acompanhar até as terras para me mostrar o local exato. Isso até é bom, pois nessa imensidão de mata e de água, era bem fácil eu me enganar e a gente acabar explorando a borracha na terra dos outros.
A dona da loja se intrometeu:
– O senhor me desculpe eu dar minha opinião, mas o “seu” Ferreira é uma pessoa muito bem conceituada aqui em Parintins. Todo mundo fala muito bem dele, nunca vi ninguém falar mal. Acho que o senhor não vai se arrepender, não.
Faustino olhava para a mulher, com uma expressão de curiosidade. Respondeu:
– Obrigado, minha senhora, assim fico mais sossegado.
Virou-se para Maria Teresa.
– Então, Teresa, já escolheu o que vai comprar?
– Já, Faustino. Vou levar mais fraldas, alfinetes, mais uma mamadeira. Só estou em dúvida quanto a esse conjuntinho para bebê – respondeu ela, mostrando-o ao marido. – Não sei se levo azul ou rosa, não sei se vai ser menino ou menina.
– Leva amarelo, assim não pode errar, serve para os dois – retrucou ele.
– É, você tem razão. Vou levar o amarelo – disse, dirigindo-se à dona da loja.
A mulher fez um embrulho, Maria Teresa pagou, deixando o armarinho dependurada no braço do marido. Faustino, quando passou pela tendinha onde estavam Pedro e os homens, fez-lhes um sinal com a mão direita, indicando que estavam indo em direção à “Filomena”.

terça-feira, novembro 01, 2016

OS DESBRAVADORES Capítulo 25



OS DESBRAVADORES

Capítulo 25

Calfilho




XXV






A chuva continuou com a mesma intensidade no dia seguinte.
Faustino já não aguentava de impaciência. Parecia, como bem observou Maria Teresa, uma fera enjaulada, andando nervosamente de um lado para outro, sem saber que decisão tomar.
Sabia que era impossível seguir viagem com aquelas condições de tempo. Já eram famosas as histórias de gaiolas que afundavam no Amazonas em dias como aquele, não conseguindo vencer a fúria das águas revoltas do rio-gigante.
E, ficar ali parado representaria prejuízo na certa. Alguns víveres poderiam apodrecer, o prazo para entrega da primeira carga de borracha iria atrasar, os fretes já marcados teriam que ser reformulados com conseqüentes multas, etc..., etc...
À noite, já não suportando mais aquela chuva que não parava, resolveu aceitar um convite de madeireiros e gente de dinheiro da cidade para um joguinho de pôquer.
Antes do casamento, havia prometido a Maria Teresa que não jogaria mais, pelo menos até voltarem a Fortaleza. Ela já tinha ouvido vários comentários de como ele fizera fortuna nas vezes anteriores em que fora a Amazônia e perdera quase tudo nas mesas de jogo. Ele, que pretendia realmente mudar de vida com o casamento, fez-lhe a promessa.
Ainda bem que quando um dos madeireiros foi convidá-lo para uma rodada de pôquer à noite, ela estava ao seu lado.
Estavam sentados nas mesmas cadeiras de palha da tarde anterior. Vigiavam a chuva que continuava caindo sem cessar à sua frente.
O homem aproximou-se, tirou o chapéu e falou respeitosamente:
– Meu senhor, minha senhora, boa tarde. Meu nome é Florisvaldo, sou morador da cidade.
Faustino retribuiu o cumprimento com a cabeça. Ficou olhando interrogativamente para o homem. Este continuou:
– Soube que o senhor é um grande jogador de pôquer. Como vai ser difícil prosseguir viagem antes desta noite, vim convidá-lo para uma mesa de jogo mais tarde.
Faustino continuou fitando o homem. Seus olhos brilharam por um instante. Olhou rapidamente para Maria Teresa antes de responder:
– Não, obrigado, meu amigo. Já estou afastado do jogo há muito tempo, estou meio enferrujado...
Maria Teresa interveio:
– Vai, Faustino, aceita o convite. Talvez isto te faça bem, te acalme um pouco.
Ele perguntou:
– Você tem certeza, Teresa? E a promessa que eu te fiz?
– Faz de conta que eu não sei de nada. Mas, olha, tem um limite, ouviu? 
Ele levantou-se rapidamente, deu um beijo na testa da mulher. Virou-se para Florisvaldo:
– Então está bem, meu amigo – disse, estalando os dedos de satisfação. – Vai ser bom desenferrujar um pouco os ossos da mão. A que horas começamos?
– Logo depois do jantar, lá pelas nove, está bem para o senhor?
– Perfeitamente, estarei à espera.
O largo sorriso voltou a brilhar-lhe nos lábios.
Foi tomar um longo banho de água quente, numa banheira de porcelana que havia em seu quarto. Maria Teresa também tomou um banho depois do marido, enquanto este se vestia com apuro.
Às sete da noite desceram para o salão de jantar.
Comeram vagarosamente, acompanhados de Morais. Faustino já estava descontraído, rindo alegremente, contando piadas, sendo todo gentilezas com a mulher. Às nove em ponto, quando saboreavam a sobremesa de doces de frutas variadas, Florisvaldo entrou no salão. Cumprimentou os três e disse:
– “Seu” Faustino, estamos ao seu dispor. Quando quiser, podemos ir. Mas, acabe antes sua sobremesa.
Faustino convidou-o a sentar-se e também experimentar um pouco do prato de doces.
Depois que acabaram, pediu licença e acompanhou Maria Teresa até o quarto.
Na porta, despediu-se:
– Até já, minha querida. Prometo que não volto muito tarde.
Desceu as escadas e acompanhou Florisvaldo até o salão de jogos, que ficava nos fundos do próprio hotel, num ambiente reservado.
A chuva lá fora continuava caindo. Forte, sem cessar.