domingo, agosto 20, 2017

NOEL, O GÊNIO, MAIOR DE TODOS...

NOEL, O GÊNIO, MAIOR DE TODOS...

Calfilho





NOEL, O GÊNIO, MAIOR DE TODOS...


Calfilho


           Já ouvi alguém dizer que em futebol e música é perda de tempo discutir... cada um tem sua opinião, dela não abre mão e, por mais que discutam, que debatam, não vão chegar a nenhuma conclusão.. cada um continuará torcendo por seu time preferido e permanecerá fiel ao  estilo musical que elegeu como o seu predileto...
         Não vou entrar nessa discussão... No futebol, sou Botafogo, mesmo que xingue o time em suas más atuações  ou o elogie quando joga bem...
         Em matéria musical, permito-me fazer algumas observações...
         Nunca fui fanático por música, seja ela qual for... admiro, mas não me empolgo com a música clássica... conheço muito pouca coisa de Mozart, Chopin, Bethoven, Strauss ou outros gênios desse ramo musical...
           Quando criança, às vezes ouvia sem entender direito, meu pai cantarolar “O orvalho vem caindo, vem molhar o chapéu...”, ou minha mãe cantar uma música ou outra de sua cantora preferida, Carmem Miranda... Explica-se: ela, ainda solteira, fazia parte de um coro musical que acompanhava a cantora portuguesa e outros astros musicais da época (década de 30) nos famosos programas radiofônicos da Radio Nacional... Aliás, foi no intervalo de um desses programas que ela conheceu meu pai, que ali fora até por acaso...
         No início da década de 50 do século passado, passei a frequentar os cinemas de Niterói (Rink, Imperial, Odeon, Eden) e neles assisti alguns filmes brasileiros, as antigas “chanchadas”, sempre lançadas na época do Carnaval, onde eram cantadas várias marchinhas. Lembro-me bem de “Ai, ai, brotinho (Francisco Carlos),”Não quero broto, não quero, não quero, não” (acho que Jorge Goulart), “Sassaricando” (Virginia Lane), “Tomara que chova” (Emilinha Borba), além de alguns sambas que ficaram famosos, como “Lata d’água na cabeça” (Marlene), “Minha embaixada chegou”. Coloquei apenas o início da letra das composições, pois nem me lembro do nome real das mesmas.
           Comecei também a ouvir alguns programas de rádio e assistir outros na iniciante televisão brasileira, a TV-Tupi... Havia o Circo do Carequinha, o Clube do Guri... Nesse último, abrindo o programa, cantava uma jovem de pouco menos de 20 anos de idade... Marisa... Morena muito bonitinha, olhos verdes muito penetrantes, voz melodiosa e afinada... Foi uma das primeiras paixões do menino com dez anos de idade... Muito tempo depois, mais de trinta anos, conheci-a pessoalmente cantando numa cervejaria de Copacabana, a Bierklause.. Bem mais rechonchuda, os olhos já um pouco cansados, mas a voz clara e nítida como a ouvira cantar pela primeira vez... agora era  “Marisa, a gata mansa”... Conversamos um pouco entre duas de suas músicas e relembrei-lhe a música com que ela abria o programa na TV-Tupi:
“O que é, o que é?
“Adivinhe, meu amor,
“Trabalha, como um relógio,
“Não tem corda, nem motor
“Marca as horas de ventura
“Marca as horas de amargor
“Não há dinheiro que pague
“Nem se bota no penhor”...
          Ela olhou-me surpresa, olhar nostálgico, um pouco triste, como se lembrasse de um tempo que não mais poderia voltar.
          Comentou, com aquela voz de menina, quase infantil, que usava quando falava, bem diferente daquela outra possante e vigorosa que utilizava ao cantar:
          - Mas, como você lembra disso? Faz tanto tempo...
           A década de 50, no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, foi a época do samba canção, o auge de Dick Farney, Lucio Alves, Tito Madi, Maysa, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Dóris Monteiro, Nelson Gonçalves e tantos outros... Com a morte de Francisco Alves, em 1953, encerrava-se um estilo musical, o de cantores de voz possante, tipo tenor de ópera, o cantor de serenatas, como o próprio Chico Alves, Vicente Celestino, mesmo Carlos Galhardo, Gilberto Alves, Sílvio Caldas... Nessa década, a de 50, prevalecia a música “dor de cotovelo”, música de fossa, cantada baixinho, ao pé do ouvido, num canto de bar, junto a um piano...
         A juventude brasileira, nessa década, foi muito influenciada pela música americana da época, principalmente o novo ritmo, alucinante, que surgiu lá por 1953, com Bill Halley e seus cometas: o rockn’roll. Foi a década de Elvis Presley, Little Richards, Neil Sedaka. Mas, também ouvíamos muitas canções românticas americanas, cantadas por Frank Sinatra, Nat King Cole, The Platters...
         Confesso que nunca fiquei empolgado com nenhuma delas, nem as brasileiras, nem as americanas. Ouvia muito todas elas, até dançava várias, pois eram os discos que tínhamos na época e que tocavam em nossas festinhas, em nossos bailinhos em casas de colegas... Mas, também, acompanhando meu amigo Campista, fanático por escolas de samba, subi alguns morros de Niterói, para assistir uma sessão de partido alto, tocar frigideira ou tamborim... Os desfiles das escolas nos Carnavais do Rio e Niterói me atraíam muito... Assisti vários deles ao vivo da janela do meu apartamento na Amaral Peixoto, ou pela televisão...
          No final dessa década, início da de 60, surge a bossa nova.
           Veio com “Chega de saudade”, interpretada por João Gilberto e, como um furacão, o ritmo tomou conta do país. “Garota de Ipanema”, “Desafinado”, “Insensatez” eram tocadas nas rádios e na televisão, dia e noite. Em Copacabana, havia uma pequena travessa, que começa na Rua Duvivier e não tem saída para outra rua, depois chamada de “Beco das Garrafas”, onde pontificavam dois pequenos “inferninhos”, chamados “Bottles” e “Little Club”, onde cantavam e tocavam Sérgio Mendes, Tamba Trio, Nara Leão, Elis Regina, Wilson Simonal e tantos outros... Cheguei a conhecer os dois...
         Também não fiquei empolgado com o novo ritmo musical, apesar de inovador e muito bonito. Os ruidosos e espetaculosos “Festivais da Canção” realizados no Maracanãzinho, talvez tivessem atrapalhado um pouco o desenvolvimento da bossa nova. Com ela rivalizaram, lançando músicas totalmente desconhecidas, com letras difíceis de entender, com a melodia parecida mas não sendo a mesma do movimento original.
        Mas, a bossa nova firmou-se como gênero musical do Brasil, ganhando fama internacional, em especial com um álbum lançado nos Estados Unidos, cujo título é “Stan Getzz e João Gilberto”, onde os dois interpretam várias músicas do movimento, algumas delas cantadas pela então mulher de João, Astrud Gilberto.
       Também a apresentação conjunta de Frank Sinatra e Antonio Carlos Jobim, cantando “Garota de Ipanema” em dueto, no programa do americano na televisão, ajudou e muito a divulgar o novo ritmo musical.
x.x.x.x.x

          Na verdade, não me recordo a data exata em que fui apresentado a Noel Rosa. Apresentação musical, é claro, pois o compositor havia falecido ainda na década de 30, cinco anos antes do meu nascimento. Ouvira antes, quando tinha oito, nove anos, meu pai cantarolar “o orvalho vem caindo”, mas não tinha a mínima ideia de quem era o compositor da mesma. Talvez tenha ouvido também o “Com que roupa?” ter sido cantado em algum baile de Carnaval do Canto do Rio. Também desconhecia o autor.
          Já ouvira falar por alto em Aracy de Almeida, cantora que teria feito grande sucesso na década de 30 como intérprete de Noel, mas que passara praticamente em branco a década de 40 e que agora, no final dos anos 50, tentava fazer um show para relembrar a obra do compositor de Vila Isabel. Não vi esse show, não sei se fez ou não sucesso.
          Aracy, entretanto, começou a participar de um programa de televisão, aos domingos, onde era jurada. Dava sua opinião sobre os candidatos a cantor ou cantora, com muita irreverência e bom humor. Às vezes, instada pelo apresentador e dono da emissora, o ex-camelô Sílvio Santos, contava um caso pitoresco vivido na companhia de Noel e até cantava uma ou outra sua composição.
            Comecei a prestar atenção na letra e na música dessas composições. Perfeitas, melodia impecável, impregnada do samba de breque tocado nos morros cariocas, letras muito bem feitas, algumas irônicas e debochadas, outras sentimentais e plenas de carinho humano.
          Procurei aprofundar-me mais um pouco na obra noelina. Na década de 70 (sem ter certeza) assisti a um excelente programa na antiga TV-Educativa, dedicado inteiramente a Noel, onde o conjunto Coisas Nossas, fundado pelo cantor, violonista e compositor Carlos Didier, o Caola, apresenta vários artistas da época de Noel, contando casos vividos com o compositor e cantando algumas de suas melodias. Ali estiveram Aracy de Almeida e Marília Baptista, tidas como as duas principais intérpretes do compositor da Vila... dizem até que havia uma certa rivalidade entre elas, mas isso não ficou plenamente demonstrado... diziam que Noel até preferia Marília, que era mais instruída, mais elitizada... já Aracy seria quem realmente fazia sucesso com suas músicas, por sua forma espontânea, direta e falando a língua do povo ao se expressar... Esse programa foi sucesso absoluto e é um clássico para quem deseja conhecer a obra de Noel...
         Posteriormente, em 1990, o mesmo Caola e João Máximo, crítico musical, publicaram um livro contando a biografia de Noel. Livro imperdível, infelizmente esgotado e sem possibilidade de uma nova edição.
       Foi, então, que comecei a conhecer realmente o “Poeta da Vila”.
       Nascido em 11 de dezembro de 1910, parto difícil, teve que ser arrancado a fórceps do ventre de Dª. Marta, sua mãe, na casa da rua Teodoro da Silva, nº. 130 (hoje 192), em Vila Isabel. Dessa dificuldade do parto adveio-lhe a fratura do queixo e a deformidade que o perseguiu durante toda sua vida.
         Estudou no Colégio São Bento, ali nas imediações da Praça Mauá. Começou a cursar medicina, mas abandonou os estudos por sua paixão pela música e pela boemia carioca. Suas primeiras músicas foram “Minha Viola” e “Festa no Céu”, lançadas em 1929, quando ele fazia parte do Bando dos Tangarás, que também tinha como intérpretes João de Barro (o Braguinha), Almirante e Henrique de Britto. Mas seu primeiro grande sucesso foi “Com que roupa?”, lançada no Carnaval de 1930. Daí para a frente foi uma produção frenética de muitas músicas, algumas composições somente suas, outras em parceria com compositores da época, como Orestes Barbosa e, principalmente, Vadico...
           Famosa ficou sua polêmica musical com Wilson Batista, que rendeu bons sambas dos dois (claro, os de Noel são evidentemente melhores, apesar da qualidade daqueles de Wilson).
          Noel, numa época onde a gravação de discos engatinhava, onde não havia computador, conseguiu produzir mais de 300 músicas, a maioria escrita com lápis em pedaços de papel de botequim, para não esquecê-las depois. Foi muito mais letrista que musicista, apesar de que algumas de suas melodias são deslumbrantes.
         Conheci pessoalmente Roberto Martins, um ex-policial da antiga Polícia de Vigilância do Distrito Federal, a PV, também compositor de mão cheia (autor de “Renúncia”, “Cai, Cai”, entre outras) e que me contava passagens maravilhosas do seu convívio com Noel.
        Nunca esquecendo que Noel, mesmo sendo oriundo da classe média carioca, tinha especial prazer em subir os morros da cidade, tendo sido amigo íntimo de Cartola e Ismael Silva.
        Não vou relembrar as músicas de Noel: a grande maioria delas são excelentes, me emocionam e me fazem lembrar uma época que não volta mais... Mas, para quem se interessar, existe no comércio uma caixa com vários CDs de músicas dele, abrangendo praticamente toda sua obra...
      Mas, não posso deixar de mencionar: “Feitiço da Vila”, “Meu último desejo”, “Filosofia”, “O X do problema”, “Mulato bamba”, “Prazer em conhecê-lo”, “A dama do Cabaré”, “Pela décima vez”, “Espera mais um ano”, algumas entre as muitas que me vêm à cabeça nesse momento.
        Imaginem o que esse homem poderia ter feito se tivesse vivido mais dez, vinte anos. Morreu em 4 de maio de 1937, com 26 anos e deixou essa obra toda para nosso deleite...
    Gênio... Gênio... outro daqueles poucos que Deus coloca na Terra e joga a fórmula fora... O outro, no futebol, para mim, foi Garrincha...

Observação: Fiz algumas pequenas correções no texto original seguindo orientação do excelente Carlos Didier, o Caola, que me muito me auxiliou na leitura e exame deste texto.




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