terça-feira, julho 25, 2017

O INGÁ...



O INGÁ...


Calfilho



            Um dos locais em que morei e que mais me marcou na vida foi o bairro do Ingá, em Niterói, a antiga capital do Estado do Rio de Janeiro.
           Anos antes, minha família (meu pai, mãe, eu e meus dois irmãos) tinha voltado de Fortaleza, a capital do Ceará, para o Rio de Janeiro. Foi um retorno repentino e improvisado, pois meu pai, médico pediatra, trabalhando no Ministério da Saúde, fora convidado para trabalhar em Fortaleza, cidade onde fora criado, para ali instalar um núcleo do Departamento Federal da Criança.
           Era uma tarefa de gigante, começar praticamente do nada um programa de vacinação e assistência às crianças do estado cearense, que deveria expandir-se por outros Estados do Nordeste brasileiro.
           Tinha eu 6 anos de idade, meados de 1948. Fomos de mala e cuia para a terra de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Viajamos num navio do Ita, o Itaimbé, onde transportamos toda nossa mobília, algumas peças compradas com dificuldade pelo casal logo após o casamento.  Móveis estilo colonial, cristaleiras de vidro, louça de porcelana inglesa... Fortaleza não tinha porto na época, nós e a mobília descemos do navio e pegamos pequenos botes que nos levaram ao centro da cidade. 
       Meu pai, idealista como só ele, pensava em fazer um grande trabalho de ajuda à criança nordestina, tão desamparada, tão desassistida, que morria de doenças banais, como disenteria, verminoses e, principalmente, fome...
             Ficamos lá apenas 6 meses, pois meu pai acabou descobrindo que sua ida para lá visava colocar em seu lugar, aqui no Rio de Janeiro, um apadrinhado político do então Ministério da Saúde. Voltou para o Rio, interrompeu a licença que havia tirado quando foi para Fortaleza e mandou minha mãe e os filhos voltarem para a então capital do país. Lembro-me bem de minha mãe vendendo todos os móveis que havíamos levado para a capital cearense. Fiz então minha primeira viagem de avião, um Constelation da Panair, quatro motores, de Fortaleza para o Rio.
          De volta ao Rio, não tínhamos local para morar. Bem que meu pai tentou alugar um apartamento em Copacabana, local onde morávamos antes da ida para Fortaleza. Difícil, preços absurdos na época.
           Meu avô materno estava morando em Niterói, onde era o mestre de obra de um grande edifício que estava sendo construído na praia de Icaraí. Ele e minha avó residiam num apartamento num prédio da Av. Amaral Peixoto, esquina com rua Visconde do Uruguay. Convidaram-nos a morar com eles até que arranjássemos um lugar para residir. Foi assim que conheci Niterói, indo morar no apartamento da Av. Amaral Peixoto. Estávamos em meados de 1949.
           No início de 1950 fui matriculado na terceira série do curso primário do Grupo Escolar Getúlio Vargas, no bairro de São Domingos.
          Meu avô, após concluir a obra no prédio da praia de Icaraí, comprou um terreno na rua Nilo Peçanha, nº. 105, no bairro do Ingá. Era uma enorme vila, com casas muito pobres nela construídas, algumas caindo aos pedaços. Foi paga indenização aos moradores para que as desocupassem e, limpo o terreno, meu avô começou a construir um bloco de apartamentos num prédio de quatro andares. Imóveis simples, de quarto e sala, mas com relativo conforto. Os fundos davam para o Colégio Aurelino Leal, cuja frente ficava na rua Presidente Pedreira.
          Enquanto o prédio não era construído, meu avô entregou o apartamento do centro de Niterói e fomos morar temporariamente num pequeno hotel, o Atlântico, na esquina da Praia das Flechas com a rua Nilo Peçanha. Já estávamos em 1951.
            Foi por pouco tempo. Meu pai não se adaptou em viver com a família num hotel, fez um esforço grandioso (talvez tenha pedido dinheiro emprestado em algum banco, coisa que detestava fazer) e deu entrada num outro apartamento do mesmo prédio da Amaral Peixoto, onde tínhamos morado, mas em outro andar, o nono. Naquele tempo, não havia correção monetária, as vendas a prazo eram pagas pela “tabela Price”, então, bastava ter o dinheiro da entrada e o restante do preço era amortizado em “suaves” prestações mensais.
            Voltamos, então, a morar na Amaral Peixoto, enquanto a obra do prédio da Nilo Peçanha não ficava pronta. Em 1952, finalmente mudamos para um quarto e sala do imóvel construído por meu avô.
            Eu já havia completado dez anos de idade e sempre morara em apartamento, indo muito pouco à rua, talvez apenas para ir ao colégio.
            Na Nilo Peçanha foi que realmente tive contato com a rua propriamente dita. O bairro era calmo, tranquilo, aquele trecho da Nilo Peçanha, entre a Presidente Pedreira e a Tiradentes, por onde ainda circulavam os bondes, parecia um quintal de nossas casas. Era muito raro um carro passar por ela, por isso a garotada jogava futebol o dia inteiro, colocando tijolos no meio da rua fazendo às vezes das balizas.
           Ali conheci o Caoca, o Mauro, o José Carlos e seu irmão Ricardinho, o Valmir, o Sebastião e o Sérgio, quase todos garotos da minha idade. Jogávamos bola de gude, soltávamos cafifa e balão, brincávamos de pique e escambida (lembram?), de "pera, uva ou maça", pescávamos nas águas da praia das Flechas. Desse pessoal todo, colegas de infância, só voltei a ter contato com o Mauro Ortiz Lima, que morava na vila ao lado do edifício de meu avô, o nº. 107.
           No final de 1952 meu avô concluiu a construção de outro bloco de quatro andares. Para esse novo prédio mudaram-se as meninas Alcília e as irmãs Genisa e Marisa. Todas mais novas que eu.  Nesse ano, concluí o primário no Getúlio Vargas.
           Em 1953 passei no admissão para o Liceu Nilo Peçanha, onde fui cursar o ginasial e comecei a usar calça comprida.
            Meu avô, antes de falecer, em 1954, ainda deu início à construção de mais outro bloco de apartamentos. Depois de sua morte, meu tio e minha avó ainda construíram mais um. O prédio hoje tem o nome do meu avô.
            Aquela, talvez tenha sido uma das melhores fases da minha vida... Livre, solto na rua, coisa que hoje as crianças não conseguem mais desfrutar...
       Foi-se a infância, começou, mesmo que precocemente, a adolescência...
            Em 1956 voltamos a morar no apartamento da Amaral Peixoto...
            Como mudou o bairro do Ingá nos dias de hoje...
  Voltei a visitá-lo recentemente, para pegar um amigo que agora ali reside, para irmos tomar a vacina contra a COVID... Deu vontade de chorar, a rua repleta de carros, nem um lugar para estacionar o motorista da UBER conseguiu... o prédio que meu avô construiu ainda mantinha seu nome no letreiro da frente... mas, estava escondido, pequeno, ao lado de enormes edifícios que foram construídos em toda a rua... rua essa onde chutei minhas primeiras bolas, onde, às vezes, saía com os dedos dos pés sangrando por uma ou outra topada no meio fio das calçadas...

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