O
INGÁ...
Calfilho
Um dos locais em que morei e que
mais me marcou na vida foi o bairro do Ingá, em Niterói, a antiga capital do
Estado do Rio de Janeiro.
Anos antes, minha família (meu pai,
mãe, eu e meus dois irmãos) tinha voltado de Fortaleza, a capital do Ceará,
para o Rio de Janeiro. Foi um retorno repentino e improvisado, pois meu pai,
médico pediatra, trabalhando no Ministério da Saúde, fora convidado para
trabalhar em Fortaleza, cidade onde fora criado, para ali instalar um núcleo do
Departamento Federal da Criança.
Era uma tarefa de gigante, começar
praticamente do nada um programa de vacinação e assistência às crianças do estado
cearense, que deveria expandir-se por outros Estados do Nordeste brasileiro.
Tinha eu 6 anos de idade, meados de
1948. Fomos de mala e cuia para a terra de Iracema, a virgem dos lábios de mel.
Viajamos num navio do Ita, o Itaimbé, onde transportamos toda nossa mobília,
algumas peças compradas com dificuldade pelo casal logo após o casamento. Móveis estilo colonial, cristaleiras de
vidro, louça de porcelana inglesa... Fortaleza não tinha porto na época, nós e a mobília descemos do navio e pegamos pequenos botes que nos levaram ao centro da cidade.
Meu pai, idealista como só ele, pensava em fazer um grande trabalho de ajuda à criança nordestina, tão desamparada, tão desassistida, que morria de doenças banais, como disenteria, verminoses e, principalmente, fome...
Meu pai, idealista como só ele, pensava em fazer um grande trabalho de ajuda à criança nordestina, tão desamparada, tão desassistida, que morria de doenças banais, como disenteria, verminoses e, principalmente, fome...
Ficamos lá apenas 6 meses, pois
meu pai acabou descobrindo que sua ida para lá visava colocar em seu lugar,
aqui no Rio de Janeiro, um apadrinhado político do então Ministério da Saúde. Voltou
para o Rio, interrompeu a licença que havia tirado quando foi para Fortaleza e
mandou minha mãe e os filhos voltarem para a então capital do país. Lembro-me
bem de minha mãe vendendo todos os móveis que havíamos levado para a capital
cearense. Fiz então minha primeira viagem de avião, um Constelation da Panair,
quatro motores, de Fortaleza para o Rio.
De volta ao Rio, não tínhamos local
para morar. Bem que meu pai tentou alugar um apartamento em Copacabana, local
onde morávamos antes da ida para Fortaleza. Difícil, preços absurdos na época.
Meu avô materno estava morando em
Niterói, onde era o mestre de obra de um grande edifício que estava sendo construído
na praia de Icaraí. Ele e minha avó residiam num apartamento num prédio da Av. Amaral
Peixoto, esquina com rua Visconde do Uruguay. Convidaram-nos a morar com eles
até que arranjássemos um lugar para residir. Foi assim que conheci Niterói,
indo morar no apartamento da Av. Amaral Peixoto. Estávamos em meados de 1949.
No início de 1950 fui matriculado na
terceira série do curso primário do Grupo Escolar Getúlio Vargas, no bairro de
São Domingos.
Meu avô, após concluir a obra no
prédio da praia de Icaraí, comprou um terreno na rua Nilo Peçanha, nº. 105, no
bairro do Ingá. Era uma enorme vila, com casas muito pobres nela construídas,
algumas caindo aos pedaços. Foi paga indenização aos moradores para que as
desocupassem e, limpo o terreno, meu avô começou a construir um bloco de apartamentos
num prédio de quatro andares. Imóveis simples, de quarto e sala, mas com
relativo conforto. Os fundos davam para o Colégio Aurelino Leal, cuja frente ficava na rua Presidente Pedreira.
Enquanto o prédio não era construído,
meu avô entregou o apartamento do centro de Niterói e fomos morar temporariamente
num pequeno hotel, o Atlântico, na esquina da Praia das Flechas com a rua Nilo
Peçanha. Já estávamos em 1951.
Foi por pouco tempo. Meu pai não se
adaptou em viver com a família num hotel, fez um esforço grandioso (talvez tenha pedido dinheiro emprestado em algum banco, coisa que detestava fazer) e deu entrada
num outro apartamento do mesmo prédio da Amaral Peixoto, onde tínhamos morado, mas em outro andar, o nono.
Naquele tempo, não havia correção monetária, as vendas a prazo eram pagas pela “tabela
Price”, então, bastava ter o dinheiro da entrada e o restante do preço era amortizado
em “suaves” prestações mensais.
Voltamos, então, a morar na Amaral Peixoto,
enquanto a obra do prédio da Nilo Peçanha não ficava pronta. Em 1952, finalmente
mudamos para um quarto e sala do imóvel construído por meu avô.
Eu já havia completado dez anos de
idade e sempre morara em apartamento, indo muito pouco à rua, talvez apenas
para ir ao colégio.
Na Nilo Peçanha foi que realmente
tive contato com a rua propriamente dita. O bairro era calmo, tranquilo, aquele
trecho da Nilo Peçanha, entre a Presidente Pedreira e a Tiradentes, por onde
ainda circulavam os bondes, parecia um quintal de nossas casas. Era muito raro um carro passar
por ela, por isso a garotada jogava futebol o dia inteiro, colocando
tijolos no meio da rua fazendo às vezes das balizas.
Ali conheci o Caoca, o Mauro, o José
Carlos e seu irmão Ricardinho, o Valmir, o Sebastião e o Sérgio, quase todos garotos
da minha idade. Jogávamos bola de gude, soltávamos cafifa e balão, brincávamos
de pique e escambida (lembram?), de "pera, uva ou maça", pescávamos nas águas da praia das Flechas. Desse pessoal todo, colegas de infância, só voltei a ter contato com o Mauro Ortiz Lima, que morava na vila ao lado do edifício de meu avô, o nº. 107.
No final de 1952 meu avô concluiu a
construção de outro bloco de quatro andares. Para esse novo prédio mudaram-se as
meninas Alcília e as irmãs Genisa e Marisa. Todas mais novas que eu. Nesse ano, concluí o primário no Getúlio
Vargas.
Em 1953 passei no admissão para o
Liceu Nilo Peçanha, onde fui cursar o ginasial e comecei a usar calça comprida.
Meu avô, antes de falecer, em 1954,
ainda deu início à construção de mais outro bloco de apartamentos. Depois de
sua morte, meu tio e minha avó ainda construíram mais um. O prédio hoje tem o
nome do meu avô.
Aquela, talvez tenha sido uma das
melhores fases da minha vida... Livre, solto na rua, coisa que hoje as crianças
não conseguem mais desfrutar...
Foi-se a infância, começou, mesmo
que precocemente, a adolescência...
Em 1956 voltamos a morar no
apartamento da Amaral Peixoto...
Como mudou o bairro do Ingá nos
dias de hoje...
Voltei a visitá-lo recentemente, para pegar um amigo que agora ali reside, para irmos tomar a vacina contra a COVID... Deu vontade de chorar, a rua repleta de carros, nem um lugar para estacionar o motorista da UBER conseguiu... o prédio que meu avô construiu ainda mantinha seu nome no letreiro da frente... mas, estava escondido, pequeno, ao lado de enormes edifícios que foram construídos em toda a rua... rua essa onde chutei minhas primeiras bolas, onde, às vezes, saía com os dedos dos pés sangrando por uma ou outra topada no meio fio das calçadas...
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