Zuma: a vida e a bola.
Zuma, maior astro do vôlei brasileiro, salta para “enterrar” a cortada que pode definir a final das Olimpíadas de Pequim.
Naquele instante, corpo flutuando no ar, mão direita preparada para aplicar o golpe fatal, mil pensamentos povoam sua mente, um atrás do outro, numa seqüência que faz lembrar um filme de longa metragem rodado em câmara lenta.
Menino pobre, nascido e criado numa das favelas miseráveis do Rio de Janeiro, teve uma infância pouco feliz. Viu quando o pai abandonou a família, quando tinha ele apenas seis anos de idade. Foi testemunha do duro danado que sua mãe deu para criar os sete filhos deixados para trás pelo marido, lavando para fora desde o nascer até o pôr do sol. Presenciou, com tristeza, o envolvimento dos dois irmãos mais velhos com o tráfico de drogas no morro, acabando ambos mortos pela Polícia. Finalmente, revoltado, mas sem nada poder fazer, logo percebeu que duas de suas irmãs, também mais velhas que ele, acabaram se prostituindo, fazendo programas em Copacabana e em outros bairros ricos da cidade. Procuravam esconder esse fato da mãe, mas Zuma logo percebeu, estranhando os presentes que recebiam e o dinheiro que às vezes traziam para casa, sem explicar direito a origem.
Ele, como todos os irmãos, foi matriculado pela mãe no colégio público mais próximo da favela, onde chegou a concluir o primeiro grau. Queria continuar estudando, mas sua mãe insistia que era necessário que ele fosse trabalhar para ajudar nas despesas de casa.
Foi quando a sorte bateu à sua porta.
Aos quinze anos, apesar de muito magro, era bem alto, quase um metro e oitenta. Pela altura, foi convidado a fazer parte do time de vôlei do seu colégio, que, por ser escola pública, tinha poucas condições de oferecer um treinamento adequado. Mas, mal ou bem, o professor de educação física era dedicado e conseguiu formar uma equipe razoável.
Numa tarde de sábado, num jogo de campeonato estudantil, no Méier, foi observado por Benedito, técnico de voleibol do Botafogo, que ali fora prestigiar um amigo, que treinava o time adversário. Benedito ficou impressionado com a altura e a qualidade técnica já esboçada por Zuma, convidando-o para fazer um teste no clube.
Entusiasmado, contou à mãe o que ocorrera. Ela acabou por concordar, apesar de já estar esperando que ele conseguisse um emprego para ajudar nas despesas da casa. Impôs uma condição: que ele arranjasse um trabalho qualquer, nem que fosse de meio-expediente e levasse algum dinheiro no fim do mês.
Passou no teste e foi incorporado à equipe infantil do Botafogo. Procurou, procurou e acabou conseguindo um emprego de entregador de uma farmácia na Voluntários da Pátria (somente muito mais tarde veio a saber que o emprego fora conseguido por Benedito).
Sua rotina diária era exaustiva. Acordava às cinco da manhã, botava para dentro um café requentado e um pedaço de pão dormido e pegava o ônibus para chegar à farmácia. Trabalhava até o meio-dia e ia almoçar no Botafogo, que tinha um refeitório para os atletas. Aproveitava para bater uma bolinha no intervalo do almoço. Voltava para o trabalho, onde ficava até às cinco. Retornava ao clube três vezes por semana, quando ocorriam os treinos do time infantil. Nas noites livres, ia para o colégio noturno, pois Benedito só aceitava atletas que estivessem estudando.
Foi campeão infantil e juvenil pelo clube, sendo convocado para a seleção brasileira de jovens aos 17 anos. Foi também campeão sul-americano.
Quando completou 19 anos, já com um metro e noventa de altura, seu corpo agora era só músculos, bem diferente do menino esquálido que chegou ao clube alguns anos antes.
Recebeu uma proposta excelente para se transferir para o Minas Tênis Clube. Consultou Benedito que, sabendo que o Botafogo não teria condições de cobrir aquela proposta, concordou com sua saída do clube.
Lá em Belo Horizonte tornou-se logo uma das estrelas da equipe. Agora, ganhando bem, alugou um apartamento que passou a dividir com um colega de time. Alimentava-se bem, vestia-se com apuro. E, finalmente, conseguiu realizar o sonho que acalentava já há algum tempo: comprou uma casa modesta mas confortável para a mãe e irmãos, no Méier. Dona Laurinda não cabia em si de contentamento quando se mudou, deixando para trás a violência, o tráfico de drogas e a miséria da favela.
Então, aconteceu também outra coisa pela qual esperava com ansiedade: a primeira convocação para a seleção brasileira adulta de vôlei.
Quando se apresentou na concentração, uma fazenda agradável nos arredores de Curitiba, estava um pouco nervoso, um pouco tímido. Mas, os demais jogadores logo o deixaram à vontade, procurando fazer com que se enturmasse rapidamente.
Na primeira noite de concentração, Louro, então o capitão da equipe brasileira, com ar sério, sentado ao seu lado na mesa do jantar, disse-lhe que o técnico era muito rigoroso e exigia que, a cada manhã, um dos jogadores acordasse mais cedo e fosse até o pátio externo e hasteasse a bandeira do Brasil. E, mais: depois de hasteá-la, o jogador teria que ficar em posição de sentido ao lado do mastro, aguardando que os outros atletas acordassem e fossem todos cantar o hino nacional. Era para exaltar o patriotismo, dizia o técnico.
Louro disse a Zuma, que por ser ele o mais novo da equipe, ficaria encarregado de hastear a bandeira na manhã seguinte, já que todos os outros jogadores já haviam passado por aquele ritual.
Zuma concordou e às cinco da manhã seguinte, com apenas um agasalho sobre as costas, estava no pátio hasteando a bandeira. Ficou em posição de sentido ao lado do pavilhão nacional, aguardando que os outros acordassem.
Por volta das sete, o técnico da equipe passava por um corredor externo, dirigindo-se ao refeitório, onde iria tomar o café da manhã. Vendo Zuma tiritando de frio (a temperatura devia estar por volta dos 6 graus), indagou o motivo de sua presença ali. Zuma, respeitosamente, respondeu que estava aguardando que os demais jogadores acordassem para entoar o hino nacional.
O técnico riu gostosamente, dizendo-lhe que se tratava de um trote dos veteranos. Zuma ficou encabulado, sem graça e puto da vida. Na mesa do café da manhã, cara amarrada, Louro ainda teve a cara de pau de perguntar-lhe se ele tinha dormido bem. Além de ter que agüentar a gozação dos demais membros da delegação.
Mas, logo se enturmou e realizou outro dos seus sonhos: viajar para o exterior. Conheceu a Europa, a Ásia, a Oceania. Visitou vários países, conviveu com outros povos, outras culturas.
Nesses anos de viagens quase contínuas, foi campeão do mundo e da Liga Mundial (2 vezes).
Agora, estava disputando os Jogos Olímpicos. Como as coisas se passaram tão rapidamente em sua vida! Do menino pobre de favela até pouco tempo atrás a astro do vôlei mundial...
A equipe brasileira, magnífica, vinha passando como um rolo compressor sobre seus adversários. Quartas, semifinal e, agora, a final contra a Rússia, adversário ferrenho dos últimos anos.
Jogo disputado palmo, ponto a ponto.
Primeiro set, Brasil 25 a 23.
Segundo set, Rússia 39 a 37.
O terceiro, Brasil, 25 a 23.
Quarto, Rússia 32 a 30.
As duas equipes descansaram por alguns minutos, tentando recuperar-se do desgaste sofrido nos sets anteriores. Os dois técnicos, histéricos, gritavam ordens e instruções aos jogadores que mal conseguiam ouvir o que era dito.
Voltaram para a quadra, cansados, suando em bicas, beirando à exaustão. O tie-brake começou emocionante. Os pontos eram disputados com ardor, um a um. Chegaram ao empate em 12. O Brasil consegue abrir 14 a 12. Estava a um ponto da vitória. Mas, a Rússia não se entrega, briga até o fim. Marca mais um, diminuindo a diferença para 14 a 13.
O saque é da Rússia. A bola voa alta, atravessando a rede e caindo do lado brasileiro. O líbero a recebe com dificuldade, dando um passe para o meio da rede. O levantador, mãos de seda, como se estivesse tratando a bola como a coisa mais preciosa da vida, toca-a de leve com a ponta dos dedos, levantando-a para a ponta esquerda da rede.
Zuma, qual um pássaro gigante, alça o vôo magnífico, atingindo uma altura inimaginável. Suas joelhos se flexionam, empurrando as duas pernas para trás. No ar, levanta o braço direito e prepara a mão para a cortada mortal.
Naquele segundo mágico, que realmente deveria ser congelado para ficar perpetuado no tempo e no espaço, sua vida toda passou por sua mente, como um filme de longa metragem rodando em baixa rotação.
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