quarta-feira, fevereiro 28, 2007

MORREU PIPICO...

   

 

MORREU PIPICO...

Calfilho






           Nunca foi de falar alto, botar para fora o que sua alma sentia...
         Sempre quieto, silencioso, quase escondido num canto qualquer, fosse qual fosse o lugar onde se encontrasse: uma solenidade, uma festa, ou um boteco esquecido da cidade...
          Advogado de mão cheia, mestre do Direito... Entretanto, não gostava de falar muito, não seguiu o exemplo dos grande oradores. Preferia o silêncio de um local calmo, tranquilo, onde colocava no papel todo o repertório de seus vastos conhecimentos jurídicos.
          Ainda jovem, acadêmico de Direito, juntou-se ao nosso grupo de ex-liceístas, no futebol disputado nas manhãs de sábado na Praia de Icaraí. Levado pelo irmão mais novo, integrou-se rapidamente à turma. Sempre com aquele seu modo típico de ser: quieto, calado, falando pouco e ouvindo muito.
           Futebol, não era seu ponto forte. Entrava quase sempre no segundo tempo de nossas peladas, ou no time reserva. Por isso, ponta-direita como o irmão “expert” na posição, que era titular absoluto do time da praia, conformava-se docilmente com a reserva.
            Mas, às vezes, dava umas investidas surpreendentes pela ponta, levando perigo à meta adversária, quando não convertia em gol alguma daquelas suas esporádicas escapadas.
               Daí, recebeu logo o apelido carinhoso de “Pipico”, então ponta-direita do Fluminense daquele início da década de 60. O verdadeiro, como ele, também era jogador de altos e baixos: ora se encolhia na ponta, esperando a bola chegar-lhe aos pés; outras vezes com ela dominada, insurgia surpreendentemente em arrancadas velozes e fulminantes em direção ao gol adversário.
             O apelido pegou e foi sua marca registrada durante aqueles doces anos descompromissados de peladas na areia, chopes na Gruta ou no Lucio’s. De vez em quando, um zagueiro ou um meio de campo irritado lançava-lhe uma bola, muitas vezes um passe mal feito e ainda reclamava:
        – Corre, Pipico, não fica chupando o sangue aí na ponta.
         Ele somente resmungava alguma coisa em voz baixa, palavras que ninguém conseguia entender. Mas, educado que era, não rebatia a ofensa.
          Assim era Pipico.
          Alguns anos mais tarde, nossos caminhos novamente se cruzaram.
          Já formados, iniciávamos nossa luta pela busca de um lugar ao sol na difícil carreira do Direito. Ele, formado antes de mim, já advogava aqui e ali, buscando seu espaço entre os advogados de Niterói. Eu, que tinha emprego fixo, começava a dar os primeiros passos na carreira.                
             Reencontramo-nos num botequim qualquer da cidade (acho que foi o Riviera) e decidimos estudar juntos para um concurso público na nossa área profissional.
             Foi ele de grande ajuda para mim, passando-me sua já adquirida experiência, eu, recém-formado e tendo passado dois anos no interior do Estado, como funcionário de banco estatal.
            Com outro amigo comum, que nos emprestou o escritório, íamos os dois, depois de um dia cansativo de trabalho, estudar até às dez, onze da noite.
            Fizemos juntos os concursos para Promotor de Justiça em São Paulo e aqui no Estado. Juntos também nos inscrevemos para o concurso de Juiz de Direito na antiga Guanabara e foi ele um dos meus maiores incentivadores.       Estudávamos até a madrugada, dia após dia, noite após noite, eu, Pipico e outros jovens advogados, felizmente quase todos aprovados em concursos públicos.
            Perdemos o contato durante alguns anos, só esporadicamente nos víamos. Falávamo-nos, às vezes, pelo telefone...
            Como é massacrante e cruel o tempo em que vivemos... Corre-se para lá e para cá, escravos do nosso trabalho, acabamos esquecendo dos amigos e até da família... Será se tudo isso é válido?
            Fiquei muito contente quando nosso grupo de praia se reencontrou e iniciamos o atual ciclo de congraçamento trimestral. Voltei a encontrar Pipico, autor da frase “Abriram as portas do asilo”, quando de nosso primeiro reencontro, ainda na Praia de Icaraí.
            Passados mais de quarenta anos...
            A alegria era a mesma, a satisfação de estarmos juntos novamente... Parecia que o tempo não havia passado...
            Pipico, sempre no seu canto, um pouco mais envelhecido, mas com a mesma discrição de outrora. Falando pouco, palavras silenciosas, quase ininteligíveis, só conseguidas serem ouvidas por aqueles que estavam ao seu lado.
            Alegre, feliz, por reencontrar a alegria do seu passado...
             Num dia triste e infeliz de fevereiro deste ano, sem alarde, sem dizer nada a ninguém, Pipico se foi...
            Discreto, sem alarido, como o passarinho que sempre foi...
            Que pena...

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