sábado, maio 05, 2007

PAIXÃO...

P A I X Ã O . . .

CALF


– Eu já não sei mais o que fazer.... Dá vontade de largar tudo e me mandar para o interior... Já pensei numa casinha em Friburgo, num lugar sossegado, só p'ra mim e a Maria – disse Amâncio, jogando as cartas sobre a mesa.
Mário, olhando para as próprias cartas, escolhia qual a melhor jogada a fazer. Decidiu-se e comprou uma carta do "morto".
– Eu também já pensei nisso, mas p'ra mim, que sou sozinho, acho que vou ficar muito mais isolado. Aqui, pelo menos, os filhos e netos vêm me visitar, estão sempre por perto se alguma coisa me acontecer...– Parou de falar por um momento, como se estivesse refletindo. Continuou, voz baixa, quase um murmúrio: – Mas, isso aqui, realmente, está muito perigoso de viver, já não se pode mais nem sair à rua, é violência por todo canto...
Baixou uma trinca de reis.
– Eu já tou de saco cheio – disse Roberto, olhar atento nas cartas que tinha nas mãos. Baixou uma seqüência de espadas. – Já não tenho mais coragem de sair à noite, de ir a um teatro ou assistir um show. Nem mesmo para o meu chopinho no botequim do Arnaldo, coisa que fazia diariamente antes de dormir, hoje tenho ânimo para sair de casa.
Alberto ouvia tudo em silêncio, nada comentando. Olhava distraidamente para as cartas abertas à sua frente, olhar distante, como se estivesse desligado do jogo e da conversa.
Os quatro amigos, todos beirando os oitenta anos de idade, distraíam-se jogando buraco naquele cantinho do Posto seis, ponto tradicional de encontro dos idosos de Copacabana, lugarzinho cercado, em frente à praia, junto do local onde alguns anos antes se situara o imponente Cassino Atlântico, depois os estúdios da extinta TV-Rio. Em várias mesas espalhadas no cercado de lona, outras senhoras e senhores passando dos setenta conversavam animadamente.

Mário continuou:
– Quem diria que a cidade iria se transformar no que está agora... Lembra, Alberto, quando a gente brincava o Carnaval, pulando dos estribos dos bondes, fantasiados de palhaço ou mascarados, fazia a ronda por todos os bares de Copacabana e ia acabar na Fiorentina, lá no Leme, só indo p'ra casa as seis da manhã, dia clareando, conversando alto pela Atlântica, todo mundo de pilequinho?
– E as batalhas de confete e serpentina da Galeria Cruzeiro, aquele monte de mulher bonita desfilando pela Rio Branco... lembrou Roberto, com um olhar de melancolia.
– Vai fazer isso agora, p 'ra ver o que te acontece... Tu chega nu em casa, se conseguir chegar vivo... Te roubam tudo, até a roupa do corpo, se bobear...
Alberto continuava sem nada dizer, uma guimba de cigarro no canto da boca, os ralos cabelos brancos esvoaçando com a brisa gostosa daquele fim de manhã de sol esplendoroso da "Princesinha do mar"... Olhava ora para as cartas, ora para o jogo que estava sobre a mesa, inteiramente concentrado no jogo.
– Não, eu não agüento mais ficar por aqui – repetiu Amâncio, um pouco exaltado, enquanto virava o resto de chope que havia em sua caneca. – Não se tem mais liberdade de sair à rua, todo mundo vive com medo, trancado em suas casas. – Outro dia mesmo, na quinta-feira, 8 horas da manhã, vejam bem, 8 horas da manhã, depois de ter caminhado cedo na praia, voltava para casa e esperava o sinal abrir na esquina de Nossa Senhora com Santa Clara. Calmamente, distraído, pensando na morte da bezerra, quando comecei a ouvir : PUM! PUM! TAC! TAC!... Sem brincadeira… Mais de vinte tiros… Depois, os carros de polícia, em disparada pelas ruas, sirenes abertas, policiais com armas na mão.... Gente se jogando no chão, procurando abrigo nas lojas que começavam a abrir... Uma zorra total... Depois vim a saber que fora uma tentativa de assalto num caixa eletrônico na esquina da Figueiredo... Que loucura....
A praia estava praticamente lotada. As barracas multicoloridas imprensavam-se umas contra as outras, as ondas fortes beijavam com violência a areia clara, fazendo ressaltar a beleza indescritível de um dos mais famosos e belos cartões postais do mundo. No calçadão e na pista interditada aos domingos para o lazer dos cariocas, uma multidão de pessoas caminhava, corria, pedalava, outros apenas passeavam, aproveitando aquela maravilhosa manhã de domingo que só o Rio consegue oferecer.
– Eu também, acho que me mudo para o interior. Estou vendo alguma coisa lá pelos lados de Mangaratiba, pois não sei ficar longe da praia. Lá tem uns sítios bons, não são muito caros – disse Roberto. – Não quero acabar morrendo por uma bala perdida ou sendo assaltado por um bando de pivetes na rua.
– Pois é – prosseguiu Mário. – Minhas filhas já foram assaltadas nos ônibus, meu neto teve o celular arrancado das mãos outro dia desses. Até seus tênis os moleques já levaram...
– E vai tentar reagir, oferecer resistência – interrompeu Amâncio. –- Acaba levando um tiro ou uma facada, morre estupidamente nas mãos de um boçal desses...
– Viu aquela menina da Tijuca, semana passada? – indagou Roberto. – Os pais não deixavam ela sair sozinha na rua, iam levá-la e buscá-la no colégio todos os dias. Na única vez que permitiram que ela voltasse sozinha para casa, uma estação só do metrô, acontece aquela tragédia... Só quatorze anos, uma vida estupidamente perdida... Esse é o nosso Rio de Janeiro, a "Cidade Maravilhosa"...
– Tá parecendo Chicago dos anos 20, cidade sem lei, dominada por Al Capones, Dillingers, etc... – filosofou Mário.
– E os camelôs nas calçadas? – interveio Amâncio. – Aqui, na Nossa Senhora e no centro, não se pode mais andar pelas calçadas. Tem-se que passar pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelado.
– É verdade – concordou Roberto, ar de desânimo na voz. – E nós, que já estamos velhos, é que sofremos mais. Os carros não respeitam quando a gente atravessa as ruas, vêm para cima mesmo. E, somos os alvos preferidos dos pivetes e assaltantes. Juntam dois, três, empurram a gente, levam tudo que a gente carrega.
– E você, Alberto, não diz nada? Vai dizer que também não tem medo de viver aqui? – perguntou Amâncio.
Alberto, com o mesmo ar calmo e tranqüilo que mantinha até ali, olhou mais uma vez para as cartas que tinha nas mãos. Depositou-as suavemente sobre a mesa. Disse, olhando triunfalmente para os companheiros:
– Bati...
Os outros olharam desanimados para as cartas sobre a mesa. Mario chamou o garçom e pediu uma outra rodada de chope. Amâncio insistiu:
– E, então, Alberto, você não diz nada?
Ele coçou a cabeça, passando os dedos por entre os fios de cabelos brancos. Virou o resto do chope, acendeu um outro cigarro. Respondeu, voz macia, as palavras saindo-lhe vagarosamente pela boca onde alguns dentes já faltavam:
– Olha, vocês querem saber de uma coisa? Eu daqui não saio não. Nasci aqui, aqui fui criado, estudei, trabalhei e me casei. Minha mulher já morreu, a gente não teve filhos. Não tenho nenhum parente vivo e, mesmo que tivesse, não ia dar trabalho a ninguém no fim da vida. Vi essa cidade crescer, transformar-se, acompanhei as diversas fases da sua evolução. Aqui tenho de tudo: praia, montanha, floresta, comércio bom e variado, conheço todo mundo no meu quarteirão, padeiro, jornaleiro, bicheiro, farmacêutico, dono de botequim. Amo minha praia, adoro passear no centro da cidade, fazer um lanche na Colombo, tomar um chope no bar Luiz ou no Brasil, lá na Lapa. Não há nada que se compare ao almoço de domingo num desses restaurantes da beira da praia, onde fico mastigando alguma coisa, vendo as meninas desfilando nos seus biquínis mostrando quase tudo. Conheço cada esquina, cada buraquinho de Copacabana. Aqui vi a bossa nova nascer, lá no beco das Garrafas, freqüentei o Vogue, o Sacha's, o Copacabana Palace... Vi Heleno de Freitas jogar futebol na areia dessa praia, João Saldanha era meu vizinho na Miguel Lemos... Copacabana e o Rio fazem parte do meu corpo, da minha alma... Estão na minha pele, são meu sangue, me alimentam, me trouxeram até os meus 78 anos de vida... Esses bandidinhos que andam por aí, esses marginais de meia tigela, não vão me expulsar da minha cidade, não me metem medo... eu já vivia aqui muito tempo antes deles... se quiserem me matar, que matem, mas como dizia aquela antiga musiquinha de carnaval : '' DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUÉM ME TIRA... " . Aqui é minha cidade, tenho verdadeira paixão por ela, nela nasci e, se Deus quiser, nela vou morrer...
Quase todos os freqüentadores do local levantaram-se e bateram palmas, entusiasmados e emocionados, relembrando, talvez, um Rio de Janeiro que já não exista mais....

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