sábado, maio 05, 2007

O REENCONTRO...

 

 

O REENCONTRO...


CALF



                  No início do mês de dezembro de 2006, avisado por alguns amigos de longa data, todos ex-liceístas, compareci a uma missa e a um almoço em comemoração ao cinqüentenário de formatura das turmas que concluíram o ginasial no nosso Liceu, em 1956.
                  Estava curioso em saber como estariam, nos dias atuais, alguns daqueles que estudaram ao meu lado, na mesma sala, às vezes na carteira da esquerda ou da direita, na frente ou atrás, depois de passados cinqüenta anos.
                 Afinal de contas, foram quatro anos em que convivemos, pelo menos durante cinco horas, de segunda a sexta, numa das salas do antigo casarão do fim da Amaral Peixoto. Para sermos exatos, de 1953 a 1956.
Os três primeiros anos, no turno da tarde. O quarto, na parte da manhã.
                 Na noite anterior àquele domingo, dois de dezembro, rememorei mentalmente os momentos de felicidade e alegria passados naqueles meus primeiros anos de Liceu. Fui buscar, numa caixa esquecida de um armário empoeirado escondido num dos quartos não utilizados da casa, algumas fotografias daquele período inesquecível.
                 O grande prédio cor de rosa, dentro do qual era eu uma minúscula partícula no primeiro ano ginasial. O uniforme tradicional e pesado, o dólmã cáqui, com a lista branca em forma de “V” maiúsculo na braçadeira azul em cada uma das mangas. A gravata preta, dando um tom de seriedade à roupa do menino de onze anos, que até então só usara calças curtas. Tudo comprado na “Corporativa”, no início da Amaral Peixoto, ao lado do edifício onde eu morava.
                 O primeiro dia de aula foi de medos, de receios do desconhecido. Eram cinco turmas no primeiro ano ginasial. A primeira, na qual fui colocado, era composta por aqueles que haviam obtido as melhores notas no exame de admissão. Devíamos ser pouco mais de quarenta em cada turma. A última, a quinta, era destinada aos repetentes, misturados com os que obtiveram as piores notas no exame de ingresso ao colégio. Exame disputadíssimo por sinal, já que o Liceu era considerado a melhor escola de Niterói, então a capital do antigo Estado do Rio de Janeiro. Qualidade de ensino igual à dele só a do Pedro II, tradicional estabelecimento federal de ensino médio da época e até hoje respeitado como tal.
                 Sorte minha que haviam alguns conhecidos na mesma turma. Dos que estudaram juntos comigo no primário do Getúlio Vargas estavam o Harald, o Gilberto, a Neuza e a Carolina. Havia ainda o Lizardo, que conheci no ano anterior ao admissão e de quem logo me tornei amigo, freqüentando um a casa do outro e estudando juntos para a tão temida prova.
                 Todos os outros, ilustres desconhecidos.
                Nossa inspetora, cujo nome já não mais me recordo, nos fez sentar em ordem alfabética, ocupando as cadeiras em fila indiana, da esquerda para a direita da sala, que ficava no primeiro andar, no corredor que dava para o pátio.
                Aos poucos fui conhecendo o Gusmão (eu sentava atrás dele), o Cidoca, o Paulo Roberto, o Jorginho Sader, o Nelson, o Armandinho, o Marcos Honaiser, o Dráusio, a Maria Célia, o Luiz Antonio.
               Mas, naqueles primeiros dias, andava colado no Lizardo e no Gilberto, os três ainda assustados com aquele mundo novo e, pior, com medo de levar trote dos veteranos.
                Antes de entrarmos em sala tínhamos que formar no pátio e cantar o Hino Nacional. O diretor, Jayme Bittencourt, ficava no alto de uma pequena escada que dava acesso às salas, compenetrado, verificando se os alunos cantavam direito o nosso hino.
               Mas, o que mais nos assustou foi a quantidade de matérias com que teríamos de lidar. Além das já conhecidas Português e Matemática, passamos a estudar Francês, Latim, Desenho, Canto Orfeônico, Trabalhos Manuais, História Geral e Geografia (será se me esqueci de alguma?). Aulas rápidas, de cinqüenta minutos cada uma, bem diferente daquilo a que estávamos acostumados no primário: uma só professora para Português, Matemática e Conhecimentos Gerais.
               Cada aula, um professor ou professora. Fiz um esforço de memória e tentei me recordar do nome alguns deles. A temida Dª Jacira, de Português, exigente ao extremo, que causava medo em todos nós. A rigorosa Dª Anita, de Matemática (ainda bem que escapamos do Carias, tido como o terror dos alunos, segundo comentários dos demais liceístas). Francês, Dª Estefânia, com seus doces cabelos grisalhos. O Padre Carneiro, de batina e tudo, ministrava-nos o Latim. O Canto Orfeônico nos era ensinado por Dª Edith Pinho, que muitos e muitos anos mais tarde vim a saber ser esposa de um Desembargador da Guanabara. Professor Cousin era o responsável pelas aulas de História Geral. Finalmente, o Professor Vieira ensinava-nos Geografia (“Deponham o lápis”, era sua frase característica”). Não consegui me lembrar dos nomes, nem das fisionomias dos professores de Desenho e Trabalhos Manuais.
                Já no segundo semestre daquele primeiro ano estávamos mais à vontade no colégio. Passada aquela fase inicial de adaptação, já procurávamos alguma quadra ou campinho livre para jogar uma pelada com bola de borracha na hora do recreio. O uniforme cáqui, até então imaculado, passou a chegar em casa sujo de poeira e, às vezes, de lama. Eram rachas nas quadras de cimento ou, quando estas já estavam ocupadas pelos alunos mais velhos, no campinho de areia lá junto do necrotério ou até mesmo nas pistas de terra laterais, destinadas ao atletismo.
                Depois do futebol, a merenda rápida na cantina da Dona Cremilda. Seus dois filhos, Jorge e Haroldo, então adolescentes, fui reencontrá-los anos depois. Jorge chegou a tentar a carreira de goleiro no Canto do Rio. Haroldo, fui revê-lo em 1984, apitando um jogo de futebol de salão, no qual um dos meus filhos participava, disputando o campeonato de Niterói e São Gonçalo pelo Canto do Rio. Não consegui me lembrar do nome da filha de Dona Cremilda, que também “pendurava” para nós uma coca-cola ou um sanduíche de mortadela. Ah! acho que lembrei: Norma...
               Minha mente continuava a divagar, recordando aquelas cenas marcantes dessa época tão querida de minha vida.
                Veio o segundo ano. Continuei na primeira turma, numa sala do segundo andar que dava para o pátio. Outros colegas, transferidos de outros colégios vieram fazer parte da mesma. O Aloysio (hoje juiz trabalhista), o Carlos Eduardo, o “Pavão”, por sua semelhança com o então zagueiro do Flamengo, ele que também era zagueiro e chegou a jogar no Canto do Rio. Veio também o Nélio, forte como um touro, excelente meio-de campo do futebol de praia jogado na LAFA, em Icaraí.
                 Naquele ano nossa inspetora foi Dª Coralina, doce e meiga com seus cabelos começando a embranquecer, sempre atenta a um pedido nosso, sempre disposta a nos ouvir. Além das matérias que já havíamos dado no primeiro ano, foi acrescido o Inglês, cujo professor era o Odilon.
                 Já agora totalmente entrosados com a rotina diária do colégio, travamos conhecimento com os outros alunos das demais turmas do segundo ano, e, na hora do recreio, marcávamos jogo contra eles, em qualquer quadra que estivesse vaga. Assim conheci o Waldo, Adalberto Abelha, Manuel Terrinha, Antonio Matheus, Albino, Jorge, Diomedes e muitos outros.
                Passei muito bem para o terceiro ano, já que naquele tempo era um dos melhores alunos. Continuei na primeira turma. Nossa sala, em 1955, era no segundo andar, mas na ala que dava para o Jardim de Infância, nos fundos do Liceu. Era uma sala destinada às aulas específicas de desenho, com mesas tipo prancheta, mas que fora adaptada para o currículo normal. O uniforme ainda era o mesmo, dólmã cáqui, gravata e braçadeiras azuis. Só que agora já eram três as listras.
                Não me lembrava muito bem do terceiro ano. Não me recordei se entrou ou saiu alguma matéria, se mudou um ou outro professor. Da. Jacira e Da. Anita sei que continuaram. Vieram mais alguns outros alunos transferidos, entre eles o Ivan Elias. Os outros continuavam os mesmos, aqueles que vinham juntos comigo desde o primeiro ano. Das outras turmas, conheci o Clélio, o Mário Cid e vários outros.
                O futebol, agora, era mais intensificado na hora do recreio e mesmo depois das aulas, nos campinhos de grama improvisados na pracinha que ficava em frente ao Liceu, tendo a Biblioteca como fundo. Retornava para casa suado, o uniforme todo sujo, minha mãe é quem sofria, coitada.
                Agora, no terceiro ano, éramos os veteranos do turno da tarde. Estreitei minha amizade com o Cidoca, o Gusmão e o Vinicius, passando uns a freqüentar a casa dos outros, ir ao cinema juntos, jogar futebol na praia de Icaraí.
                Bem, finalmente, concluímos a terceira série e, no ano seguinte, iríamos estudar no turno da manhã, junto com o pessoal do científico e clássico.
               Quando começamos o quarto ano ginasial, em 1956, uma novidade: as turmas foram divididas não mais pela notas obtidas no ano anterior e, sim, por ordem alfabética. Isso foi muito bom e era uma das características dos colégios públicos: entrosar todos os alunos, não importando a condição social ou econômica de cada um deles. Na mesma turma tínhamos alunos de todos os bairros de Niterói e São Gonçalo, originários de bairros ricos, de classe média ou pobre. Brancos, negros, amarelos, mestiços.
                  Apesar dos três anos já passados no colégio, sentimos um pouco quando fomos para o turno da manhã. Nós, que éramos os veteranos do turno da tarde no ano anterior, passamos a ser os mais novos do turno da manhã.
                 O pessoal do científico e clássico mantinha uma distância considerável da gente, parecia que eles estavam em outro mundo. Algumas meninas das nossas turmas suspiravam pelos rapazes mais velhos, alguns já com barba começando a nascer nos rostos. E, nós, os “meninos” do quarto ano, olhávamos com admiração para as belas pernas e os seios atraentes das alunas dos cursos acima do nosso.
                   Outra novidade: foi extinto o uniforme pesado do dólmã cáqui e gravata preta, substituído por uma camisa branca de mangas curtas, calça azul de brim, gravata azul e quatro listas nas mangas da camisa. Além do inigualável escudo no lado esquerdo, junto ao coração, com as letras LNP sobressaindo gravadas em alto relevo.
                    Mudaram quase todos os professores.
                    Matemática passou a ser dada pela jovem Therezinha Werneck, aliás irmã de um nosso colega de turma, o Francisco Roberto. Português, pelo professor Luiz Carlos. Francês, pela vistosa Dª Acyra. Michel Salim Saad, mais tarde deputado federal, no Latim. O professor Vieira continuou nos ensinando Geografia. História do Brasil entrou como matéria nova. Não me lembro quem era o professor ou professora. Desenho, acho que era o Mendel, não estou certo.
                     Nossa sala ficava agora no corredor que dava acesso à cantina. Nossa inspetora, magrinha e mirrada, foi Dª Edir, segundo me lembro.
                      Bem, agora com a mudança na constituição das turmas, vários outros alunos das demais classes vieram fazer parte da minha, que continuei na primeira por causa da ordem alfabética. Vieram o Antonio Matheus, que se tornou um dos meus melhores amigos até os dias de hoje; o Augusto Donadel, mais tarde excelente repórter da “Última Hora” e tragicamente assassinado no final dos anos 60; o Celso, o Mangelli e outros. Entre as meninas, a Carmem Regina, Amélia, Cyrene e outras cujos nomes não me recordo mais.
                   Naquele ano, a integração entre as turmas se intensificou. Foram organizadas excursões à Quinta da Boa Vista, Companhia Siderúrgica Nacional (em Volta Redonda), Petrópolis, com visitas à casa de Santos Dumont e Museu Imperial, ocasiões em que os alunos se conheceram melhor. Preparavam-se, também, as festividades para a formatura no final do ano, arrecadando-se dinheiro principalmente para o baile que, como era habitual, seria realizado no Clube de Regatas Icaraí.
                  Completava-se, assim, um primeiro ciclo de nossa vida estudantil. Vários daqueles alunos, que vinham na mesma turma desde o primeiro ano ginasial, iriam agora partir para outros destinos. Muitos dos rapazes iriam tentar a carreira militar, seja no Exército, Marinha ou Aeronáutica. Foi o caso do Lizardo, Marcos Honaiser, Luiz Antonio, Dráusio, Gusmão, Armandinho e alguns outros. Entre as moças, várias delas iriam para o Instituto de Educação cursar o normal, já que, naquele tempo, não era comum as mulheres cursarem faculdade. Era muito raro isso acontecer, sendo a carreira de professora primária a mais comum para elas.
                  Que pena, amizades que se consolidaram naqueles quatro anos iriam agora se desfazer, já que a distância iria nos separar.
                   Por isso, recebi com emoção o convite para comparecer à missa e ao almoço que iriam comemorar nossos cinqüenta anos de formatura no ginasial.
                   Separei algumas daquelas fotos amarelecidas pelo decurso do tempo, tirei algumas cópias no computador para mostrar a quem comparecesse nos dois acontecimentos.
                  Como estariam aqueles que, concluídas as festividades de formatura, nunca mais vi? Alguns prosseguiram comigo, no científico, outros continuaram no Liceu cursando o clássico, com poucos deles mantive o contato durante esses cinqüenta anos. Será se muitos compareceriam? Como teria sido a ação do tempo sobre suas fisionomias? Será se me reconheceriam, hoje que estou com vários quilos a mais e com muito cabelo de menos?
                   Ah! tempo, como és cruel!!! O que fazes com a gente!!!
                   Bem, deixei de refletir sobre o decurso do tempo e, na manhã seguinte, estava lá na igreja Porciúncula de Santana, em frente ao Campo de São Bento. A igreja estava cheia, repleta de fiéis habituais. Procurei um lugar vazio, sentando-me num banco no meio da multidão.
                   Com os olhos, tentei localizar algum ex-colega liceísta. Em vão, não reconheci ninguém. Antes de começar a missa, o Toninho Matheus, meu velho companheiro de quarto ano ginasial e hoje médico renomado, sentou-se ao meu lado. Também em vão procurou algum conhecido.
                   Só depois de começada a missa é que reconhecemos o Ronaldo, num banco do outro lado da igreja. Continuamos a procurar e não reconhecemos mais ninguém.
                   O padre mencionou que aquela missa era também celebrada em homenagem aos formandos de 1956, do Liceu Nilo Peçanha.
                   A cerimônia religiosa continuou bonita e emocionante. No final, o celebrante convidou os ex-liceístas para que comparecessem na frente da igreja, junto ao altar e comemorassem o acontecimento.
                   Eu e Toninho para lá nos dirigimos. Foi então que reconheci a Sanandá e o Armandinho. Mas, vários outros se abraçavam, cumprimentavam-se.
                  Quem eram? Só depois que dissemos nossos nomes é que soubemos quem éramos. O Antonio Barreto, o Carlos Roberto, o Luiz Antonio, o Marcos Paulista. Não consegui reconhecer ninguém, como acredito que eles também não me reconheceram.
                   No almoço, num restaurante em São Francisco, falei ainda com a Mariáurea, a Amélia, a Marilza, a Vanzer e a Tilda. Outros estavam presentes, mas, sinceramente, não os reconheci, nem pelos nomes.
                  Trocamos fotografias, soube que o Lizardo, a Maria Célia, a Regina Lúcia e a Regina Coeli haviam falecido. Relembramos os tempos felizes passados naquele casarão da Amaral Peixoto, mais tarde pintado de amarelo, como permanece até hoje.
                   Tempos alegres, sem os compromissos da vida adulta, em que nossa única obrigação era estudar. Coisa que aquele colégio nos ensinou a fazer muito bem. Se hoje a maioria de nós foi um vencedor na vida, muito devemos às exigências de Dona Jacira, ao rigor de Dona Anita, à doçura de Dona Estefânia, à paciência dos Professores Cousin e Vieira.
                  Certos momentos de nossa vida deveriam ser congelados no tempo e no espaço, para que ficassem perpetuados para sempre.
                   Os meus anos de Liceu seriam alguns deles.

2 comentários:

Carlos Duarte disse...

Os nomes das professoras de desenho e trabalhos manuais que você não se lembrou talvez tenham sido os seguintes:
Desenho: Dona Elza Bittencourt (que era mulher do Dr. Jayme Bittencourt, diretor do Liceu) Se não era ela talvez fosse o Professor Dakir Parreiras (filho do grande pintor niteroiense Antônio Parreiras).
Trabalhos Manuais: talvez fosse a Dona Iná de Carvalho Borges (mulher do "seu" Borges , que durante certo tempo foi Chefe de disciplina.
Você cita também o professor Mendel Koifman, de desenho, que traçava à mão livre no quadro negro um círculo perfeito, sem auxílio de qualquer instrumento, e ainda por cima colocava nele o centro.

Calfilho disse...

Obrigado, Caloga, pelo comentário e pelas observações feitas, que muito enriqueceram o conto