Toninho
aguardava tocar a sineta chamando os alunos para o início da aula.
Vários
meninos e meninas ali estavam, naquela espécie de varanda, mais uma sala de
espera ao ar livre, com uma grande mesa retangular ao centro e quatro bancos de
madeira, dois maiores ao longo e outros dois menores nas pontas. Todos
estudavam no mesmo horário, alguns na mesma turma, uns mais adiantados, outros
mais atrasados. A aula, para todas as classes começava às seis da tarde,
terminando dez minutos para as sete. A grande maioria tinha de onze a dezesseis
anos, quase todos estudavam em colégios de ensino secundário de Niterói, então
a capital do antigo Estado do Rio de Janeiro. A grande maioria, no Liceu Nilo
Peçanha.
Ingressavam
na Cultura Inglesa por determinação dos pais, já que o idioma era considerado
como muito importante naquela época, início de 1956. Os ginásios ensinavam o
francês, o inglês e o latim, mas de forma superficial, sem maior profundidade.
Já a Cultura Inglesa, filial da escola da Inglaterra e com sucursais em quase
todo o mundo, tinha um curso aperfeiçoado, que, se completados os sete anos,
dava direito, inclusive, a ser professor da língua em escolas brasileiras.
O prédio, um casarão cinza de dois andares,
ficava na rua Otávio Carneiro, nº. 83, em Icaraí, lado esquerdo da primeira
quadra de quem vinha da praia. As aulas, para a maioria das turmas, eram dadas
três vezes por semana: segundas, quartas e sextas. Para os mais adiantados, do
quinto ano em diante, apenas duas vezes, terças e quintas.
Toninho
já estava no segundo ano. Gostava muito da professora, Mrs. Lemgruber, uma
portuguesa simpática, com os cabelos começando a embranquecer, óculos que lhe
davam um ar severo e excelente professora. Assistia às aulas com assiduidade, o
que lhe servia de excelente reforço para o colégio, onde o ensino do idioma não
era tão proveitoso como ali.
Enquanto
aguardava o início da aula daquela quarta feira de abril de 1956, ele
conversava com alguns colegas de sua turma. Começou a reparar, entretanto, numa
moreninha miúda, cabelo tipo rabo de cavalo, olhos verdes cintilantes, sentada
à sua frente, também aguardando sua aula. Ela parecia muito tímida, pouco à
vontade junto àquelas pessoas, das quais talvez não conhecesse ninguém. Tinha
os olhos baixados sobre um livro de aula, não os desviava para ninguém.
Toninho, no verdor dos seus 14 anos completados no mês anterior, ficou
encantado com a menina.
Propositadamente,
enquanto conversava com um colega ao seu lado, fingiu deixar escorregar sua
caneta em direção ao livro que ela lia.
–
Desculpe, foi sem querer – disse, olhando timidamente para ela.
A
menina levantou rapidamente os olhos, baixando-os em seguida.
–
Por nada – respondeu.
Ele
tentou puxar conversa.
–
Você estuda em que turma?
Ela
continuou com os olhos enfiados no livro à sua frente. Respondeu, com voz um
pouco hesitante:
–
Entrei este ano, estou começando.
Toninho
parecia encantado com a garota, sua simplicidade, sua timidez. Ele, de sua
parte, também estava bastante nervoso, já que, como ela, era muito tímido.
Decidiu
alongar a conversa. Perguntou, o coração aos pulos:
–
Está gostando?
–
Sim, muito – demorou ela a responder.
A
sineta tocou, chamando os alunos para as respectivas salas de aula.
–
Até logo, prazer em te conhecer. Qual seu nome mesmo?
Ela,
ainda sem levantar os olhos para ele:
–
Selma...
–
O meu é Antonio. Antonio Carlos. A gente se vê outro dia.
x.x.x.x.x.x.x.x.
Na
sexta feira seguinte, pouco depois das cinco, já estava na sala de espera da
Cultura Inglesa. O local estava vazio, era muito cedo para as turmas que iriam
ter aula às seis da tarde. Ansiava por rever a menina, que povoara seus sonhos
naqueles dois últimos dias.
Morava
no centro de Niterói, naquela época uma cidade tranquila, de pouco trânsito
nas ruas. Por isso, ele e outros meninos e também meninas da sua idade iam para
o colégio e andavam pela cidade de bicicleta. Ladrão quase não existia, por
isso o cuidado maior que tinham com seus veículos era um frágil cadeado que
trancava a roda traseira. Daqueles antigos, redondos, sem corrente, apenas um
fecho vagabundo que pretendia trancar alguma coisa. Ele vinha da Amaral
Peixoto, a grande avenida que saía das Barcas e subia até o Hospital Antonio
Pedro, dali rumando até a rua Otávio Carneiro, em Icaraí, conduzindo sua
bicicleta Monark azul, aro 28. Às vezes, fazia um trajeto mais longo, passando
pelo Ingá, bairro de Niterói onde morara por dois anos, criado na rua, jogando
bola de gude, futebol descalço, pescando na Praia das Flechas, ali pertinho, no
início da rua, entre os hotéis Atlântico e Ingá. Nessas ocasiões, ia mais cedo
para a Cultura, só para passar alguns instantes com os antigos colegas da rua Nilo
Peçanha: Maurinho, José Carlos, Caoca, Ricardinho, Sérgio, Sebastião,
Valmir...
Os
outros alunos da turma das seis começavam a chegar. Então, ela também apareceu.
Para sua surpresa, montada em uma pequena bicicleta feminina, sem quadro, aro
24. Deixou-a encostada junto a várias outras que ali aguardavam seus donos,
sentou-se no longo banco de madeira, novamente em frente a ele.
“Deveria morar
ali por perto para vir sozinha de bicicleta, tão novinha”, pensou ele com
seus botões.
Cumprimentou-a
com um sorriso, que ela retribuiu, com uma ponta de indiferença. Ele
retraiu-se um pouco, ante a reação pouco amistosa que recebeu da menina.
Continuou a conversar com um colega sentado ao seu lado, olhando
disfarçadamente para ela de vez em quando. Como na quarta feira anterior, ela
enfiou os olhos no livro de aulas à sua frente, levantando-os apenas uma vez ou
outra, sem fixar-se em nada específico. Aparentava estar sem graça, pouco à
vontade. Aliás, uma das primeiras coisas que nela reparou foi seu olhar: vago,
sem direção, parecendo olhar para o nada...
Toninho
continuava a conversar com seu colega, fingindo estar muito interessado no que
o outro dizia. Seu pensamento, entretanto, estava paralisado, fixado naquela
moreninha de rabo de cavalo sentada à sua frente, que nem parecia perceber que
ele ali estava.
Tocou
a sineta para o término da aula anterior à deles. Mais dez minutos e ela tocaria
outra vez chamando os alunos para a turma das seis. Os alunos das cinco horas
deixavam suas salas, alguns pegavam suas bicicletas ali estacionadas e
deixavam o local.
Ele
conhecia quase todo mundo que estudava ali. A grande maioria era composta de
alunos do Liceu Nilo Peçanha, então o melhor colégio de ensino médio da cidade.
Outros, ele os conhecia do futebol que costumava jogar nos diversos campos
então espalhados por todo o território niteroiense, ou mesmo nas praias das
Flechas ou Icaraí. Outros mais ainda, do tempo em que morara no Ingá. Niterói,
em 1956, mesmo sendo capital do Estado do Rio de Janeiro, era uma típica cidade
de interior, mero dormitório daqueles que trabalhavam durante o dia na vizinha
Rio de Janeiro, então o Distrito Federal, a capital do País. Niterói, apesar de
ter vários bairros tradicionais, como Barreto, Engenhoca, Santa Rosa, Fonseca,
vivia mais em torno de sua zona sul, composta por Ingá e Icaraí. Os bondes
elétricos ainda trafegavam por suas ruas calçadas por paralelepípedos. São
Francisco, Charitas, Piratininga, Itaipu, Itacoatiara eram locais distantes, de
difícil acesso, com poucos moradores, sem nenhuma infraestrutura de esgoto e
água.
Ali,
Toninho vivia seus 14 anos de idade...
–
Quantos anos você tem? – perguntou a Selma, já passado mais de um mês daquela
breve primeira conversa que tiveram na sala de espera da Cultura.
Ela
enrubesceu, ficou sem graça. Com sua timidez habitual, respondeu baixinho:
–
Doze...
Ele
também ficou vermelho, sem saber o que dizer. “Tão novinha”, pensou... Perguntou, para não fugir da conversa:
–
Mora aqui perto? Te vejo chegar sempre de bicicleta...
Ela,
ainda sem fitá-lo nos olhos, respondeu:
–
Não, moro no centro, perto do Jardim São João.
Ele
ficou mais vermelho ainda. Comentou, sem pensar direito no que dizia:
–
Puxa, perto de mim. Eu também moro no centro.
Emendou:
–
Mas, você não tem medo de vir de bicicleta da sua casa até aqui, em Icaraí? A
aula termina quase às sete, já está escuro.
Ela
respondeu, arriscando um primeiro olhar para ele:
–
Não, não tem perigo, já estou acostumada.
Mesmo
assim, ficou preocupado. Não sabia o itinerário que ela fazia, havia uns
trechos de ruas que não eram calçados, quando chovia era lama pura, além da
iluminação ser bem precária. A rua São Sebastião, por exemplo... ou a Fagundes
Varela...
Mas,
Niterói dos anos 50 era uma cidade onde se podia andar por qualquer rua,
qualquer viela, sem maiores preocupações. Típica cidade interiorana, apesar de
tão próxima do Rio de Janeiro, separadas as duas apenas pela baía de
Guanabara.
x.x.x.x.x.x.x.
Os
dias se passaram, semanas, poucos meses...
Houve
um breve período de férias na Cultura, apenas vinte dias, no mês de julho...
Toninho não via a hora em que as aulas iriam recomeçar, queria revê-la, ouvir
sua voz, olhar nos seus olhos... Mas, nem sabia direito onde ela morava, ficava
imaginando onde seria... Uma vez, ela disse por alto que morava perto do campo
do Niteroiense, ali na esquina da Gomes Machado com Visconde de Sepetiba,
campinho onde já jogara várias partidas de futebol pelo Liceu e por outros
times que o convidavam para jogos amistosos...
Bem,
o período de férias passou rapidamente, as aulas da Cultura Inglesa retornaram
para completar o resto do ano.
Toninho
já conversava agora com Selma mais descontraído, ela às vezes chegava a olhá-lo
rapidamente de frente, olho no olho. Ele ficava encantado com seu olhar.
Aqueles olhos verdinhos, bem claros, penetravam-lhe fundo na alma, mexiam com
o menino de quatorze anos. Seu pai também tinha olhos verdes, ainda mais
claros que os dela, mas nunca prestara muita atenção nisso. Já o olhar dela,
quando, nas poucas vezes em que se fixavam um no outro, era impressionante,
deixava-o tonto de emoção.Parecia que, quando ela o olhava, conseguia
atravessar seu corpo, fitando alguma coisa por trás dele, como se fosse uma
nuvem flutuando no ar. Ela raramente olhava dentro de seus olhos diretamente,
parecia olhar através deles.
Quatorze
e doze aninhos...
Então,
já em setembro de 1956, depois de já se cumprimentarem e conversarem até com
certa animação, enquanto aguardavam a hora das respectivas aulas, ele bolou um
plano para saber onde ela morava. Ela nunca dizia, apesar dele indagar,
procurar saber. Queria saber mais dela, conhecê-la melhor, quem sabe serem
verdadeiros amigos no futuro.
–
Perto do Jardim São João – respondia ela evasivamente.
“Por que eu tenho que dizer a ele onde moro?
Será que ele vai querer se enfiar na minha casa?”, pensava ela.
Numa
sexta feira, último dia de aula na Cultura na semana, ele chegou cedo, por
volta de quatro e vinte da tarde. Esvaziou os dois pneus de sua bicicleta,
retirou as válvulas de tripa de mico que vedavam a saída do ar. Sentou-se no
banco de madeira da sala de espera, aguardando os demais alunos da turma das
seis.
Quando
Selma chegou em sua pequena bicicleta, encostou a mesma junto às outras que
ali se encontravam e foi sentar-se em seu lugar de sempre, em frente a Toninho.
Cumprimentaram-se rapidamente, ele já conversava com outro rapaz sentado ao seu
lado direito.
--
Oi, Selma, queria te pedir um favor --- disse ele, sem coragem de encará-la.
Ela,
surpresa, olhou para ele timidamente. Perguntou:
--
O que foi? Precisa de alguma coisa?
Ele
demorou a responder. Finalmente, disse:
--
Queria te pedir uma carona na tua bicicleta... Furaram os dois pneus da minha –
apontou para a velha Monark, jogada ali num canto.
Ela
relutou.
--
Por que você não vai de trolley?
Ele,
rápido, retrucou:
--
Estou sem dinheiro. Nunca trago dinheiro para aqui.
Ela
ficou em silêncio.
A
sineta tocou, chamando os alunos para as aulas.
Quando
todos já se levantavam, dirigindo-se para as respectivas salas, ela disse, sem
encará-lo:
--
Está certo, te dou uma carona...
x.x.x.x.x.x.x.x.x
Ficaram
amigos depois daquele dia.
Para
ele, foi uma das melhores noites de sua vida...
Sim,
noite, pois quando pegaram a bicicleta, ele conduzindo, ela atrás, já estava
escuro, mais de sete da noite... Saíram da Otavio Carneiro, passaram pela Praia
de Icaraí (antes de ser Alberto Torres), dobraram à esquerda, na direção de
Itapuca e do Ingá...
Ela
não dizia nada, devia estar pensando; “Minha
mãe sempre me disse para não conversar com estranhos”...
Bem,
ficou quieta, sem dizer uma palavra. Ele também, mudo totalmente. Subiram a
Paulo Alves, pegaram a São Sebastião, chão de terra batida, uma subida de um morro
que havia ao lado, conhecido como do Estado... Ele suava, transpirava bastante
para fazer a pequena bicicleta subir a íngreme ladeira. Finalmente, esbaforido,
chegaram à Andrade Neves, depois a Almirante Tefé, o Rink. Descendo a Visconde
de Uruguai, chegaram à Amaral Peixoto.
Ela
perguntou:
--
É aqui que você mora, não é?
--
Sim -- disse ele, olhando para o edifício na esquina.
--
Então, me deixa aqui, que sigo sozinha – retrucou ela.
Ele
não perderia aquela oportunidade. Apesar de toda sua timidez, insistiu:
--
Não, deixa eu te levar em casa, me diz onde é.
Ela
ficou sem jeito de responder, não queria que pensasse que era mal educada.
--
Ali, na frente, aquela ruazinha junto do Jardim São João, junto do campinho do
Niteroiense... Vai pedalando, eu te mostro -- respondeu.
Ele
pedalou, chegaram.
--
Da. Cacilda, muito prazer – estendeu-lhe a mão, quando a mãe de Selma veio recebê-la
no portão da casa da Alcides de Figueiredo. – A Selma já me falou muito sobre a
senhora.
Era
uma mulher bonita, olhos verdes, escondidos atrás de duas grossas lentes de
óculos escuros. Loura, altura mediana, magra, muito bem vestida. Olhou com
certa curiosidade para ele, que acabara de encostar a bicicleta de Selma no
muro da casa.
--
Esse é o Antonio Carlos, mamãe, um colega da Cultura Inglesa. Dei-lhe uma carona
pois furaram os dois pneus da bicicleta dele.
--
Gente ruim essa – comentou Cacilda. – O prazer é todo meu, Antonio. Não quer
entrar, tomar um café?
Ele
olhou para Selma, como que esperando sua aprovação. Ela nada disse, apenas
retribuiu seu olhar.
--
Se não for incomodar, agradeço, Da. Cacilda – respondeu ele.
Entrou,
bebeu o café, sentou-se no sofá da pequena sala, onde pontificava um grande
piano como mobília principal. Conversaram por pouco tempo, Toninho ficou impressionado
com a mãe da menina, que parecia ser pessoa muito inteligente, falando com
desenvoltura e sendo precisa em suas opiniões.
Logo
despediu-se, pois achava que não tinha mais assunto para conversar com as duas.
Foi
a pé para a Amaral Peixoto, o coração aos pulos, pleno de satisfação e alegria.
x.x.x.x.x.x.x.x.
Surpresa
maior...
Uma
semana depois, quando deixava o Liceu, após o término das aulas do turno da
manhã, pouco antes do meio dia, ele viu Selma chegando junto ao portão grande
que havia ao lado da entrada principal do colégio. Ele conversava com alguns
colegas de turma, enquanto saboreava um picolé, que acabara de comprar na
carrocinha do Paulino, um “kiboneiro”, que fazia ponto em frente ao Liceu...
Ele,
quando a viu, ficou surpreso:
--
Você também estuda no Liceu? Por que não me disse antes? – perguntou.
--
Você não me perguntou... – respondeu Selma, com um sorriso maroto.
Ele
estudava, naquele ano de 1956, no quarto ano ginasial do Liceu, no turno da
manhã. Ela, no turno da tarde, cursando a segunda série.
O
coração dele voltou a pular dentro do peito. “Legal, agora poderia ficar mais perto dela, estudavam no mesmo colégio,
o melhor de Niterói”, pensou rapidamente.
--
Puxa, conversamos tanto tempo na Cultura e só agora descobri que você estuda no
Liceu.
Ela,
friamente, olhar fugidio, como era seu jeito:
--
É verdade... Bem, tenho que ir, minha primeira aula vai começar.
Despediram-se
com um formal aperto de mãos.
x.x.x.x.x.x.x.x.
Toninho
não cabia em si de satisfação... afinal, ela também estudava no seu colégio.
Ele adorava o Liceu, onde ingressara em 1953, após passar no exame de admissão.
Cursara as três primeiras séries do curso ginasial no turno da tarde e, agora,
em 1956, estava terminando o quarto, no turno da manhã, o sonho dos alunos que
estudavam à tarde: o convívio mais direto com as coisas do colégio, com os
alunos do científico e clássico, mais velhos, mais experientes, onde poderiam
realmente participar das atividades sociais e esportivas promovidas pelo Grêmio.
Ele
era fã de futebol, jogava até razoavelmente bem para os garotos de sua faixa de
idade, fora um dos líderes do time da rua Nilo Peçanha, quando morara por três
anos no Ingá. Também jogava futebol de salão e tênis de mesa no Canto do Rio,
clube que ficava perto do centro da cidade, onde morava naquele ano de 1956.
Por
isso, ele e vários outros que chegaram ao turno da manhã procuraram se enturmar
com os mais antigos, entrando numa ou outra pelada que eram jogadas com entusiasmo
nas quadras de basquete e vôlei, nas horas do recreio ou quando havia algum
horário vago, entre uma aula e outra. Invariavelmente, voltavam para as salas
com o uniforme todo suado, às vezes marcado por uma bola que lhes manchava a
camisa. Aliás, no turno da tarde, até 1955, os alunos usavam um pesado
uniforme, calça, camisa, gravata e dólmã cor de burro quando foge, um misto de
amarelo e marrom, chamado na época de cor cáqui. Só em 1956 o Liceu mudou seu
tradicional uniforme para outro mais leve: calça azul marinho, camisa branca,
gravata azul. Para os ginasianos, a indicação da série que cursavam vinha em
braçadeiras, colocadas no fim das mangas curtas: uma lista, primeira série;
duas listas, segunda até a quarta lista, que correspondia ao quarto ano
ginasial.
Para
os alunos do científico e clássico, a indicação vinha em estrelas bordadas sobre
os ombros: uma estrela, primeiro ano; duas ou três estrelas, segundo e terceiro
anos.
As
meninas desde o ginásio usavam saia azul, blusa branca, a indicação da série em
ambos os braços...
Por
isso, quando Toninho viu Selma usando aquele uniforme tão querido para ele, a
braçadeira indicando que ela estudava na segunda série do ginasial, não coube
em si de contentamento... Afinal, agora, além da Cultura, poderia vê-la mais de
perto, no seu colégio...
x.x.x.x.x.x.x.
Visitou-a
outras vezes, quando passava por sua rua, querendo saber mais dela...Às vezes,
Da. Cacilda estava em casa, mandava-o entrar, tomar um refrigerante. Outras,
não havia ninguém em casa, ele passava com a bicicleta em frente ao portãozinho
da casa da Alcides de Figueiredo, voltava para o apartamento da Amaral Peixoto,
um pouco frustrado por não tê-la visto naquele dia. Outras vezes, entretanto,
encontrava-a em casa, quando conversavam um pouco mais livremente.
Ela
contou-lhe que tinha um irmão, mais velho que ela, que iria fazer concurso para
a Aeronáutica, então carreira ambicionada por vários jovens que terminavam o
ginasial. Só o viu uma vez, alguns anos depois, ele já
fardado com o uniforme da Força Aérea Brasileira.
Mas,
o ano de 1956 terminava, Toninho iria colar grau no ginasial. Festa de formatura,
missa na Catedral do Jardim São João, baile no Regatas...
Tudo
passou tão rapidamente, perdeu a noção da velocidade do tempo...
Em
fevereiro de 1957, seu pai decidiu levar a família toda para a Europa, onde,
anualmente, fazia um curso em escolas de medicina europeias... Foram seu pai,
sua mãe, seus irmãos, sua avó... Só retornaram no fim de abril, tendo ele
perdido um mês e meio de aulas no Liceu, onde já cursava o primeiro ano do
então curso científico. Conversou com os professores, eles concordaram em repetir
para o mês de abril a mesma nota que tirasse nas provas de maio. Era bom aluno,
cursara todas as quatro séries do ginasial na primeira turma, que era
considerada pelos demais alunos como a turma dos CDFs. E, agora, no científico,
quando havia apenas duas turmas, também fora colocado na primeira, devido às
boas notas que tirara no ano anterior.
Durante
a viagem, nas poucas ocasiões em que não tinha nada para fazer, seu pensamento
retornava para a moreninha de olhos verdes e cabelo rabo de cavalo de Niterói.
Quando voltou, procurou logo visitá-la, levando alguns presentes que comprara
para ela e para a mãe, que serviram como pretexto da visita. Conversaram
bastante sobre a viagem, ele contou-lhe minuciosamente os detalhes das visitas
a Nápoles, Roma, Milão, Paris e Londres. Como foram úteis os dois anos de
Cultura Inglesa, já que seu pai só falava o francês. E, também, como tanto lhe
serviram os quatro anos de francês do Liceu, principalmente os três primeiros,
do turno da tarde, com Da. Estefania, sua doce professora de cabelos
grisalhos... Seu pai saía do hotel para o curso no Bois de Boulogne por volta
das oito da manhã e só retornava lá pelas oito da noite. Era ele, Toninho, quem
levava a mãe, a avó e os irmãos gêmeos para conhecerem as atrações de Paris:
museus, monumentos, passeios, etc... E ele tinha apenas quatorze anos naquela
época, acabou completando os quinze num jantar com o pai e a mãe num
restaurante do Champs Elysées...
Ela
ouvia tudo com atenção, mas não demonstrava maior empolgação, maior emoção...
Aliás, essa era uma de suas características: ouvia tudo, atenta, mas distante,
com aquela névoa que parecia encobri-la quando os dois conversavam... Talvez
fosse a forma que encontrava para manter uma certa distância entre ela e as
outras pessoas...
Voltaram
à rotina de sempre. Liceu, Cultura, às vezes ia visitá-la, ouvi-la tocar piano,
conversar um pouco... Sentia-se cada vez mais atraído pela menina, mas ela não
demonstrava ter o mesmo sentimento em relação a ele. Tratava-o bem, parecia
gostar de conversar com ele, mas parecia mais preocupada com seus estudos. Não
se abria com ele, não era expansiva. Ele, por sua vez, tímido como era, também
não ousava fazer perguntas mais íntimas sobre ela, sua família...
Toninho,
naquele ano, começou a se interessar pelo Grêmio do Liceu, então acéfalo, sem
praticamentequalquer atividade. Uniu-se a outros colegas da sua e de outras
turmas, que juntos participavam de um “racha” nos horários de recreio ou de
aulas vagas e decidiram revitalizar o Grêmio. Lançaram um nome de um aluno mais
antigo, então no terceiro científico paraa presidência, e, numa eleição de
candidato único, foi empossada a nova diretoria para o ano de 1957.
Introduziram,
na hora do recreio, inicialmente no turno da manhã, um breve programa que
Toninho e um colega de turma, Irapuam, apresentavam: a “Hora do Grêmio”, quando
eram abertas e fechadas as janelas da “Broadway”, que davam para o pátio onde
alunos e alunas desfilavam, comiam suas merendas e conversavam animadamente. O
programa durava 20 minutos, justamente o tempo destinado ao intervalo do
recreio e tocava discos 78 rotações dos sucessos da época, principalmente
rock: Elvis, Little Richard, The Platters, além de transmitir parabéns por
algum aniversário de liceísta ou dar notícias das atividades sociais,
esportivas e culturais do Grêmio Nilo Peçanha...
No
ano seguinte, 1958, quando Toninho já cursava o segundo ano científico, a “Hora
do Grêmio” também foi estendida ao recreio do turno da tarde, fazendo enorme
sucesso entre os alunos (principalmente as meninas) do ginasial, que tinham
como seus maiores ídolos aqueles colegas mais velhos do científico ou clássico,
que estudavam pela manhã.
Finalmente,
a “Hora do Grêmio” também foi apresentada em alguns dias da semana, no turno
da noite, já em 1959.
Selma
estudava ainda no turno da tarde, em 1957.
Nesse
ano, Toninho ainda a visitava durante a semana, na parte da tarde. Dona Cacilda
tratava-o muito bem, afinal a filha tinha poucos amigos ou amigas e aquele menino
vinha conversar com Selma em casa, nada de encontros na rua. Ela trabalhava durante
o dia, Toninho nunca perguntou onde e nem qual sua profissão, mas às vezes
estava em casa à tarde. Simpatizou com o menino e achou que ele parecia ser uma
boa companhia para a filha, muito educado, respeitoso, cerimonioso às vezes.
Ele,
por sua vez, gostava muito de conversar com ela, ouvir com atenção o que
falava. Aliás, uma das coisas que sempre fez na vida foi ouvir os mais velhos,
tentando absorver suas experiências de vida. Assim era com sua mãe, seu pai,
seu avô materno. No Liceu, procurava sempre andar com a turma dos alunos de
séries mais adiantadas, jogava futebol com rapazes mais velhos, apesar de ser
um garoto franzino aos quinze anos. Os papos com dona Cacilda eram demorados e,
para ele, muito proveitosos, abrindo-lhe vários caminhos para a vida adulta
que já não estava muito longe.
Já
em 1958, quando cursava o segundo científico e se dedicava de corpo e alma às
atividades do Grêmio, ia ao Liceu pela manhã para suas aulas e à tarde para
apresentar a “Hora”. Praticamente, deixou de visitá-la durante a semana. Às
vezes, quando não tinha jogo por seu time de futebol ou não ia à praia com
alguns amigos, passava na casa dela num fim de semana ou outro. Convidava-a
para alguma festinha na casa de uma colega de turma, para tomar um sorvete. Ela
às vezes aceitava, outras inventava uma desculpa e não ia. Dona Cacilda
acompanhava tudo de perto, vigilante na educação e nos cuidados com a filha.
Aquele
tempo passou rapidamente, quase não percebeu.
Toninho,
agora, totalmente absorvido com as atividades no Grêmio, que promovia partidas
amistosas de futebol de salão, vôlei masculino e feminino com os outros
colégios de Niterói, começou a deixar os estudos para um segundo plano. Fora as
excursões esportivas para o Colégio Naval, Marambaia e Cachoeiro do
Itapemirim, quando vários dias de aula foram perdidos. Suas notas começaram a
cair vertiginosamente e aquele aluno exemplar do ginasial transformava-se agora
num estudante de aproveitamento apenas regular.
Não
tinha tempo livre para mais quase nada.
Além
das aulas regulares do curso científico do Liceu, pela manhã, ia para casa,
almoçava rapidamente e voltava para a salinha do Grêmio na parte da tarde, para
atender os alunos desse turno na venda de passes de trolley com desconto para
estudantes e outras atividades esportivas, além de apresentar a “Hora do
Grêmio”, no intervalo para o recreio.
Às
terças e quartas, tinha aula na Cultura Inglesa, por volta das quatro da tarde.
E, de segunda a sexta, das seis às oito da noite, cursava o pré-vestibular para
medicina, que fazia no Curso Pasteur, na rua Marquês do Paraná. Seu pai era
médico e muito o influenciou para que também cursasse medicina, por isso optou
por fazer o científico quando terminou o ginasial.
Assim,
só via Selma uma vez ou outra no recreio da turma da manhã, onde ela também já
estava, cursando a quarta série do ginasial.
Um
dia, pela manhã, acabara de jogar uma pelada na quadra de basquete do Liceu,
quando a viu sentada num dos bancos de cimento do pátio, lendo um livro. Foi
até o pequeno tanque que ali havia, ao lado do banco onde ela estava, lavou o
rosto e molhou os cabelos em desalinho.
Ela
estava linda, a pele moreninha contrastando com aqueles maravilhosos olhos
verdes que tanto o atraíam. A blusa do uniforme do Liceu, branquinha, dava-lhe
um aspecto ainda mais encantador, o cabelo penteado naquele rabo de cavalo característico
realçava a beleza de seu rostinho de criança.
Subitamente,
sem saber até hoje o porquê daquela atitude que tomou, virou-se para ela e
perguntou de uma só vez, as palavras atropelando-se em sua boca:
--
Selma, a gente se conhece há alguns anos. Acho que a gente já está na época de
pensar em alguma coisa mais séria. Vamos começar a namorar?
Ela
levantou os olhos do livro que lia e respondeu simplesmente, sem qualquer
emoção na voz, aquela névoa característica envolvendo-a:
--
Não.
Ele
ficou paralisado, sem saber o que dizer. Demorou algum tempo para recuperar o
controle. Depois, apenas disse:
--
Tudo bem, eu quase que esperava essa resposta. Pode ficar tranquila que nunca
mais repito essa pergunta.
“Bem – pensou consigo mesmo – fiz a tentativa, agora já sabia que ela não
tinha por ele o mesmo sentimento”. “Dali
para a frente, só a trataria como uma irmã mais nova, desistiria daquela
história de namoro”.
Não
era o caso da fábula da raposa e das uvas, de autoria de Esopo e reescrita por
La Fontaine. É claro que ficou frustrado com a resposta da menina, pois
acreditava sinceramente que o que sentia por ela era correspondido. Mas, por
outro lado, teve uma sensação de alívio. Nunca pensara seriamente em ficar
amarrado a algum namoro naquela fase da vida, quando tinha apenas dezesseis
anos e ansiava por curtir aqueles momentos maravilhosos de sua adolescência:
festas, praia, futebol, uma cervejinha aqui, outra ali, até um porrezinho
eventual, sem compromissos, sem responsabilidade. Intimamente, ele, que nunca
namorara, não sabia como ira comportar-se com aquela rotina de visitar a namorada
terças e sábados, irem a um cinema de mãos dadas, como era o costume da época.
Não era um menino rebelde, mas bem que gostava de uma farrinha. E o Liceu,
naquele fase de sua vida, bem que lhe proporcionava isso tudo.
Seus
colegas mais próximos já namoravam meninas mais novas ou mesmo algumas da
mesma turma, por isso ele foi impelido a fazer a proposta de namoro a Selma.
Agora que ela a recusara, sentia-se liberado para curtir seus anos dourados.
Naquele
dia, logo após a negativa de Selma, voltaram a conversar normalmente sobre
outros vários assuntos, como se aquele pequeno diálogo que tiveram momentos
antes nunca tivesse acontecido.
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1959
chegou, era o último ano de Toninho no Liceu. Quando chegou novembro, houve a
colação de grau do curso científico, com a entrega do diploma numa bela solenidade
no Teatro João Caetano e o baile de formatura no Clube de Regatas Icaraí.
Toninho,
muito elegante, trajando um “summer” branco, o topete tipo Elvis no alto da
testa, dançava a valsa pelo amplo salão
do clube.. Sua madrinha, girando com ele pelo salão, era Selma, também num
elegante vestido branco...
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A
vida seguiu, ele ainda continuou no Liceu por mais um ano, 1960, mesmo após ter
entrado para a Faculdade de Direito (abandonou a ideia de cursar medicina,
contrariando a vontade do pai). Orientava e ajudava os novos diretores do
Grêmio, já então uma grande força no cenário estudantil do Estado do Rio de
Janeiro.
Ela
concluiu o ginasial, começou a cursar o clássico, pois também pretendia fazer
vestibular para a Faculdade de Direito de Niterói.
Às
vezes ele ainda a visitava, batiam longos papos. A afinidade entre eles era
muito grande, os dois se entendiam muito bem.
Um
dia, numa dessas suas visitas, dona Cacilda comentou:
--
Puxa, eu estava observando a conversa de vocês dois... Há quanto tempo vocês se
conhecem?
Ele
pensou um pouco antes de responder:
--
Uns quatro ou cinco anos, dona Cacilda. Eu conheci Selma na Cultura, em 1956,
acho que foi isso... disse, em tom meditativo.
--
Foi isso mesmo – retrucou Selma na hora. -- Em 1956.
--
Pois parece que vocês se conhecem há muito mais tempo. Tem ocasião que eu
reparo que quando vocês conversam, principalmente quando estão entre outras
pessoas, vocês nem precisam de palavras para dizer o que pensam. Um olha para o
outro, como se adivinhasse o que cada um de vocês dois estava pensando--
continuou dona Cacilda.
“Engraçado – imaginou Toninho – parecia que aquilo era mesmo verdade”. “Os dois se davam tão bem, que às vezes as
palavras eram desnecessárias quando estavam numa conversa. Parecia que um já
sabia antecipadamente o que o outro pensava, bastava uma simples troca de
olhares entre eles”. “Na realidade, tudo aquilo se confirmava: pareciam muito
mais dois irmãos, que já tinham convivido juntos desde o nascimento”.
Toninho
engoliu em seco, ela pareceu não entender o que a mãe dissera.
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Depois
que entrou para a faculdade, só a via esporadicamente.
Uma
vez em Nova Friburgo, quando ali ficou alguns dias e ela estava numa casa de
parentes ou amigos.
Uma
outra, quando ela pediu sua ajuda para fazer entrar um amigo num baile de
Carnaval no Canto do Rio, clube do centro de Niterói.
Depois,
passado algum tempo, ele já tinha pouco mais de 20 anos, num baile do clube
Pioneiros, no bairro Vital Brasil, quando Toninho dançou com dona Cacilda e relembraram
os dias tranquilos de antigamente.
Dona
Cacilda foi procurá-lo uma vez no emprego dele, em 1964. Saíram, foram fazer um
lanche na leiteria Brasil, na rua da Conceição, onde conversaram por mais de
uma hora.Na época não entendeu direito o motivo daquela visita, mas aquela
conversa foi muito útil para ele, que havia perdido o pai pouco menos de um ano
antes, num trágico acidente, e estava meio desorientado sobre qual rumo a
tomar na vida, como planejar seu futuro. Ele gostava de conversar com ela, que
lhe fez várias observações sobre aquele momento de incerteza. Ele ouviu tudo
com muita atenção e, nos anos seguintes, orientou sua vida seguindo muita coisa
do que dela ouvira. Foi
a última vez que a viu.
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Ele
casou com outra, tiveram vários filhos.
Ela,
por sua vez, também casou com outro e também teve filhos.
Só
se viram novamente, quase cinco décadas depois, no aniversário de setenta anos
de um amigo comum.
Ela,
acompanhada do marido. Ele, da mulher.
Ele,
com muito menos fios de cabelo na cabeça, já ficando grisalhos, e vários quilos
a mais no corpo... Ela, ainda mantendo a mesma silhueta magrinha,
os mesmos cintilantes olhos verdes, só o cabelo já não era mais o rabo de
cavalo, agora cortado curto em cima dos ombros. A mesma nuvem pairando sobre
ela...
Cumprimentaram-se,
trocaram um beijo em cada lado da face...
Ele
sorriu e matutou consigo mesmo:
“Foi a primeira
vez que trocaram um beijo...”.
Ao
fim da festa, os dois casais se despediram.
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E,
como nos livros de contos de fadas, viveram felizes para sempre...
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