quarta-feira, julho 25, 2007

COISAS DE GÊNIO...

COISAS DE GÊNIO





Era o maior time da época... Talvez, do mundo todo, só o Santos de Pelé conseguia enfrentá-lo de igual para igual... Manga, Cacá, Zé Maria, Nilton Santos e Rildo; Pampolini e Didi; Garrincha, Amarildo, Quarentinha e Zagalo... (alguns nomes podem estar errados, mas esse era o time-base).
O ano era 1962... O Brasil se sagrara, recentemente, bicampeão do mundo no Chile...
E, a maior estrela da seleção pertencia ao Botafogo... MANÉ GARRINCHA... Fez gol de cabeça, de falta, entortou todo mundo, chegou até a ser expulso... Ele, logo ele, que não ofendia ninguém, que não brigava em campo, que apanhava dos medíocres laterais esquerdos sem reclamar, sem revidar... Mas, com a contusão de Pelé, logo no segundo jogo da Copa, chamou ele para si a responsabilidade de conduzir a seleção... E isso, numa equipe que tinha Gilmar, Djalma Santos, o monstro Nilton Santos, o maestro Didi, o guerreiro Zito e outros inesquecíveis bicampeões...
Garrincha fez de tudo... Foi craque, gênio, moleque, responsável e também não...
E, no Brasil, todos comemoramos o bicampeonato mundial...
Voltou ele à rotina do seu Botafogo... O time, que já havia sido campeão em 1961, estava embalado na luta pelo bi... Garrincha, "acabando" a cada jogo... Era o maior jogador brasileiro da época, apesar de Pelé, com seus apenas 21 anos...
As torcidas iam aos campos só para vê-lo jogar... Todas as torcidas, não só a do Botafogo... Tarde de domingo, Garrincha em campo, os pais preferiam levar os filhos aos estádios do que ao cinema, ao circo, ao Jardim Zoológico, ou a qualquer outro divertimento... O "show" de bola que ele dava nos gramados suplantava, de longe, qualquer outro espetáculo... Foi por causa dele que a torcida do Botafogo cresceu tanto... Os meninos que acompanhavam os pais para ver Garrincha jogar, são os botafoguenses fanáticos dos dias de hoje...
Todos os torcedores, todos os jogadores sabiam o que ele ia fazer quando tinha a bola dominada em seus pés... O drible rápido para a direita, a corrida fulminante que ninguém conseguia parar, o cruzamento certeiro para o meio da área... Ali, quase sempre, Quarentinha ou Amarildo conferiam... Às vezes, até, era irreverente... Não contente com o primeiro drible, o lateral esquerdo já batido, ultrapassado, ele parava no meio do pique para o gol, dominava a bola com delicadeza e chamava o adversário para um novo drible (Coronel, do Vasco, que o diga...).
Em novembro de 1962, o Botafogo foi a Teixeira de Castro enfrentar o Bonsucesso, pelo Campeonato Carioca. Estadinho pequeno, lotado, torcida praticamente dentro do campo, um frágil alambrado a separar as arquibancadas da linha lateral... Os torcedores, a maioria botafoguenses, mas também em grande número, a torcida do Bonsucesso, clube de prestígio na época...

* * *

VESTIÁRIO DO BOTAFOGO: acanhado, sem conforto, o time, já uniformizado, fazia o aquecimento... Nilton Santos comandava o polichinelo... Todos já transpiravam, prontos para o jogo...
Menos Garrincha... Sozinho, sentado num banco de madeira, sem camisa, colocava as meias... Assobiava, fora daquilo tudo... Pegou uma das chuteiras, bateu com as travas no chão, olhou distraidamente para todo aquele movimento... Seus companheiros continuavam com o polichinelo, gritando em voz alta: “um, dois, três, quatro, cinco, seis, o Bonsuça é "freguês"... Os dirigentes, eufóricos com a campanha da equipe, davam entrevistas às estações de rádio, distribuíam tapinhas nas costas dos jogadores...
- "Vamos lá, vamos lá, é p'ra ganhar...".
- "Não pode perder, perder p'ra ninguém...", cantavam outros o trechinho do hino do clube...
Garrincha, sério no seu canto, sem parar de assobiar, calçava agora suas chuteiras...
Vestiu a camisa nº 7, a gloriosa... Nilton Santos, seu compadre, que já conhecia bem suas manhas, chamou:
- Anda Mané, vem logo, "esquenta" um pouquinho...
Ele, que não gostava de fazer exercícios físicos, bateu com as chuteiras no chão e fez um aceno com a mão direita:
- Já vou, espera aí, essa chuteira tá apertada...
Nilton sorriu, sabia que ele iria "enrolar"...

* * *

Entraram no vestiário vários dirigentes do Bonsucesso. O Presidente, o Diretor de Futebol, o técnico e outros mais... Dirigiram-se aos colegas botafoguenses... Enquanto conversavam em voz baixa, olhavam todos para Garrincha, que, em seu canto, urinava tranqüilamente... Pareciam ter algum receio de se dirigir a ele... Olhavam-no com respeito, para o maior jogador de futebol do mundo, que, humildemente, mijava num vestiário de quinta categoria, de um pequeno clube de subúrbio carioca... Ah! se Garrincha estivesse jogando na Europa...
Os dirigentes do Botafogo chegaram até perto dele. Um deles falou:
- Mané, o pessoal do Bonsucesso veio pedir p'ra gente falar com você não forçar muito em cima do lateral esquerdo deles...
Garrincha olhou para eles, coçou a orelha e perguntou:
- Ué, por quê? O que é que eu faço?
Um dos dirigentes respondeu:
- É que esse lateral a gente tá pensando em contratar, já que o Rildo vai p'ro Santos... -- E, eles estão doidos p'ra vender... Ele tem 19 anos e promete muito...
Mané olhou novamente, já agora desconfiado... O dirigente logo emendou, temeroso de sua reação, inclusive se ele fosse comentar com Nilton Santos, indiscutivelmente o grande líder da equipe, com total ascendência sobre os outros jogadores:
- Finge que você sentiu alguma coisa, passa a mão no joelho, cai no chão, mas não parte p'ra cima dele... Como eu te disse, ele promete e o preço do passe não vai custar caro...
Garrincha coçou novamente a orelha direita... Perguntou, sério:
- O resto do time sabe disso? Olha o bicampeonato...
- Não, ninguém vai saber. Além do mais, o jogo é fácil...
- Bem, se valer a pena p'ro Botafogo... tudo bem - completou, fazendo um aquecimento de mentirinha...


* * *

Os times entraram em campo... O estadinho quase veio abaixo... A torcida do Bonsucesso, fanática, provocava a do Botafogo... Antigamente, antes da maldição da caixa d'água que desabou sobre o futebol carioca, os jogos dos times pequenos contra os grandes, nos estádios daqueles, eram uma verdadeira festa... Não havia clube pequeno sem torcida... Bonsucesso, Madureira, Canto do Rio de Niterói, Olaria, São Cristóvão... Hoje, o deserto, os estádios vazios, os clubes falidos...
Garrincha é vaiado logo ao sair do vestiário, próximo à torcida leopoldinense...
Todos torciam pela nova estrela do Bonsuça... Rápido, ágil, um crioulinho atrevido, todos confiavam que ele iria parar Mané... Jordan, Altair, Coronel, grandes laterais esquerdos, até com passagem pela seleção, esses não conseguiram, mas a cria da casa conseguiria... Até onde ia o fanatismo das torcidas...
Foguetes, torcida empolgada, todos felizes da vida, afinal de contas éramos bicampeões do mundo... O centro mundial do futebol era aqui... Todos tinham que se render à evidência maior...
O jogo começa... Didi lança Garrincha... A bola sai pela lateral... Cacá aprofunda, procurando Mané (estava tão acostumado, fazia aquilo de olhos fechados)... O lateral do Bonsucesso, revelação do ano, domina a bola, passa por ele e sai jogando... O gênio parecia desligado, fora do jogo... Terceira, quarta, vigésima jogada e ele se deixa dominar...
Praticamente, não tocou na bola... Ela, mágica, enfeitiçada, caprichosa, parecia fugir dos seus pés... Procurava, apenas, a jovem revelação...
O lateral se empolgou... Era a maior figura em campo... Ao final do primeiro tempo, outra bola lançada para Garrincha, procurando por ele... O gênio, esquivo, fugindo dela, não vai...
O lateral domina no peito, faz dois balõezinhos e joga por cima dele, apanhando-a do outro lado...
Termina o primeiro tempo... Zero a zero... A torcida do Bonsucesso, em delírio, aplaude seus atletas, principalmente o lateral... Gritam alguns:
- Garrincha, tu não é de nada...
Voltam para os vestiários. Garrincha e o lateral se cruzam no caminho, a torcida do Bonsucesso provocando o craque, ele bem longe daquilo tudo...
O lateral, olhos de menino, sorriso de deboche, ofegante, diz p'ra ele:
- Você já acabou, mascarado... Vou te enfiar uma bola debaixo das pernas no segundo tempo...
Mané, ainda desligado, mas sério, baixou o olhar na sua timidez característica (talvez procurasse uma pipa perdida, ou uma bola de gude)... O coro da torcida contrária gritava alto contra ele... As vaias eram intensas... Levantou os olhos...
Disse para o lateral, quase num sussurro:
- Eu acho que você não quer jogar no Botafogo não...
O menino ficou surpreso, não entendeu... Voltou para o vestiário meio abobalhado, sem ter compreendido direito o que o gênio lhe dissera... Ficou matutando, enquanto tomava o banho do intervalo...

* * *

No segundo tempo, ele compreendeu...
Humilhado, driblado, caído, sentado no chão, após levar mais uma bola por entre as penas, no auge dos seus 19 anos, só tinha tempo para olhar para trás, vendo o gênio, bola escrava entre os pés, quase junto à linha de fundo, mais uma vez levantar o braço esquerdo e com os dedos indicar a Amarildo ou a Quarentinha onde o centro da direita iria parar...
BOTAFOGO 5 X 0...
É, gente boa, o lateral acabou sendo contratado pelo Glorioso... A pedido de Garrincha...


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Um comentário:

Tadeu Miracema disse...

Essa eu não sabia.