O craque...
Calf
O menino pobre, recém-saído da adolescência, assumia prematuramente as responsabilidades do homem adulto. Engravidara Luciana, a namorada de infância, ela com apenas quinze anos de vida, também uma menina pobre como ele. Mesmo que o pai da moça não o tivesse chamado às falas, ele não iria fugir à responsabilidade. Fora ele quem a “embuchara”, deveria deixar a criança nascer e casar-se com ela. Pouco importava se o emprego de salário mínimo na pequena fábrica de tecidos da cidade do interior mal desse para satisfazer suas menores despesas. Ia se virar, construir um barraco num terreno vazio qualquer da localidade, ali iria morar com Luciana e a criança e formar sua família.
Mas, seu grande sonho era ser jogador de futebol, ganhar dinheiro, ficar rico, ir morar no Rio de Janeiro. Nos estudos, nunca fora grande coisa, mal terminara o primário. Então, somente o futebol poderia fazer com que melhorasse de vida. Lá na sua cidade, era considerado disparado, aos vinte anos de idade, o melhor jogador de toda a região, que ia de Caxias, passava por Nova Iguaçu, Magé e chegava a outros centros maiores do futebol de várzea. Quando seu time ia jogar nessas localidades, os campinhos logo se enchiam para ver o ponta-direita endiabrado, que driblava todo mundo e levava à loucura os zagueiros adversários.
Ouvindo conselhos de amigos, foi tentar uma vaga no Fluminense, lá no Rio. Quando o treinador o viu, enfileirado junto com outros que iriam fazer a “peneira”, após olhar para suas pernas tortas, logo o dispensou, dizendo para o seu auxiliar que “agora até aleijado tenta ser jogador de futebol”. Sem ao menos vê-lo treinar, sem ao menos deixá-lo calçar as chuteiras. Jurou que nunca mais iria tentar treinar num time profissional.
Mas, agora, com a gravidez de Luciana e o casamento, acabou aceitando o convite de um olheiro do Botafogo para ir lá “dar um treininho, para ver se você aprova”. Foi, e quase que a cena se repetiu. O treinador, Gentil Cardoso, quando olhou para suas pernas tortas, ia tomar a mesma decisão que seu colega do Fluminense: mandá-lo embora sem ao menos treinar. Mas, como só tinham três jogadores para a “peneira” naquela tarde, mandou que ele trocasse de roupa. Já no campo, colocou-o na ponta-direita da equipe reserva. Iria ser marcado pelo então famoso Nilton Santos, considerado o melhor lateral esquerdo do Brasil.
O resto da história a maioria de vocês já conhece...
terça-feira, maio 29, 2007
sábado, maio 05, 2007
PAIXÃO...
P A I X Ã O . . .
CALF
– Eu já não sei mais o que fazer.... Dá vontade de largar tudo e me mandar para o interior... Já pensei numa casinha em Friburgo, num lugar sossegado, só p'ra mim e a Maria – disse Amâncio, jogando as cartas sobre a mesa.
Mário, olhando para as próprias cartas, escolhia qual a melhor jogada a fazer. Decidiu-se e comprou uma carta do "morto".
– Eu também já pensei nisso, mas p'ra mim, que sou sozinho, acho que vou ficar muito mais isolado. Aqui, pelo menos, os filhos e netos vêm me visitar, estão sempre por perto se alguma coisa me acontecer...– Parou de falar por um momento, como se estivesse refletindo. Continuou, voz baixa, quase um murmúrio: – Mas, isso aqui, realmente, está muito perigoso de viver, já não se pode mais nem sair à rua, é violência por todo canto...
Baixou uma trinca de reis.
– Eu já tou de saco cheio – disse Roberto, olhar atento nas cartas que tinha nas mãos. Baixou uma seqüência de espadas. – Já não tenho mais coragem de sair à noite, de ir a um teatro ou assistir um show. Nem mesmo para o meu chopinho no botequim do Arnaldo, coisa que fazia diariamente antes de dormir, hoje tenho ânimo para sair de casa.
Alberto ouvia tudo em silêncio, nada comentando. Olhava distraidamente para as cartas abertas à sua frente, olhar distante, como se estivesse desligado do jogo e da conversa.
Os quatro amigos, todos beirando os oitenta anos de idade, distraíam-se jogando buraco naquele cantinho do Posto seis, ponto tradicional de encontro dos idosos de Copacabana, lugarzinho cercado, em frente à praia, junto do local onde alguns anos antes se situara o imponente Cassino Atlântico, depois os estúdios da extinta TV-Rio. Em várias mesas espalhadas no cercado de lona, outras senhoras e senhores passando dos setenta conversavam animadamente.
Mário continuou:
– Quem diria que a cidade iria se transformar no que está agora... Lembra, Alberto, quando a gente brincava o Carnaval, pulando dos estribos dos bondes, fantasiados de palhaço ou mascarados, fazia a ronda por todos os bares de Copacabana e ia acabar na Fiorentina, lá no Leme, só indo p'ra casa as seis da manhã, dia clareando, conversando alto pela Atlântica, todo mundo de pilequinho?
– E as batalhas de confete e serpentina da Galeria Cruzeiro, aquele monte de mulher bonita desfilando pela Rio Branco... lembrou Roberto, com um olhar de melancolia.
– Vai fazer isso agora, p 'ra ver o que te acontece... Tu chega nu em casa, se conseguir chegar vivo... Te roubam tudo, até a roupa do corpo, se bobear...
Alberto continuava sem nada dizer, uma guimba de cigarro no canto da boca, os ralos cabelos brancos esvoaçando com a brisa gostosa daquele fim de manhã de sol esplendoroso da "Princesinha do mar"... Olhava ora para as cartas, ora para o jogo que estava sobre a mesa, inteiramente concentrado no jogo.
– Não, eu não agüento mais ficar por aqui – repetiu Amâncio, um pouco exaltado, enquanto virava o resto de chope que havia em sua caneca. – Não se tem mais liberdade de sair à rua, todo mundo vive com medo, trancado em suas casas. – Outro dia mesmo, na quinta-feira, 8 horas da manhã, vejam bem, 8 horas da manhã, depois de ter caminhado cedo na praia, voltava para casa e esperava o sinal abrir na esquina de Nossa Senhora com Santa Clara. Calmamente, distraído, pensando na morte da bezerra, quando comecei a ouvir : PUM! PUM! TAC! TAC!... Sem brincadeira… Mais de vinte tiros… Depois, os carros de polícia, em disparada pelas ruas, sirenes abertas, policiais com armas na mão.... Gente se jogando no chão, procurando abrigo nas lojas que começavam a abrir... Uma zorra total... Depois vim a saber que fora uma tentativa de assalto num caixa eletrônico na esquina da Figueiredo... Que loucura....
A praia estava praticamente lotada. As barracas multicoloridas imprensavam-se umas contra as outras, as ondas fortes beijavam com violência a areia clara, fazendo ressaltar a beleza indescritível de um dos mais famosos e belos cartões postais do mundo. No calçadão e na pista interditada aos domingos para o lazer dos cariocas, uma multidão de pessoas caminhava, corria, pedalava, outros apenas passeavam, aproveitando aquela maravilhosa manhã de domingo que só o Rio consegue oferecer.
– Eu também, acho que me mudo para o interior. Estou vendo alguma coisa lá pelos lados de Mangaratiba, pois não sei ficar longe da praia. Lá tem uns sítios bons, não são muito caros – disse Roberto. – Não quero acabar morrendo por uma bala perdida ou sendo assaltado por um bando de pivetes na rua.
– Pois é – prosseguiu Mário. – Minhas filhas já foram assaltadas nos ônibus, meu neto teve o celular arrancado das mãos outro dia desses. Até seus tênis os moleques já levaram...
– E vai tentar reagir, oferecer resistência – interrompeu Amâncio. –- Acaba levando um tiro ou uma facada, morre estupidamente nas mãos de um boçal desses...
– Viu aquela menina da Tijuca, semana passada? – indagou Roberto. – Os pais não deixavam ela sair sozinha na rua, iam levá-la e buscá-la no colégio todos os dias. Na única vez que permitiram que ela voltasse sozinha para casa, uma estação só do metrô, acontece aquela tragédia... Só quatorze anos, uma vida estupidamente perdida... Esse é o nosso Rio de Janeiro, a "Cidade Maravilhosa"...
– Tá parecendo Chicago dos anos 20, cidade sem lei, dominada por Al Capones, Dillingers, etc... – filosofou Mário.
– E os camelôs nas calçadas? – interveio Amâncio. – Aqui, na Nossa Senhora e no centro, não se pode mais andar pelas calçadas. Tem-se que passar pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelado.
– É verdade – concordou Roberto, ar de desânimo na voz. – E nós, que já estamos velhos, é que sofremos mais. Os carros não respeitam quando a gente atravessa as ruas, vêm para cima mesmo. E, somos os alvos preferidos dos pivetes e assaltantes. Juntam dois, três, empurram a gente, levam tudo que a gente carrega.
– E você, Alberto, não diz nada? Vai dizer que também não tem medo de viver aqui? – perguntou Amâncio.
Alberto, com o mesmo ar calmo e tranqüilo que mantinha até ali, olhou mais uma vez para as cartas que tinha nas mãos. Depositou-as suavemente sobre a mesa. Disse, olhando triunfalmente para os companheiros:
– Bati...
Os outros olharam desanimados para as cartas sobre a mesa. Mario chamou o garçom e pediu uma outra rodada de chope. Amâncio insistiu:
– E, então, Alberto, você não diz nada?
Ele coçou a cabeça, passando os dedos por entre os fios de cabelos brancos. Virou o resto do chope, acendeu um outro cigarro. Respondeu, voz macia, as palavras saindo-lhe vagarosamente pela boca onde alguns dentes já faltavam:
– Olha, vocês querem saber de uma coisa? Eu daqui não saio não. Nasci aqui, aqui fui criado, estudei, trabalhei e me casei. Minha mulher já morreu, a gente não teve filhos. Não tenho nenhum parente vivo e, mesmo que tivesse, não ia dar trabalho a ninguém no fim da vida. Vi essa cidade crescer, transformar-se, acompanhei as diversas fases da sua evolução. Aqui tenho de tudo: praia, montanha, floresta, comércio bom e variado, conheço todo mundo no meu quarteirão, padeiro, jornaleiro, bicheiro, farmacêutico, dono de botequim. Amo minha praia, adoro passear no centro da cidade, fazer um lanche na Colombo, tomar um chope no bar Luiz ou no Brasil, lá na Lapa. Não há nada que se compare ao almoço de domingo num desses restaurantes da beira da praia, onde fico mastigando alguma coisa, vendo as meninas desfilando nos seus biquínis mostrando quase tudo. Conheço cada esquina, cada buraquinho de Copacabana. Aqui vi a bossa nova nascer, lá no beco das Garrafas, freqüentei o Vogue, o Sacha's, o Copacabana Palace... Vi Heleno de Freitas jogar futebol na areia dessa praia, João Saldanha era meu vizinho na Miguel Lemos... Copacabana e o Rio fazem parte do meu corpo, da minha alma... Estão na minha pele, são meu sangue, me alimentam, me trouxeram até os meus 78 anos de vida... Esses bandidinhos que andam por aí, esses marginais de meia tigela, não vão me expulsar da minha cidade, não me metem medo... eu já vivia aqui muito tempo antes deles... se quiserem me matar, que matem, mas como dizia aquela antiga musiquinha de carnaval : '' DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUÉM ME TIRA... " . Aqui é minha cidade, tenho verdadeira paixão por ela, nela nasci e, se Deus quiser, nela vou morrer...
Quase todos os freqüentadores do local levantaram-se e bateram palmas, entusiasmados e emocionados, relembrando, talvez, um Rio de Janeiro que já não exista mais....
CALF
– Eu já não sei mais o que fazer.... Dá vontade de largar tudo e me mandar para o interior... Já pensei numa casinha em Friburgo, num lugar sossegado, só p'ra mim e a Maria – disse Amâncio, jogando as cartas sobre a mesa.
Mário, olhando para as próprias cartas, escolhia qual a melhor jogada a fazer. Decidiu-se e comprou uma carta do "morto".
– Eu também já pensei nisso, mas p'ra mim, que sou sozinho, acho que vou ficar muito mais isolado. Aqui, pelo menos, os filhos e netos vêm me visitar, estão sempre por perto se alguma coisa me acontecer...– Parou de falar por um momento, como se estivesse refletindo. Continuou, voz baixa, quase um murmúrio: – Mas, isso aqui, realmente, está muito perigoso de viver, já não se pode mais nem sair à rua, é violência por todo canto...
Baixou uma trinca de reis.
– Eu já tou de saco cheio – disse Roberto, olhar atento nas cartas que tinha nas mãos. Baixou uma seqüência de espadas. – Já não tenho mais coragem de sair à noite, de ir a um teatro ou assistir um show. Nem mesmo para o meu chopinho no botequim do Arnaldo, coisa que fazia diariamente antes de dormir, hoje tenho ânimo para sair de casa.
Alberto ouvia tudo em silêncio, nada comentando. Olhava distraidamente para as cartas abertas à sua frente, olhar distante, como se estivesse desligado do jogo e da conversa.
Os quatro amigos, todos beirando os oitenta anos de idade, distraíam-se jogando buraco naquele cantinho do Posto seis, ponto tradicional de encontro dos idosos de Copacabana, lugarzinho cercado, em frente à praia, junto do local onde alguns anos antes se situara o imponente Cassino Atlântico, depois os estúdios da extinta TV-Rio. Em várias mesas espalhadas no cercado de lona, outras senhoras e senhores passando dos setenta conversavam animadamente.
Mário continuou:
– Quem diria que a cidade iria se transformar no que está agora... Lembra, Alberto, quando a gente brincava o Carnaval, pulando dos estribos dos bondes, fantasiados de palhaço ou mascarados, fazia a ronda por todos os bares de Copacabana e ia acabar na Fiorentina, lá no Leme, só indo p'ra casa as seis da manhã, dia clareando, conversando alto pela Atlântica, todo mundo de pilequinho?
– E as batalhas de confete e serpentina da Galeria Cruzeiro, aquele monte de mulher bonita desfilando pela Rio Branco... lembrou Roberto, com um olhar de melancolia.
– Vai fazer isso agora, p 'ra ver o que te acontece... Tu chega nu em casa, se conseguir chegar vivo... Te roubam tudo, até a roupa do corpo, se bobear...
Alberto continuava sem nada dizer, uma guimba de cigarro no canto da boca, os ralos cabelos brancos esvoaçando com a brisa gostosa daquele fim de manhã de sol esplendoroso da "Princesinha do mar"... Olhava ora para as cartas, ora para o jogo que estava sobre a mesa, inteiramente concentrado no jogo.
– Não, eu não agüento mais ficar por aqui – repetiu Amâncio, um pouco exaltado, enquanto virava o resto de chope que havia em sua caneca. – Não se tem mais liberdade de sair à rua, todo mundo vive com medo, trancado em suas casas. – Outro dia mesmo, na quinta-feira, 8 horas da manhã, vejam bem, 8 horas da manhã, depois de ter caminhado cedo na praia, voltava para casa e esperava o sinal abrir na esquina de Nossa Senhora com Santa Clara. Calmamente, distraído, pensando na morte da bezerra, quando comecei a ouvir : PUM! PUM! TAC! TAC!... Sem brincadeira… Mais de vinte tiros… Depois, os carros de polícia, em disparada pelas ruas, sirenes abertas, policiais com armas na mão.... Gente se jogando no chão, procurando abrigo nas lojas que começavam a abrir... Uma zorra total... Depois vim a saber que fora uma tentativa de assalto num caixa eletrônico na esquina da Figueiredo... Que loucura....
A praia estava praticamente lotada. As barracas multicoloridas imprensavam-se umas contra as outras, as ondas fortes beijavam com violência a areia clara, fazendo ressaltar a beleza indescritível de um dos mais famosos e belos cartões postais do mundo. No calçadão e na pista interditada aos domingos para o lazer dos cariocas, uma multidão de pessoas caminhava, corria, pedalava, outros apenas passeavam, aproveitando aquela maravilhosa manhã de domingo que só o Rio consegue oferecer.
– Eu também, acho que me mudo para o interior. Estou vendo alguma coisa lá pelos lados de Mangaratiba, pois não sei ficar longe da praia. Lá tem uns sítios bons, não são muito caros – disse Roberto. – Não quero acabar morrendo por uma bala perdida ou sendo assaltado por um bando de pivetes na rua.
– Pois é – prosseguiu Mário. – Minhas filhas já foram assaltadas nos ônibus, meu neto teve o celular arrancado das mãos outro dia desses. Até seus tênis os moleques já levaram...
– E vai tentar reagir, oferecer resistência – interrompeu Amâncio. –- Acaba levando um tiro ou uma facada, morre estupidamente nas mãos de um boçal desses...
– Viu aquela menina da Tijuca, semana passada? – indagou Roberto. – Os pais não deixavam ela sair sozinha na rua, iam levá-la e buscá-la no colégio todos os dias. Na única vez que permitiram que ela voltasse sozinha para casa, uma estação só do metrô, acontece aquela tragédia... Só quatorze anos, uma vida estupidamente perdida... Esse é o nosso Rio de Janeiro, a "Cidade Maravilhosa"...
– Tá parecendo Chicago dos anos 20, cidade sem lei, dominada por Al Capones, Dillingers, etc... – filosofou Mário.
– E os camelôs nas calçadas? – interveio Amâncio. – Aqui, na Nossa Senhora e no centro, não se pode mais andar pelas calçadas. Tem-se que passar pelo meio da rua, correndo o risco de ser atropelado.
– É verdade – concordou Roberto, ar de desânimo na voz. – E nós, que já estamos velhos, é que sofremos mais. Os carros não respeitam quando a gente atravessa as ruas, vêm para cima mesmo. E, somos os alvos preferidos dos pivetes e assaltantes. Juntam dois, três, empurram a gente, levam tudo que a gente carrega.
– E você, Alberto, não diz nada? Vai dizer que também não tem medo de viver aqui? – perguntou Amâncio.
Alberto, com o mesmo ar calmo e tranqüilo que mantinha até ali, olhou mais uma vez para as cartas que tinha nas mãos. Depositou-as suavemente sobre a mesa. Disse, olhando triunfalmente para os companheiros:
– Bati...
Os outros olharam desanimados para as cartas sobre a mesa. Mario chamou o garçom e pediu uma outra rodada de chope. Amâncio insistiu:
– E, então, Alberto, você não diz nada?
Ele coçou a cabeça, passando os dedos por entre os fios de cabelos brancos. Virou o resto do chope, acendeu um outro cigarro. Respondeu, voz macia, as palavras saindo-lhe vagarosamente pela boca onde alguns dentes já faltavam:
– Olha, vocês querem saber de uma coisa? Eu daqui não saio não. Nasci aqui, aqui fui criado, estudei, trabalhei e me casei. Minha mulher já morreu, a gente não teve filhos. Não tenho nenhum parente vivo e, mesmo que tivesse, não ia dar trabalho a ninguém no fim da vida. Vi essa cidade crescer, transformar-se, acompanhei as diversas fases da sua evolução. Aqui tenho de tudo: praia, montanha, floresta, comércio bom e variado, conheço todo mundo no meu quarteirão, padeiro, jornaleiro, bicheiro, farmacêutico, dono de botequim. Amo minha praia, adoro passear no centro da cidade, fazer um lanche na Colombo, tomar um chope no bar Luiz ou no Brasil, lá na Lapa. Não há nada que se compare ao almoço de domingo num desses restaurantes da beira da praia, onde fico mastigando alguma coisa, vendo as meninas desfilando nos seus biquínis mostrando quase tudo. Conheço cada esquina, cada buraquinho de Copacabana. Aqui vi a bossa nova nascer, lá no beco das Garrafas, freqüentei o Vogue, o Sacha's, o Copacabana Palace... Vi Heleno de Freitas jogar futebol na areia dessa praia, João Saldanha era meu vizinho na Miguel Lemos... Copacabana e o Rio fazem parte do meu corpo, da minha alma... Estão na minha pele, são meu sangue, me alimentam, me trouxeram até os meus 78 anos de vida... Esses bandidinhos que andam por aí, esses marginais de meia tigela, não vão me expulsar da minha cidade, não me metem medo... eu já vivia aqui muito tempo antes deles... se quiserem me matar, que matem, mas como dizia aquela antiga musiquinha de carnaval : '' DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUÉM ME TIRA... " . Aqui é minha cidade, tenho verdadeira paixão por ela, nela nasci e, se Deus quiser, nela vou morrer...
Quase todos os freqüentadores do local levantaram-se e bateram palmas, entusiasmados e emocionados, relembrando, talvez, um Rio de Janeiro que já não exista mais....
O REENCONTRO...
O REENCONTRO...
CALF
No início do mês de dezembro de 2006, avisado por alguns amigos de longa data, todos ex-liceístas, compareci a uma missa e a um almoço em comemoração ao cinqüentenário de formatura das turmas que concluíram o ginasial no nosso Liceu, em 1956.
Estava curioso em saber como estariam, nos dias atuais, alguns daqueles que estudaram ao meu lado, na mesma sala, às vezes na carteira da esquerda ou da direita, na frente ou atrás, depois de passados cinqüenta anos.
Afinal de contas, foram quatro anos em que convivemos, pelo menos durante cinco horas, de segunda a sexta, numa das salas do antigo casarão do fim da Amaral Peixoto. Para sermos exatos, de 1953 a 1956.
Os três primeiros anos, no turno da tarde. O quarto, na parte da manhã.
Na noite anterior àquele domingo, dois de dezembro, rememorei mentalmente os momentos de felicidade e alegria passados naqueles meus primeiros anos de Liceu. Fui buscar, numa caixa esquecida de um armário empoeirado escondido num dos quartos não utilizados da casa, algumas fotografias daquele período inesquecível.
O grande prédio cor de rosa, dentro do qual era eu uma minúscula partícula no primeiro ano ginasial. O uniforme tradicional e pesado, o dólmã cáqui, com a lista branca em forma de “V” maiúsculo na braçadeira azul em cada uma das mangas. A gravata preta, dando um tom de seriedade à roupa do menino de onze anos, que até então só usara calças curtas. Tudo comprado na “Corporativa”, no início da Amaral Peixoto, ao lado do edifício onde eu morava.
O primeiro dia de aula foi de medos, de receios do desconhecido. Eram cinco turmas no primeiro ano ginasial. A primeira, na qual fui colocado, era composta por aqueles que haviam obtido as melhores notas no exame de admissão. Devíamos ser pouco mais de quarenta em cada turma. A última, a quinta, era destinada aos repetentes, misturados com os que obtiveram as piores notas no exame de ingresso ao colégio. Exame disputadíssimo por sinal, já que o Liceu era considerado a melhor escola de Niterói, então a capital do antigo Estado do Rio de Janeiro. Qualidade de ensino igual à dele só a do Pedro II, tradicional estabelecimento federal de ensino médio da época e até hoje respeitado como tal.
Sorte minha que haviam alguns conhecidos na mesma turma. Dos que estudaram juntos comigo no primário do Getúlio Vargas estavam o Harald, o Gilberto, a Neuza e a Carolina. Havia ainda o Lizardo, que conheci no ano anterior ao admissão e de quem logo me tornei amigo, freqüentando um a casa do outro e estudando juntos para a tão temida prova.
Todos os outros, ilustres desconhecidos.
Nossa inspetora, cujo nome já não mais me recordo, nos fez sentar em ordem alfabética, ocupando as cadeiras em fila indiana, da esquerda para a direita da sala, que ficava no primeiro andar, no corredor que dava para o pátio.
Aos poucos fui conhecendo o Gusmão (eu sentava atrás dele), o Cidoca, o Paulo Roberto, o Jorginho Sader, o Nelson, o Armandinho, o Marcos Honaiser, o Dráusio, a Maria Célia, o Luiz Antonio.
Mas, naqueles primeiros dias, andava colado no Lizardo e no Gilberto, os três ainda assustados com aquele mundo novo e, pior, com medo de levar trote dos veteranos.
Antes de entrarmos em sala tínhamos que formar no pátio e cantar o Hino Nacional. O diretor, Jayme Bittencourt, ficava no alto de uma pequena escada que dava acesso às salas, compenetrado, verificando se os alunos cantavam direito o nosso hino.
Mas, o que mais nos assustou foi a quantidade de matérias com que teríamos de lidar. Além das já conhecidas Português e Matemática, passamos a estudar Francês, Latim, Desenho, Canto Orfeônico, Trabalhos Manuais, História Geral e Geografia (será se me esqueci de alguma?). Aulas rápidas, de cinqüenta minutos cada uma, bem diferente daquilo a que estávamos acostumados no primário: uma só professora para Português, Matemática e Conhecimentos Gerais.
Cada aula, um professor ou professora. Fiz um esforço de memória e tentei me recordar do nome alguns deles. A temida Dª Jacira, de Português, exigente ao extremo, que causava medo em todos nós. A rigorosa Dª Anita, de Matemática (ainda bem que escapamos do Carias, tido como o terror dos alunos, segundo comentários dos demais liceístas). Francês, Dª Estefânia, com seus doces cabelos grisalhos. O Padre Carneiro, de batina e tudo, ministrava-nos o Latim. O Canto Orfeônico nos era ensinado por Dª Edith Pinho, que muitos e muitos anos mais tarde vim a saber ser esposa de um Desembargador da Guanabara. Professor Cousin era o responsável pelas aulas de História Geral. Finalmente, o Professor Vieira ensinava-nos Geografia (“Deponham o lápis”, era sua frase característica”). Não consegui me lembrar dos nomes, nem das fisionomias dos professores de Desenho e Trabalhos Manuais.
Já no segundo semestre daquele primeiro ano estávamos mais à vontade no colégio. Passada aquela fase inicial de adaptação, já procurávamos alguma quadra ou campinho livre para jogar uma pelada com bola de borracha na hora do recreio. O uniforme cáqui, até então imaculado, passou a chegar em casa sujo de poeira e, às vezes, de lama. Eram rachas nas quadras de cimento ou, quando estas já estavam ocupadas pelos alunos mais velhos, no campinho de areia lá junto do necrotério ou até mesmo nas pistas de terra laterais, destinadas ao atletismo.
Depois do futebol, a merenda rápida na cantina da Dona Cremilda. Seus dois filhos, Jorge e Haroldo, então adolescentes, fui reencontrá-los anos depois. Jorge chegou a tentar a carreira de goleiro no Canto do Rio. Haroldo, fui revê-lo em 1984, apitando um jogo de futebol de salão, no qual um dos meus filhos participava, disputando o campeonato de Niterói e São Gonçalo pelo Canto do Rio. Não consegui me lembrar do nome da filha de Dona Cremilda, que também “pendurava” para nós uma coca-cola ou um sanduíche de mortadela. Ah! acho que lembrei: Norma...
Minha mente continuava a divagar, recordando aquelas cenas marcantes dessa época tão querida de minha vida.
Veio o segundo ano. Continuei na primeira turma, numa sala do segundo andar que dava para o pátio. Outros colegas, transferidos de outros colégios vieram fazer parte da mesma. O Aloysio (hoje juiz trabalhista), o Carlos Eduardo, o “Pavão”, por sua semelhança com o então zagueiro do Flamengo, ele que também era zagueiro e chegou a jogar no Canto do Rio. Veio também o Nélio, forte como um touro, excelente meio-de campo do futebol de praia jogado na LAFA, em Icaraí.
Naquele ano nossa inspetora foi Dª Coralina, doce e meiga com seus cabelos começando a embranquecer, sempre atenta a um pedido nosso, sempre disposta a nos ouvir. Além das matérias que já havíamos dado no primeiro ano, foi acrescido o Inglês, cujo professor era o Odilon.
Já agora totalmente entrosados com a rotina diária do colégio, travamos conhecimento com os outros alunos das demais turmas do segundo ano, e, na hora do recreio, marcávamos jogo contra eles, em qualquer quadra que estivesse vaga. Assim conheci o Waldo, Adalberto Abelha, Manuel Terrinha, Antonio Matheus, Albino, Jorge, Diomedes e muitos outros.
Passei muito bem para o terceiro ano, já que naquele tempo era um dos melhores alunos. Continuei na primeira turma. Nossa sala, em 1955, era no segundo andar, mas na ala que dava para o Jardim de Infância, nos fundos do Liceu. Era uma sala destinada às aulas específicas de desenho, com mesas tipo prancheta, mas que fora adaptada para o currículo normal. O uniforme ainda era o mesmo, dólmã cáqui, gravata e braçadeiras azuis. Só que agora já eram três as listras.
Não me lembrava muito bem do terceiro ano. Não me recordei se entrou ou saiu alguma matéria, se mudou um ou outro professor. Da. Jacira e Da. Anita sei que continuaram. Vieram mais alguns outros alunos transferidos, entre eles o Ivan Elias. Os outros continuavam os mesmos, aqueles que vinham juntos comigo desde o primeiro ano. Das outras turmas, conheci o Clélio, o Mário Cid e vários outros.
O futebol, agora, era mais intensificado na hora do recreio e mesmo depois das aulas, nos campinhos de grama improvisados na pracinha que ficava em frente ao Liceu, tendo a Biblioteca como fundo. Retornava para casa suado, o uniforme todo sujo, minha mãe é quem sofria, coitada.
Agora, no terceiro ano, éramos os veteranos do turno da tarde. Estreitei minha amizade com o Cidoca, o Gusmão e o Vinicius, passando uns a freqüentar a casa dos outros, ir ao cinema juntos, jogar futebol na praia de Icaraí.
Bem, finalmente, concluímos a terceira série e, no ano seguinte, iríamos estudar no turno da manhã, junto com o pessoal do científico e clássico.
Quando começamos o quarto ano ginasial, em 1956, uma novidade: as turmas foram divididas não mais pela notas obtidas no ano anterior e, sim, por ordem alfabética. Isso foi muito bom e era uma das características dos colégios públicos: entrosar todos os alunos, não importando a condição social ou econômica de cada um deles. Na mesma turma tínhamos alunos de todos os bairros de Niterói e São Gonçalo, originários de bairros ricos, de classe média ou pobre. Brancos, negros, amarelos, mestiços.
Apesar dos três anos já passados no colégio, sentimos um pouco quando fomos para o turno da manhã. Nós, que éramos os veteranos do turno da tarde no ano anterior, passamos a ser os mais novos do turno da manhã.
O pessoal do científico e clássico mantinha uma distância considerável da gente, parecia que eles estavam em outro mundo. Algumas meninas das nossas turmas suspiravam pelos rapazes mais velhos, alguns já com barba começando a nascer nos rostos. E, nós, os “meninos” do quarto ano, olhávamos com admiração para as belas pernas e os seios atraentes das alunas dos cursos acima do nosso.
Outra novidade: foi extinto o uniforme pesado do dólmã cáqui e gravata preta, substituído por uma camisa branca de mangas curtas, calça azul de brim, gravata azul e quatro listas nas mangas da camisa. Além do inigualável escudo no lado esquerdo, junto ao coração, com as letras LNP sobressaindo gravadas em alto relevo.
Mudaram quase todos os professores.
Matemática passou a ser dada pela jovem Therezinha Werneck, aliás irmã de um nosso colega de turma, o Francisco Roberto. Português, pelo professor Luiz Carlos. Francês, pela vistosa Dª Acyra. Michel Salim Saad, mais tarde deputado federal, no Latim. O professor Vieira continuou nos ensinando Geografia. História do Brasil entrou como matéria nova. Não me lembro quem era o professor ou professora. Desenho, acho que era o Mendel, não estou certo.
Nossa sala ficava agora no corredor que dava acesso à cantina. Nossa inspetora, magrinha e mirrada, foi Dª Edir, segundo me lembro.
Bem, agora com a mudança na constituição das turmas, vários outros alunos das demais classes vieram fazer parte da minha, que continuei na primeira por causa da ordem alfabética. Vieram o Antonio Matheus, que se tornou um dos meus melhores amigos até os dias de hoje; o Augusto Donadel, mais tarde excelente repórter da “Última Hora” e tragicamente assassinado no final dos anos 60; o Celso, o Mangelli e outros. Entre as meninas, a Carmem Regina, Amélia, Cyrene e outras cujos nomes não me recordo mais.
Naquele ano, a integração entre as turmas se intensificou. Foram organizadas excursões à Quinta da Boa Vista, Companhia Siderúrgica Nacional (em Volta Redonda), Petrópolis, com visitas à casa de Santos Dumont e Museu Imperial, ocasiões em que os alunos se conheceram melhor. Preparavam-se, também, as festividades para a formatura no final do ano, arrecadando-se dinheiro principalmente para o baile que, como era habitual, seria realizado no Clube de Regatas Icaraí.
Completava-se, assim, um primeiro ciclo de nossa vida estudantil. Vários daqueles alunos, que vinham na mesma turma desde o primeiro ano ginasial, iriam agora partir para outros destinos. Muitos dos rapazes iriam tentar a carreira militar, seja no Exército, Marinha ou Aeronáutica. Foi o caso do Lizardo, Marcos Honaiser, Luiz Antonio, Dráusio, Gusmão, Armandinho e alguns outros. Entre as moças, várias delas iriam para o Instituto de Educação cursar o normal, já que, naquele tempo, não era comum as mulheres cursarem faculdade. Era muito raro isso acontecer, sendo a carreira de professora primária a mais comum para elas.
Que pena, amizades que se consolidaram naqueles quatro anos iriam agora se desfazer, já que a distância iria nos separar.
Por isso, recebi com emoção o convite para comparecer à missa e ao almoço que iriam comemorar nossos cinqüenta anos de formatura no ginasial.
Separei algumas daquelas fotos amarelecidas pelo decurso do tempo, tirei algumas cópias no computador para mostrar a quem comparecesse nos dois acontecimentos.
Como estariam aqueles que, concluídas as festividades de formatura, nunca mais vi? Alguns prosseguiram comigo, no científico, outros continuaram no Liceu cursando o clássico, com poucos deles mantive o contato durante esses cinqüenta anos. Será se muitos compareceriam? Como teria sido a ação do tempo sobre suas fisionomias? Será se me reconheceriam, hoje que estou com vários quilos a mais e com muito cabelo de menos?
Ah! tempo, como és cruel!!! O que fazes com a gente!!!
Bem, deixei de refletir sobre o decurso do tempo e, na manhã seguinte, estava lá na igreja Porciúncula de Santana, em frente ao Campo de São Bento. A igreja estava cheia, repleta de fiéis habituais. Procurei um lugar vazio, sentando-me num banco no meio da multidão.
Com os olhos, tentei localizar algum ex-colega liceísta. Em vão, não reconheci ninguém. Antes de começar a missa, o Toninho Matheus, meu velho companheiro de quarto ano ginasial e hoje médico renomado, sentou-se ao meu lado. Também em vão procurou algum conhecido.
Só depois de começada a missa é que reconhecemos o Ronaldo, num banco do outro lado da igreja. Continuamos a procurar e não reconhecemos mais ninguém.
O padre mencionou que aquela missa era também celebrada em homenagem aos formandos de 1956, do Liceu Nilo Peçanha.
A cerimônia religiosa continuou bonita e emocionante. No final, o celebrante convidou os ex-liceístas para que comparecessem na frente da igreja, junto ao altar e comemorassem o acontecimento.
Eu e Toninho para lá nos dirigimos. Foi então que reconheci a Sanandá e o Armandinho. Mas, vários outros se abraçavam, cumprimentavam-se.
Quem eram? Só depois que dissemos nossos nomes é que soubemos quem éramos. O Antonio Barreto, o Carlos Roberto, o Luiz Antonio, o Marcos Paulista. Não consegui reconhecer ninguém, como acredito que eles também não me reconheceram.
No almoço, num restaurante em São Francisco, falei ainda com a Mariáurea, a Amélia, a Marilza, a Vanzer e a Tilda. Outros estavam presentes, mas, sinceramente, não os reconheci, nem pelos nomes.
Trocamos fotografias, soube que o Lizardo, a Maria Célia, a Regina Lúcia e a Regina Coeli haviam falecido. Relembramos os tempos felizes passados naquele casarão da Amaral Peixoto, mais tarde pintado de amarelo, como permanece até hoje.
Tempos alegres, sem os compromissos da vida adulta, em que nossa única obrigação era estudar. Coisa que aquele colégio nos ensinou a fazer muito bem. Se hoje a maioria de nós foi um vencedor na vida, muito devemos às exigências de Dona Jacira, ao rigor de Dona Anita, à doçura de Dona Estefânia, à paciência dos Professores Cousin e Vieira.
Certos momentos de nossa vida deveriam ser congelados no tempo e no espaço, para que ficassem perpetuados para sempre.
Os meus anos de Liceu seriam alguns deles.
quinta-feira, maio 03, 2007
Zuma: a vida e a bola.
Zuma: a vida e a bola.
Zuma, maior astro do vôlei brasileiro, salta para “enterrar” a cortada que pode definir a final das Olimpíadas de Pequim.
Naquele instante, corpo flutuando no ar, mão direita preparada para aplicar o golpe fatal, mil pensamentos povoam sua mente, um atrás do outro, numa seqüência que faz lembrar um filme de longa metragem rodado em câmara lenta.
Menino pobre, nascido e criado numa das favelas miseráveis do Rio de Janeiro, teve uma infância pouco feliz. Viu quando o pai abandonou a família, quando tinha ele apenas seis anos de idade. Foi testemunha do duro danado que sua mãe deu para criar os sete filhos deixados para trás pelo marido, lavando para fora desde o nascer até o pôr do sol. Presenciou, com tristeza, o envolvimento dos dois irmãos mais velhos com o tráfico de drogas no morro, acabando ambos mortos pela Polícia. Finalmente, revoltado, mas sem nada poder fazer, logo percebeu que duas de suas irmãs, também mais velhas que ele, acabaram se prostituindo, fazendo programas em Copacabana e em outros bairros ricos da cidade. Procuravam esconder esse fato da mãe, mas Zuma logo percebeu, estranhando os presentes que recebiam e o dinheiro que às vezes traziam para casa, sem explicar direito a origem.
Ele, como todos os irmãos, foi matriculado pela mãe no colégio público mais próximo da favela, onde chegou a concluir o primeiro grau. Queria continuar estudando, mas sua mãe insistia que era necessário que ele fosse trabalhar para ajudar nas despesas de casa.
Foi quando a sorte bateu à sua porta.
Aos quinze anos, apesar de muito magro, era bem alto, quase um metro e oitenta. Pela altura, foi convidado a fazer parte do time de vôlei do seu colégio, que, por ser escola pública, tinha poucas condições de oferecer um treinamento adequado. Mas, mal ou bem, o professor de educação física era dedicado e conseguiu formar uma equipe razoável.
Numa tarde de sábado, num jogo de campeonato estudantil, no Méier, foi observado por Benedito, técnico de voleibol do Botafogo, que ali fora prestigiar um amigo, que treinava o time adversário. Benedito ficou impressionado com a altura e a qualidade técnica já esboçada por Zuma, convidando-o para fazer um teste no clube.
Entusiasmado, contou à mãe o que ocorrera. Ela acabou por concordar, apesar de já estar esperando que ele conseguisse um emprego para ajudar nas despesas da casa. Impôs uma condição: que ele arranjasse um trabalho qualquer, nem que fosse de meio-expediente e levasse algum dinheiro no fim do mês.
Passou no teste e foi incorporado à equipe infantil do Botafogo. Procurou, procurou e acabou conseguindo um emprego de entregador de uma farmácia na Voluntários da Pátria (somente muito mais tarde veio a saber que o emprego fora conseguido por Benedito).
Sua rotina diária era exaustiva. Acordava às cinco da manhã, botava para dentro um café requentado e um pedaço de pão dormido e pegava o ônibus para chegar à farmácia. Trabalhava até o meio-dia e ia almoçar no Botafogo, que tinha um refeitório para os atletas. Aproveitava para bater uma bolinha no intervalo do almoço. Voltava para o trabalho, onde ficava até às cinco. Retornava ao clube três vezes por semana, quando ocorriam os treinos do time infantil. Nas noites livres, ia para o colégio noturno, pois Benedito só aceitava atletas que estivessem estudando.
Foi campeão infantil e juvenil pelo clube, sendo convocado para a seleção brasileira de jovens aos 17 anos. Foi também campeão sul-americano.
Quando completou 19 anos, já com um metro e noventa de altura, seu corpo agora era só músculos, bem diferente do menino esquálido que chegou ao clube alguns anos antes.
Recebeu uma proposta excelente para se transferir para o Minas Tênis Clube. Consultou Benedito que, sabendo que o Botafogo não teria condições de cobrir aquela proposta, concordou com sua saída do clube.
Lá em Belo Horizonte tornou-se logo uma das estrelas da equipe. Agora, ganhando bem, alugou um apartamento que passou a dividir com um colega de time. Alimentava-se bem, vestia-se com apuro. E, finalmente, conseguiu realizar o sonho que acalentava já há algum tempo: comprou uma casa modesta mas confortável para a mãe e irmãos, no Méier. Dona Laurinda não cabia em si de contentamento quando se mudou, deixando para trás a violência, o tráfico de drogas e a miséria da favela.
Então, aconteceu também outra coisa pela qual esperava com ansiedade: a primeira convocação para a seleção brasileira adulta de vôlei.
Quando se apresentou na concentração, uma fazenda agradável nos arredores de Curitiba, estava um pouco nervoso, um pouco tímido. Mas, os demais jogadores logo o deixaram à vontade, procurando fazer com que se enturmasse rapidamente.
Na primeira noite de concentração, Louro, então o capitão da equipe brasileira, com ar sério, sentado ao seu lado na mesa do jantar, disse-lhe que o técnico era muito rigoroso e exigia que, a cada manhã, um dos jogadores acordasse mais cedo e fosse até o pátio externo e hasteasse a bandeira do Brasil. E, mais: depois de hasteá-la, o jogador teria que ficar em posição de sentido ao lado do mastro, aguardando que os outros atletas acordassem e fossem todos cantar o hino nacional. Era para exaltar o patriotismo, dizia o técnico.
Louro disse a Zuma, que por ser ele o mais novo da equipe, ficaria encarregado de hastear a bandeira na manhã seguinte, já que todos os outros jogadores já haviam passado por aquele ritual.
Zuma concordou e às cinco da manhã seguinte, com apenas um agasalho sobre as costas, estava no pátio hasteando a bandeira. Ficou em posição de sentido ao lado do pavilhão nacional, aguardando que os outros acordassem.
Por volta das sete, o técnico da equipe passava por um corredor externo, dirigindo-se ao refeitório, onde iria tomar o café da manhã. Vendo Zuma tiritando de frio (a temperatura devia estar por volta dos 6 graus), indagou o motivo de sua presença ali. Zuma, respeitosamente, respondeu que estava aguardando que os demais jogadores acordassem para entoar o hino nacional.
O técnico riu gostosamente, dizendo-lhe que se tratava de um trote dos veteranos. Zuma ficou encabulado, sem graça e puto da vida. Na mesa do café da manhã, cara amarrada, Louro ainda teve a cara de pau de perguntar-lhe se ele tinha dormido bem. Além de ter que agüentar a gozação dos demais membros da delegação.
Mas, logo se enturmou e realizou outro dos seus sonhos: viajar para o exterior. Conheceu a Europa, a Ásia, a Oceania. Visitou vários países, conviveu com outros povos, outras culturas.
Nesses anos de viagens quase contínuas, foi campeão do mundo e da Liga Mundial (2 vezes).
Agora, estava disputando os Jogos Olímpicos. Como as coisas se passaram tão rapidamente em sua vida! Do menino pobre de favela até pouco tempo atrás a astro do vôlei mundial...
A equipe brasileira, magnífica, vinha passando como um rolo compressor sobre seus adversários. Quartas, semifinal e, agora, a final contra a Rússia, adversário ferrenho dos últimos anos.
Jogo disputado palmo, ponto a ponto.
Primeiro set, Brasil 25 a 23.
Segundo set, Rússia 39 a 37.
O terceiro, Brasil, 25 a 23.
Quarto, Rússia 32 a 30.
As duas equipes descansaram por alguns minutos, tentando recuperar-se do desgaste sofrido nos sets anteriores. Os dois técnicos, histéricos, gritavam ordens e instruções aos jogadores que mal conseguiam ouvir o que era dito.
Voltaram para a quadra, cansados, suando em bicas, beirando à exaustão. O tie-brake começou emocionante. Os pontos eram disputados com ardor, um a um. Chegaram ao empate em 12. O Brasil consegue abrir 14 a 12. Estava a um ponto da vitória. Mas, a Rússia não se entrega, briga até o fim. Marca mais um, diminuindo a diferença para 14 a 13.
O saque é da Rússia. A bola voa alta, atravessando a rede e caindo do lado brasileiro. O líbero a recebe com dificuldade, dando um passe para o meio da rede. O levantador, mãos de seda, como se estivesse tratando a bola como a coisa mais preciosa da vida, toca-a de leve com a ponta dos dedos, levantando-a para a ponta esquerda da rede.
Zuma, qual um pássaro gigante, alça o vôo magnífico, atingindo uma altura inimaginável. Suas joelhos se flexionam, empurrando as duas pernas para trás. No ar, levanta o braço direito e prepara a mão para a cortada mortal.
Naquele segundo mágico, que realmente deveria ser congelado para ficar perpetuado no tempo e no espaço, sua vida toda passou por sua mente, como um filme de longa metragem rodando em baixa rotação.
Zuma, maior astro do vôlei brasileiro, salta para “enterrar” a cortada que pode definir a final das Olimpíadas de Pequim.
Naquele instante, corpo flutuando no ar, mão direita preparada para aplicar o golpe fatal, mil pensamentos povoam sua mente, um atrás do outro, numa seqüência que faz lembrar um filme de longa metragem rodado em câmara lenta.
Menino pobre, nascido e criado numa das favelas miseráveis do Rio de Janeiro, teve uma infância pouco feliz. Viu quando o pai abandonou a família, quando tinha ele apenas seis anos de idade. Foi testemunha do duro danado que sua mãe deu para criar os sete filhos deixados para trás pelo marido, lavando para fora desde o nascer até o pôr do sol. Presenciou, com tristeza, o envolvimento dos dois irmãos mais velhos com o tráfico de drogas no morro, acabando ambos mortos pela Polícia. Finalmente, revoltado, mas sem nada poder fazer, logo percebeu que duas de suas irmãs, também mais velhas que ele, acabaram se prostituindo, fazendo programas em Copacabana e em outros bairros ricos da cidade. Procuravam esconder esse fato da mãe, mas Zuma logo percebeu, estranhando os presentes que recebiam e o dinheiro que às vezes traziam para casa, sem explicar direito a origem.
Ele, como todos os irmãos, foi matriculado pela mãe no colégio público mais próximo da favela, onde chegou a concluir o primeiro grau. Queria continuar estudando, mas sua mãe insistia que era necessário que ele fosse trabalhar para ajudar nas despesas de casa.
Foi quando a sorte bateu à sua porta.
Aos quinze anos, apesar de muito magro, era bem alto, quase um metro e oitenta. Pela altura, foi convidado a fazer parte do time de vôlei do seu colégio, que, por ser escola pública, tinha poucas condições de oferecer um treinamento adequado. Mas, mal ou bem, o professor de educação física era dedicado e conseguiu formar uma equipe razoável.
Numa tarde de sábado, num jogo de campeonato estudantil, no Méier, foi observado por Benedito, técnico de voleibol do Botafogo, que ali fora prestigiar um amigo, que treinava o time adversário. Benedito ficou impressionado com a altura e a qualidade técnica já esboçada por Zuma, convidando-o para fazer um teste no clube.
Entusiasmado, contou à mãe o que ocorrera. Ela acabou por concordar, apesar de já estar esperando que ele conseguisse um emprego para ajudar nas despesas da casa. Impôs uma condição: que ele arranjasse um trabalho qualquer, nem que fosse de meio-expediente e levasse algum dinheiro no fim do mês.
Passou no teste e foi incorporado à equipe infantil do Botafogo. Procurou, procurou e acabou conseguindo um emprego de entregador de uma farmácia na Voluntários da Pátria (somente muito mais tarde veio a saber que o emprego fora conseguido por Benedito).
Sua rotina diária era exaustiva. Acordava às cinco da manhã, botava para dentro um café requentado e um pedaço de pão dormido e pegava o ônibus para chegar à farmácia. Trabalhava até o meio-dia e ia almoçar no Botafogo, que tinha um refeitório para os atletas. Aproveitava para bater uma bolinha no intervalo do almoço. Voltava para o trabalho, onde ficava até às cinco. Retornava ao clube três vezes por semana, quando ocorriam os treinos do time infantil. Nas noites livres, ia para o colégio noturno, pois Benedito só aceitava atletas que estivessem estudando.
Foi campeão infantil e juvenil pelo clube, sendo convocado para a seleção brasileira de jovens aos 17 anos. Foi também campeão sul-americano.
Quando completou 19 anos, já com um metro e noventa de altura, seu corpo agora era só músculos, bem diferente do menino esquálido que chegou ao clube alguns anos antes.
Recebeu uma proposta excelente para se transferir para o Minas Tênis Clube. Consultou Benedito que, sabendo que o Botafogo não teria condições de cobrir aquela proposta, concordou com sua saída do clube.
Lá em Belo Horizonte tornou-se logo uma das estrelas da equipe. Agora, ganhando bem, alugou um apartamento que passou a dividir com um colega de time. Alimentava-se bem, vestia-se com apuro. E, finalmente, conseguiu realizar o sonho que acalentava já há algum tempo: comprou uma casa modesta mas confortável para a mãe e irmãos, no Méier. Dona Laurinda não cabia em si de contentamento quando se mudou, deixando para trás a violência, o tráfico de drogas e a miséria da favela.
Então, aconteceu também outra coisa pela qual esperava com ansiedade: a primeira convocação para a seleção brasileira adulta de vôlei.
Quando se apresentou na concentração, uma fazenda agradável nos arredores de Curitiba, estava um pouco nervoso, um pouco tímido. Mas, os demais jogadores logo o deixaram à vontade, procurando fazer com que se enturmasse rapidamente.
Na primeira noite de concentração, Louro, então o capitão da equipe brasileira, com ar sério, sentado ao seu lado na mesa do jantar, disse-lhe que o técnico era muito rigoroso e exigia que, a cada manhã, um dos jogadores acordasse mais cedo e fosse até o pátio externo e hasteasse a bandeira do Brasil. E, mais: depois de hasteá-la, o jogador teria que ficar em posição de sentido ao lado do mastro, aguardando que os outros atletas acordassem e fossem todos cantar o hino nacional. Era para exaltar o patriotismo, dizia o técnico.
Louro disse a Zuma, que por ser ele o mais novo da equipe, ficaria encarregado de hastear a bandeira na manhã seguinte, já que todos os outros jogadores já haviam passado por aquele ritual.
Zuma concordou e às cinco da manhã seguinte, com apenas um agasalho sobre as costas, estava no pátio hasteando a bandeira. Ficou em posição de sentido ao lado do pavilhão nacional, aguardando que os outros acordassem.
Por volta das sete, o técnico da equipe passava por um corredor externo, dirigindo-se ao refeitório, onde iria tomar o café da manhã. Vendo Zuma tiritando de frio (a temperatura devia estar por volta dos 6 graus), indagou o motivo de sua presença ali. Zuma, respeitosamente, respondeu que estava aguardando que os demais jogadores acordassem para entoar o hino nacional.
O técnico riu gostosamente, dizendo-lhe que se tratava de um trote dos veteranos. Zuma ficou encabulado, sem graça e puto da vida. Na mesa do café da manhã, cara amarrada, Louro ainda teve a cara de pau de perguntar-lhe se ele tinha dormido bem. Além de ter que agüentar a gozação dos demais membros da delegação.
Mas, logo se enturmou e realizou outro dos seus sonhos: viajar para o exterior. Conheceu a Europa, a Ásia, a Oceania. Visitou vários países, conviveu com outros povos, outras culturas.
Nesses anos de viagens quase contínuas, foi campeão do mundo e da Liga Mundial (2 vezes).
Agora, estava disputando os Jogos Olímpicos. Como as coisas se passaram tão rapidamente em sua vida! Do menino pobre de favela até pouco tempo atrás a astro do vôlei mundial...
A equipe brasileira, magnífica, vinha passando como um rolo compressor sobre seus adversários. Quartas, semifinal e, agora, a final contra a Rússia, adversário ferrenho dos últimos anos.
Jogo disputado palmo, ponto a ponto.
Primeiro set, Brasil 25 a 23.
Segundo set, Rússia 39 a 37.
O terceiro, Brasil, 25 a 23.
Quarto, Rússia 32 a 30.
As duas equipes descansaram por alguns minutos, tentando recuperar-se do desgaste sofrido nos sets anteriores. Os dois técnicos, histéricos, gritavam ordens e instruções aos jogadores que mal conseguiam ouvir o que era dito.
Voltaram para a quadra, cansados, suando em bicas, beirando à exaustão. O tie-brake começou emocionante. Os pontos eram disputados com ardor, um a um. Chegaram ao empate em 12. O Brasil consegue abrir 14 a 12. Estava a um ponto da vitória. Mas, a Rússia não se entrega, briga até o fim. Marca mais um, diminuindo a diferença para 14 a 13.
O saque é da Rússia. A bola voa alta, atravessando a rede e caindo do lado brasileiro. O líbero a recebe com dificuldade, dando um passe para o meio da rede. O levantador, mãos de seda, como se estivesse tratando a bola como a coisa mais preciosa da vida, toca-a de leve com a ponta dos dedos, levantando-a para a ponta esquerda da rede.
Zuma, qual um pássaro gigante, alça o vôo magnífico, atingindo uma altura inimaginável. Suas joelhos se flexionam, empurrando as duas pernas para trás. No ar, levanta o braço direito e prepara a mão para a cortada mortal.
Naquele segundo mágico, que realmente deveria ser congelado para ficar perpetuado no tempo e no espaço, sua vida toda passou por sua mente, como um filme de longa metragem rodando em baixa rotação.
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