HISTORINHAS DO JÚRI (III)
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terça-feira, abril 08, 2025
sexta-feira, fevereiro 21, 2025
HISTORINHAS DO JÚRI (II)
HISTORINHAS DO JÚRI (II)
Calfilho
Era um julgamento pelo tribunal do Júri, numa pequena cidade do interior do RJ, meados dos anos 70 do século passado.
Nessas cidades com poucos habitantes, encravadas e esquecidas em longínquos rincões do Estado, era raro acontecer um julgamento pelo júri, que só tem competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, ou sejam, o homicídio, o aborto, o infanticídio e o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Crimes de morte nessas pequeninas cidades são raros de acontecer, já que lá quase todo mundo se conhece desde a infância, normalmente são lugares calmos e de vida rotineira. Uma igrejinha, uma agência bancária, pequenas lojas comerciais, um barzinho e o resto, residências. Pelo menos, naquela época.
Por isso, o julgamento estava movimentando quase toda a população da cidade, curiosa em assisti-lo.
Tratava-se de um filho de um importante fazendeiro da região, um dos últimos "coronéis", que, após uma bebedeira, discutira com um colega de copo e, da discussão, ocorreram ofensas mútuas, e o acusado, puxando de um facão que sempre carregava na cintura, desferiu dezesseis golpes no antagonista. Morte imediata, sem chance de transporte ao modesto hospital da cidade. A vítima também era pessoa conhecida na cidade, dono de uma pequena loja de venda de produtos agrícolas.
Tanto o juiz, como o promotor de justiça eram novatos nas respectivas carreiras, nomeados que foram após aprovação em recentes e rigorosos concursos. O advogado de defesa era um daqueles conhecidos antigos da região, sem maior formação jurídica, um dos muitos "rábulas" existentes naqueles tempos nas pequenas cidades do interior do país. Bonachão, barriga avantajada, sorriso largo no rosto, dava-se bem com todos por aquelas bandas.
O julgamento começou, foram ouvidas várias testemunhas, presenciais ou não, o réu apresentou versão de legítima defesa.
O dr. Promotor pediu a condenação em homicidio qualificado, ressaltando a violência e gravidade dos dezessseis golpes de facão e a improcedência das alegações da defesa.
O advogado, em sustentação meio confusa e enrolada, defendeu a tese de legítima defesa da honra (naqueles anos era tese rotineira no Júri) e da vida, já que, segundo algumas testemunhas, a vítima também teria feito menção de puxar uma arma.
Os jurados, após rápida deliberação chegaram à conclusão já esperada por todos, tendo em vista a importância da família do réu na região: absolveram-no pelo homicídio.
Mas,surpresa:condenaram-no pela estranha acusação da contravenção de porte de arma, também contida na denúncia e aceita pela pronúncia.
O juiz, todos de pé, solenemente, leu a sentença. "Absolvo o réu pelo crime de homicídio. Condeno-o, entretanto, à pena de multa de Cr$2,70 por infringência da contravenção do
art. 19, da Lei das Contravenções Penais. Declaro, encerrada a sessão".
O dr. Promotor de Justiça, em pé, do lado direito do juiz, profundamente irritado com o resultado, pede a palavra, mete a mão no bolso da calça e tira uma nota Cr$5,00, jogando- a sobre a mesa do juiz:
"-- Excelência, eu pago a multa. O Estado pode ficar com o troco"...
segunda-feira, dezembro 02, 2024
O "SER" BOTAFOGUENSE"
Calfilho
O botafoguense é ESCOLHIDO porque não debocha, nem tripudia dos adversários que, para ele, são apenas isso, adversários e não inimigos.
É ESCOLHIDO porque vibra e chora com seu time, tanto nas vitórias como nas derrotas, porque futebol é paixão e o choro faz parte disso tudo, na alegria e na tristeza.
É ESCOLHIDO porque quando o jogo é decisivo, põe a alma e o coração em campo e joga para ganhar. Mesmo com 10 contra 11, desde o primeiro minuto do primeiro tempo.
Lembra muito a garra de Heleno, a irreverência de Garrincha, a categoria de DIDI, a explosão de Amarildo, o faro de gol de Quarentinha, Jairzinho e Tulio, o amor à camisa de Nílton Santos, Afonsinho, Jefferson, Loco Abreu e Tulio Guerreiro...
Aos atuais campeões da Libertadores...
Vitória épica, vitória GLORIOSA...
(Cópia de publicação que fiz ontem na minha página do Facebook e que aqui transcrevo, com duas breves alterações)
sexta-feira, novembro 22, 2024
HISTORINHAS DO JÚRI (I)
HISTORINHAS DO JÚRI ( I )
A sessão do Tribunal do Júri transcorria quente. Muita tensão, muito debate, muita história para contar.
A defesa tinha a palavra para a sustentação oral. A Defensora Pública, uma senhora já nos seus cinquenta e poucos,, baixinha, corpo ligeiramente volumoso, começou:
"Senhor Presidente, senhor representante do Ministério Público, senhores jurados:
"Examinei este processo de frente para trás, também de trás para a frente, cada palavra, cada ponto, cada vírgula, e cheguei a uma única conclusão: a absolvição do acusado se impõe".
Já empolgada, caminhando em passos largos pelo grande salão do plenário, olhando fixamente para os sete jurados à sua frente (cinco mulheres e dois homens), continuou:
"Passei a noite e a madrugada de ontem debruçada sobre este processo (exibiu os volumosos autos para os jurados) e não encontrei uma prova, sequer um único indício que apontasse para a culpabilidade do Genuíno, meu cliente".
O Promotor de Justiça, raposa antiga do Júri, já nos seus sessenta e alguns anos, sentado do lado direito do juiz-presidente, interrompeu, falando rapidamente:
"Dra., dra., não me faça uma coisa dessa, a senhora vai me criar um sério problema com minha esposa, que está no plenário, assistindo o júri (olhou rapidamente para um grupo de estagiárias que assistiam o julgamento). Talvez até nosso divórcio..."
A Defensora, surpreendida pela observação, não entendeu:
"Eu, doutor, por quê? O que eu fiz? Nem tenho o prazer de conhecer sua esposa..."
O velho promotor, muito cinicamente, engole um pouco de água do copo à sua frente e retruca, com voz firme, fisionomia séria:
"A senhora não pode ter ficado esta madrugada toda debruçada sobre estes autos".
Olhou rapidamente para os tanto ou quanto volumosos seios da advogada do Estado, imaginando-os deitados sobre os dois volumes do processo. Fez uma breve pausa e continuou, a Defensora olhando surpresa para ele:
"Os autos estavam em meu poder desde ontem à tarde quando os peguei no Cartório e os levei para minha residência. Passaram comigo a noite inteira, quando fiz algumas anotações para exibir neste julgamento. Não estava debruçado sobre eles, mas estava em meu leito de dormir, lendo-os e examinando-os atentamente..."
A doutora defensora, desconcertada, ficou vermelha, amarela, furta-cor (como no samba de Noel), sem palavras por alguns segundos.
Os jurados e até o juiz-presidente não conseguiram conter o riso.
Já controlada, ela conseguiu berrar:
"Era xerox, era xerox..."
Genuíno, que não tinha nada a ver com aquilo tudo, acabou condenado....
domingo, novembro 28, 2021
DIVAGAÇÕES...
Calfilho
A consulta estava marcada há algum tempo...
Chegou, como sempre, antes da hora marcada... 10:45, a
consulta era às 11 horas... Detestava chegar atrasado para um compromisso...
A enfermeira, solícita, mandou que entrasse:
-- Por favor, Dr. Marcio, disse-lhe, apontando a porta do
consultório.
A doutora, jaleco branco, parecia muito simpática...
-- Prazer, sou a dra. Josephine...
Ele, de máscara, fruto da COVID-19, só a cumprimentou:
-- Bom dia, doutora. O Dr. Joaquim me encaminhou para a
senhora, sou cliente dele.
Joaquim era o dono da clínica onde ele fazia um tratamento
sério, pois já sofrera três intervenções cirúrgicas...
-- Já vi seu histórico de cliente. Em que posso ajudar?
--Não sei, doutora, foi o dr. Joaquim quem me encaminhou
para a senhora...
Ela passou os olhos no histórico antigo da clínica.
-- Seus exames aparentemente estão bons... O que o senhor
está sentindo?
-- Dores, doutora, dores no estômago e intestino.
Consequência dos remédios que estou tomando. Sei que eles são bastante invasivos,
o Dr. Joaquim já me disse isto, talvez ele me tenha encaminhado para a senhora
para ver ser há algum medicamento que alivie um pouco essas dores, esse mal
estar...
-- Seus exames não denotam isso... Sei que o senhor deve
estar preocupado com o resultado dos seus exames, mas não há razão para isso...
-- Tá bem, doutora, então não sei o que vim fazer aqui com a
senhora...
-- Vamos examiná-lo, retrucou ela. Tire a camisa, deite na
cama, vou tirar sua pressão, sua temperatura.
Ele obedeceu, até que era sensato em cumprir ordens médicas.
-- Pressão 12/8,-- ela sorriu. Temperatura 35,7. Parece um garoto.
-- Pode vestir a camisa. Ele pediu auxílio para ajudar a
levantar da cama. Sua lombar doía muito.
Sentaram-se novamente um em frente ao outro, médico e
paciente.
-- Realmente, eu não sei muito em que posso ajudá-lo. Seus
exames estão dentro da normalidade, mesmo levando em conta sua idade. As
sequelas de sua doença são previsíveis. Posso rejeitar um analgésico, mas será
apenas um paliativo.
Aí, então, ela falou a frase infeliz:
-- Talvez o senhor esteja com um problema psicológico. O que
seria normal, tendo em vista a gravidade da sua doença principal. O senhor quer
que eu o encaminhe a um psicólogo?
Ele a encarou firmemente, um breve sorriso cínico
insinuou-se em sua boca;
Perguntou, ainda com o meio sorriso estampado na boca:
-- Desculpe perguntar, doutora... quantos anos a senhora
tem? Se achar que foi indiscrição minha, não precisa responder.
Ela refletiu dois segundos antes de responder:
- Quarenta e oito -- retrucou com um certo orgulho na voz
(talvez aquele paciente achasse que ela não fosse competente...)
Ele refletiu com seus botões:
“idade dos meus filhos...”
Respondeu, olhar longe, bem distante:
--Doutora, agradeço seu conselho, mas não acredito em
psicólogo. No meu tempo de estudante, isso nem existia, pelo menos para consumo
público...Aliás, hoje, na medicina, inventaram um monte de profissões paralelas
nas quais também não acredito... sou do tempo antigo, doutora, tenho 84 anos, fui
Delegado de Polícia por 35 anos, a morte era meu instrumento de trabalho, vi as
chacinas da Candelária, do Vigário Geral, corpos estraçalhados, crianças com 5,
6 anos de idade estendidas no chão, vidas sem oportunidade de crescer, de
sobreviver...Desculpe, a palavra é sobreviver mesmo, coisas que nós aqui, do
lado “civilizado” da cidade não estamos acostumados a vivenciar...
Ela ouvia, calada, duas lágrimas iluminaram seu rosto.
Emprestei-lhe um lenço de papel que achei sobre a mesa.
-- Por isso, doutora, concordo com a senhora, até acho que
tenho que debater meus problemas pessoais com outras pessoas. Não sou o dono da
verdade, e todo ser humano penso que tem necessidade de conversar coisas íntimas
com alguém. Mas, nunca com um profissional, com um carinha que pegou um diploma
e vem se achar no direito de discutir meus problemas pessoais, meu passado,
minhas angústias, minha vida. Faço isso com um irmão, com algum amigo de mais
de 50 anos de convivência, como também ouço suas apreensões, suas angústias,
suas incertezas. Afinal, todos estamos caminhando para um trajeto que não tem
volta, novos ou velhos, por isso muita coisa nos preocupa, sempre é bom conversar, desabafar...
Fez uma pequena pausa. Continuou:
-- Meu psicólogo já me ouve há muito tempo...Não marcamos consulta, nem tive a felicidade de conhecê-lo pessoalmente... Não resolve muita coisa, mas me deixa feliz quando ouço suas composições... Nome dele: NOEL DE MEDEIROS ROSA. Quando tiver um tempinho livre dessa loucura de consultório, ouça algumas composições dele... “Pela décima vez”, minha sugestão...e, se gostar, acompanha com um cálice de Pinot Noir, da região da Bourgogne...
Obrigado pela consulta...
Márcio deixou o consultório, pegou o elevador, que desceu
velozmente do 21 para o térreo...
quarta-feira, setembro 22, 2021
OS PRECATÓRIOS...
OS PRECATÓRIOS...
Calfilho
Lamentável a tentativa do
governo brasileiro de tentar postergar o pagamento de precatórios devidos pela
União.
O cidadão, que teve um direito seu violado pelo Estado (apenas dois exemplos: o policial negligente dispara sua arma numa operação numa favela e mata, por sua falta de cuidado e atenção, uma criança que brincava no quintal de sua miserável casa; a ponte mal construída de afogadilho e superfaturada, empregando material de terceira categoria, despenca e mata passageiros de veículos que por ela trafegavam e pedestres que passavam sob ela), entra com ação indenizatória contra a União, Estado ou município responsáveis pelo delito, ganha na primeira instância depois de dois anos de tramitação do processo; o órgão público recorre, mais quatro anos até o julgamento em segunda instância, que novamente dá razão ao pai da criança ou aos parentes das vítimas do “acidente” da ponte. O Estado, inconformado, impetra novo recurso ao STJ. Mais seis anos aguardando a decisão, que, outra vez, dá razão aos requerentes. Embargos de declaração, rejeitados após seis meses de espera. O Estado (em sentido amplo) oferece novo recurso ao STF, alegando inobservância de preceito constitucional nas decisões anteriores. Oito anos mais e, finalmente, a decisão do STF, reconhecendo o direito da ou das pobres vítimas, tornando a decisão definitiva, da qual, felizmente, não cabe mais recurso.
Essa decisão, transforma-se, assim, num precatório, ou seja, em termos
leigos, um título de crédito da vítima do ato ilícito contra o Estado infrator.
Mais outras várias providências administrativas e, enfim, o Estado é
obrigado a pagar...
Mas, não, vem uma sumidade qualquer do Ministério da Fazenda e diz que
precisa de dinheiro para custear o substituto do “bolsa família”, plano de
auxílio aos necessitados do Brasil (que são muitos).
REUNIÃO NO PLANALTO
-- Tem que tirar dinheiro de algum lugar. Preciso recriar esse “bolsa
família”, que vou mudar o nome, para garantir o voto daquele povo do nordeste.
-- Mas, Presidente, precatórios
são títulos de dívida pública reconhecidos pela Justiça.
-- Não sei, arranja um jeito, preciso daqueles votos. Basta dar comida
pra eles, que votam em mim. Vocês têm outra saída?
Timidamente, um ministro mais ponderado e nem tão radical, arrisca:
-- Presidente, que tal tirar um pouco das emendas dos deputados e
senadores. O valor é absurdo...
Depois de alguma reflexão, a resposta:
-- Não, não posso mexer com isso. Vou perder o apoio do Congresso...
O tímido oferece outra sugestão:
-- Abate mais desse fundo partidário. Eles aumentaram muito...
Veio logo a resposta:
-- Nunca, isso nunca... Vão votar logo, logo meu impeachment...
Após uma pausa:
-- Então, sem solução?
Sem resposta.
-- Então, ministro, avança nos precatórios...
BRASIL ACIMA DE TUDO...
segunda-feira, dezembro 28, 2020
ABUSO DE AUTORIDADE... EXCLUDENTE DE ILICITUDE...
ABUSO
DE AUTORIDADE...
EXCLUDENTE
DE ILICITUDE...
Calfilho
Lamentável,
para não dizer revoltante...
Quantas
vezes este ano que está por terminar, o macabro 2020, nos trouxe, nas páginas
dos jornais ou noticiários da televisão, mais um caso de morte de inocentes,
muitos deles simples crianças, a maioria moradores de comunidades carentes,
envolvendo policiais militares (em sua grande parte) ou civis? E, também,
seguranças de estabelecimentos comerciais.
A
pandemia da COVID-19 é a pior coisa que aconteceu este ano, para torná-lo tão
macabro. Já ceifou a vida de quase 200 mil brasileiros. Mas, a morte de
inocentes, em “confrontos” em que a polícia esteve envolvida, ou mesmo quando
este sempre alegado “confronto” inexistiu, talvez tenha sido a segunda pior
tragédia deste 2020 que ora se finda.
É
a tecla em que venho batendo desde o início de minha atividade profissional, a
maior parte passada na área criminal: temos que ter muito cuidado em preparar psicológica e profissionalmente nossos policiais (ou seguranças particulares)
antes de entregar-lhes uma arma de fogo. Em tese, para nos defender, mas, que,
muitas das vezes, acaba virando contra a própria sociedade, ceifando vidas de
inocentes. E, olhe que não são armas leves, quase sempre poderosos fuzis,
armamento de guerra.
É
claro que a criminalidade evoluiu muito nesses últimos 30 anos. Organizou-se,
armou-se com armas contrabandeadas, também de grosso calibre, e os jornais
televisivos mostram que eles transitam livremente pelas comunidades mais
carentes portando ostensivamente todo esse armamento. Criaram-se as milícias,
cujos membros, em grande parte, são ex-policiais expulsos de suas corporações
ou contraventores ligados ao conhecido jogo do bicho, e parecem querer dominar
o espaço público. Assaltam caminhões de carga nas estradas, constroem
irregularmente prédios em terrenos públicos, cobram taxas de segurança para os
pequenos comerciantes das comunidades e mesmo de bairros afastados, usam o
terror como arma principal para obter o domínio da região.
Lógico
que é sabido que essas quadrilhas se refugiam nessas comunidades, pois sabem
que ali falta quase tudo, onde o Estado não está presente e é muito fácil
controlar aqueles que necessitam de transporte, de comércio, de luz, gás,
internet, etc... A polícia raramente aparece nessas comunidades e, quando o
faz, age de forma atabalhoada, agressiva, truculenta, invadindo barracos,
intimidando moradores honestos, que trabalham, que estudam, que lutam por uma
melhor situação de vida.
Por
isso, necessário que a polícia esteja fortemente armada para enfrentar um
inimigo de tão alto poder de violência e intimidação. Mas, antes de tudo, que
os policiais que vão usar estas armas estejam psicologicamente preparados e
treinados para esse uso. Não podem entrar nas comunidades atirando a esmo,
temerosos de qualquer movimento suspeito que pensam ter visto, e atingindo
inocentes que ali residem por não terem outro lugar para morar.
Infelizmente,
não é isso o que se vê.
A
grande maioria de nossos policiais (civis ou militares), jovens recrutados nas
classes menos favorecidas da população, grande parte com baixo nível de
escolaridade, sem o treinamento adequado, sem uma rigorosa seleção psicológica,
colocam uma farda ou portam um distintivo, pegam uma arma de alto poder letal e
vão para as ruas cumprir missões para as quais evidentemente não estão
preparados.
Aí,
uma menina de 11 anos, aluna de uma escola pública, que brincava com colegas na
hora do recreio, é morta brutalmente porque policiais militares perseguiam um
suspeito fora da área do colégio e dispararam seus fuzis nessa perseguição.
Ou
um carro que trafegava por uma rua da zona norte é metralhado porque policiais
de uma patrulha receberam comunicação pelo rádio de que um veículo com as
mesmas características transportava bandidos em fuga. Sem uma abordagem, sem
nada. “Atira primeiro, pergunta depois...”.
Ainda
um menino que é atingido e morto por tiro de fuzil quando estava no interior de
sua residência, em São Gonçalo, em outra alegada diligência policial na
comunidade pobre em que morava...
Mais
duas meninas que conversavam na porta de uma casa humilde de outra comunidade
carioca também são mortas porque a polícia entrou abruptamente na favela
alegando procurar um perigoso delinquente...
E,
ainda mais recente, dois jovens que transitavam em uma motocicleta por uma via
da Baixada são atingidos por tiros de fuzil, presos, colocados na viatura
policial e aparecem mortos em outro local...
Alguns
desses casos foram gravados por câmeras de vigilância... e os outros? Quantos
mais não o foram?
Sei
que o problema é de difícil solução. Mas, esta não pode ser encontrada com
“tiros na cabecinha” ou com entradas espalhafatosas em comunidades, com
policiais despreparados atirando descontroladamente as armas que portam, sem
que sejam tomadas cautelas mínimas para evitar a morte de inocentes...
Não
adianta o porta-voz da corporação vir perante às câmeras da TV e dizer que
“houve confronto”, que “os policiais não dispararam”, “que um inquérito
rigoroso vai ser instaurado”. Suas palavras não vão diminuir a dor dos pais,
filhos, parentes daqueles que são enterrados em consequência de um ato
estúpido, truculento praticado por alguém que não estava preparado para usar
uma arma tão poderosa...
Muitos
afirmam que o problema da violência policial contra pobres e pretos seria,
acima de tudo, racismo...
Essa
afirmação foi veementemente sustentada após o espancamento bárbaro de um
cliente negro por seguranças de um supermercado no Rio Grande do Sul. Violência
que resultou na morte da vítima. Dois “seguranças” brancos que espancam um
negro até a morte. Fato assistido por uma supervisora do estabelecimento que
tenta, inclusive, impedir o registro da cena por um celular de entregador de
mercadorias, fazendo-lhe ameaças. Tudo gravado de diversos ângulos, desde o
início da discussão entre o cliente e uma caixa, a intervenção dos
“seguranças”, até o momento final da bárbara e covarde agressão, num outro
local do estabelecimento.
Não
resta dúvida de que o ingrediente “racismo” está presente nesse tipo de
violência. Até porque quem veste uma farda, seja de policial ou simples
segurança particular, considera-se investido de uma autoridade excepcional
contra os seus semelhantes, principalmente se for um negro e pobre, por
considerá-los inferiores, parentes próximos da marginalidade, segundo seus deturpados
conceitos.
É
o famoso “sabe com quem está falando?”, há muito impregnado na cultura
brasileira. Além das autoridades do “alto escalão”, todo aquele que usa uma
farda ou um distintivo de uma instituição pública também se considera como tal.
Mais modernamente, surgiram os coletes, para indicar que esse ou aquele
servidor pertence a determinado órgão público. Tais como “Defesa Civil”,
“GAECO’, “Meio ambiente”, “Ministério Público”, “Segurança” e tantos outros que
proliferaram nos últimos anos...
Então,
por ostentarem uma farda, um distintivo, um colete, se acham superiores aos
outros cidadãos, principalmente se estes pertencerem a classes menos
favorecidas da sociedade... O que vimos gravado no episódio do supermercado de
Porto Alegre, com o espancamento covarde (um imobilizando, outro dando socos e
pontapés), que acabou com a morte do cliente, vai bem por esse enfoque do abuso
da “autoridade”. Pode ter existido algum racismo, mas acho que muito mais
prepotência, arrogância, o “sabe com quem está falando?” por parte dos
“seguranças” autores do assassinato e da cúmplice supervisora, que nada fez
para impedir o massacre e até quis impedir que a cena grotesca fosse gravada...
Quando
ainda era ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, famoso por ter combatido
a corrupção, quis introduzir no nosso Código Penal uma excludente de “ilicitude”
para policiais que cometessem um homicídio “por medo, ou receio” quando no
exercício da função. Excludente de ilicitude, segundo o nosso Direito Penal,
significa que “não há crime”, ou seja, no caso do homicídio em particular, a
morte de alguém teria sido um ato lícito.
Nosso
ex-ministro talvez fosse mais especializado nos chamados crimes de colarinho
branco, na corrupção ativa e passiva. Mas, apesar destes também poderem ser
praticados por policiais, a tal excludente visava absolver por ausência de
ilicitude (não isentar de pena, o que é outra coisa), o agente da lei que
matasse outrem “por medo ou receio”. Pronto, a farra estaria completa e os policiais
e demais “autoridades” poderiam legitimamente “atirar antes, para perguntar
depois”, pois teriam certeza de que estavam agindo legitimamente.
Acho
que essa não era a área do ex-ministro, que, felizmente, não foi adiante. Mas, é claro, só fez essa tentativa por
influência superior, que, desde a campanha eleitoral sempre esteve a favor da
classe policial, e tem nela um forte apoio à sua gestão.
Tanto
que, já com Moro longe, voltou agora, recentemente, a insistir na inclusão
dessa aberração em nosso ordenamento jurídico. Isso ocorreu num comício recente
que fez num centro de abastecimento em São Paulo.
Aliada
à intenção do governo da liberação total de compra e posse de armas (até o
imposto de importação foi zerado), com essa excludente, vamos ter mais
inocentes mortos em “confrontos”, em “diligências”, em invasões espalhafatosas
em comunidades carentes, em “rigorosos inquéritos” para apurar
responsabilidades, com mais policiais engrossando as já poderosas milícias em
nossas cidades...
E,
todos portando suas armas, vamos assistir duelos nas ruas, nas estradas, nos
condomínios, e vão sair vitoriosos aqueles que conseguirem “sacar” primeiro...