terça-feira, abril 08, 2025

HISTORINHAS DO JÚRI (III)     

                                                 Calfilho



      O julgamento transcorria como tantos outros na rotina daquela vara do Tribunal do Júri da capital do Estado.

         Caso corriqueiro. Briga entre    vizinhos de um prédio de classe média de Copacabana. As duas "esposas" discutiram na garagem do edifício, uma alegando que a outra estacionou mal o seu veículo, invadindo o espaço da sua vaga. A discussão chegou aos maridos, cada uma contando a sua versão da história. Um certo dia, os maridos, dois senhores com mais de 60, cabelos grisalhos, encontram-se no elevador.

          Um deles, o mais forte, interpelou o outro:

          -- Porra, cara, onde você mora mesmo?

          O outro, baixinho, respondeu, cara amarrada:

          -- No oitavo? Por que?

          Era um prédio antigo, mas de certo gabarito, um apartamento por andar, de frente para a Atlântica.

           O forte respondeu:

           -- Eu, no quinto. Fez uma breve pausa e continuou: -- Minha esposa me contou que a sua mulher a ofendeu outro dia, no estacionamento do prédio.

             O baixinho tentou manter a calma, depois de apertar o botão 8 do painel do elevador. Respondeu, voz baixa:

          -- Não foi o que a minha esposa me contou. Ela me disse que foi a sua mulher quem invadiu a nossa vaga no estacionamento.

          O fortão não gostou. Retrucou:

           -- Mentira dela. Aliás, todo mundo no prédio sabe que ela é uma piranha mentirosa, gosta de criar caso com os outros moradotes.

          E desferiu um tapa vigoroso no rosto do baixinho. Este, jogado para trás, bateu com as costas na parede de espelho do elevador.

          Meteu a mão na cintura, puxou a "arminha" que estava oculta pela camisa larga. Três disparos rápidos.

          O fortão caiu pesadamente no chão, quase por cima do baixinho. O sangue jorrou para todo lado. O elevador parou no quinto andar. Ninguêm desceu.

           No dia do julgamento, quase três anos após o fato, depois do relatório do juiz, da inquirição de testemunhas, do acusado e de um perito, falaram o Promotor de Justiça e o advogado da parte assistente da acusação, que pediram a condenação ao máximo da pena prevista em lei. A palavra, agora, estava com o advogado de defesa do réu.

           Advogado pouco conhecido entre os militantes da tribuna, aparentava ter pouco mais de 50 anos. Bem alto, tom de voz sonoro e poderoso, começou a tentar cativar os jurados. Expôs a versão do seu cliente e defendeu a tese da legítima defesa.

           -- Foi ofendido moralmente, ele e a esposa, e foi agredido com um violento tapa no rosto, que quase o jogou ao chão. Qual seria a reação de um homem normal? 

             O Promotor, sentado do lado direito do juiz, balançava a cabeça, em sinal de desaprovação.

             O advogado continuou:

             -- Ali dentro daquele elevador apertado, só os dois, o que poderia esperar o acusado? Ser mais espancado? Até a morte?7

             Bebeu um gole d'água. Prosseguiu:

              -- A vítima, homem muito mais forte, quase o dobro do réu, poderia matá-lo facilmente ali dentro e ninguém saberia o real motivo. A câmera interna do elevador não funcionava, conforme depôs aqui hoje o perito. Hoje, poderíamos estar julgando aqui a vítima e não o réu. Este, sim, hoje estaria morto se a pseudo vítima o continuasse agredindo.

            Outra pausa, outro gole d'água. Parecia um pouco nervoso, mas entusiasmou-se com sua defesa e com a reação dos jurados.

            Colocou a mão no ombro do acusado, que mantinha a cabeça curvada para o chão, sentado no famoso "banco dos réus". Virou-se para os jurados:

             -- Os senhores teriam coragem de condenar um homem idoso como este, cabeça toda branca com o peso da idade e suportando um processo desses durante três anos?

             O Promotor, até então em silêncio,  interferiu, falando em voz baixa:

              -- É, doutor, os canalhas também envelhecem, isso não acontece só com os bonzinhos...

              O advogado exaltou-se:

              -- Canalha, doutor Promotor? Canalha, por que? Porque se defendeu de uma agressão, contra sua pessoa, sua honra e a da sua esposa?

               O Promotor balançava negativamente a cabeça. Comentou baixinho, mas o suficiente para ser ouvido:

           --Mentiras, doutor, mentiras. Cuidado que o nariz está começando a crescer...

            O advogado pareceu não entender a provocação. O Promotor continuou:

            -- Cuidado, doutor, se o senhor continuar mentindo, vai acabar igual àquele personagem das histórias em quadrinhos... 

             Colocou a mão na cabeça, como se estivesse procurando lembrar do nome do personagem.

             --Qual o nome dele mesmo? Não consigo lembrar...

            Uma senhora de óculos, cabelos todos brancos, na plateia, gritou:

            -- PINÓQUIO...

            O Promotor não perdeu a oportunidade:

             -- Isso aí, doutor, a senhora da plateia me ajudou. Cuidado que o seu nariz vai crescer igual ao do Pinóquio. Pare de mentir por favor.

             O advogado recompôs-se.

             Reclamou com o juiz:

             -- Excelência, fui insultado na minha honra. Exijo uma retratação do dr. Promotor e que o senhor o advirta das sanções legais por ofender um profissional do Direito.

           O juiz, que até ali parecia pouco interessado nos debates entre acusação e defesa, tirou brevemente os olhos dos papéis que assinava (comprovação de presença de estagiários para levar à faculdade). Tocou a campainha do plenário (no Brasil usa-se a campainha e não o martelinho, como nos filmes americanos). Disse, em voz alta e bem clara:

             --Dr. Promotor, advirto-o de que o senhor não pode mais chamar o ilustre advogado de defesa de PINÓQUIO...

              Os jurados riram baixinho.

              O Promotor, esboçando também um leve sorriso (de ironia, é claro), levantou-se, pediu licença ao juiz e deixou o plenário...

              Não me perguntem qual foi a decisão dos jurados...





3 comentários:

Jorge Carrano disse...

Excelente narrativa. Bem contada. Com o final em aberto, exigindo reflexão e capacidade dedutiva.
Seja ficção, seja acontecimento real (de seus tempos de magistratura) uma boa história.
Parabéns. Que venham as próximas "Historinhas do juri" IV e assim por diante.
Abraço.

CARLOS AUGUSTO LOPES FILHO disse...

Valeu, Carrano, obrigado pelo comentário. O fato é + ou - menos real. Fantasiei um pouco, inverti alguns papéis, pois acho que todos os personagens ainda estão vivos e poderiam não gostar da história

Jorge Carrano disse...

Imaginei tratar-se de situação real, modificada aqui e ali para camuflar.
Mas conhecendo sua verve, não duvidaria de ser mera ficção embasada na experiência forense, desde o ministério público até a magistratura.