HISTORINHAS DO JÚRI (III)
Calfilho
O julgamento transcorria como tantos outros na rotina daquela vara do Tribunal do Júri da capital do Estado.
Um deles, o mais forte, interpelou o outro:
-- Porra, cara, onde você mora mesmo?
O outro, baixinho, respondeu, cara amarrada:
-- No oitavo? Por que?
Era um prédio antigo, mas de certo gabarito, um apartamento por andar, de frente para a Atlântica.
O forte respondeu:
-- Eu, no quinto. Fez uma breve pausa e continuou: -- Minha esposa me contou que a sua mulher a ofendeu outro dia, no estacionamento do prédio.
O baixinho tentou manter a calma, depois de apertar o botão 8 do painel do elevador. Respondeu, voz baixa:
-- Não foi o que a minha esposa me contou. Ela me disse que foi a sua mulher quem invadiu a nossa vaga no estacionamento.
O fortão não gostou. Retrucou:
-- Mentira dela. Aliás, todo mundo no prédio sabe que ela é uma piranha mentirosa, gosta de criar caso com os outros moradotes.
E desferiu um tapa vigoroso no rosto do baixinho. Este, jogado para trás, bateu com as costas na parede de espelho do elevador.
Meteu a mão na cintura, puxou a "arminha" que estava oculta pela camisa larga. Três disparos rápidos.
O fortão caiu pesadamente no chão, quase por cima do baixinho. O sangue jorrou para todo lado. O elevador parou no quinto andar. Ninguêm desceu.
No dia do julgamento, quase três anos após o fato, depois do relatório do juiz, da inquirição de testemunhas, do acusado e de um perito, falaram o Promotor de Justiça e o advogado da parte assistente da acusação, que pediram a condenação ao máximo da pena prevista em lei. A palavra, agora, estava com o advogado de defesa do réu.
Advogado pouco conhecido entre os militantes da tribuna, aparentava ter pouco mais de 50 anos. Bem alto, tom de voz sonoro e poderoso, começou a tentar cativar os jurados. Expôs a versão do seu cliente e defendeu a tese da legítima defesa.
-- Foi ofendido moralmente, ele e a esposa, e foi agredido com um violento tapa no rosto, que quase o jogou ao chão. Qual seria a reação de um homem normal?
O Promotor, sentado do lado direito do juiz, balançava a cabeça, em sinal de desaprovação.
O advogado continuou:
-- Ali dentro daquele elevador apertado, só os dois, o que poderia esperar o acusado? Ser mais espancado? Até a morte?7
Bebeu um gole d'água. Prosseguiu:
-- A vítima, homem muito mais forte, quase o dobro do réu, poderia matá-lo facilmente ali dentro e ninguém saberia o real motivo. A câmera interna do elevador não funcionava, conforme depôs aqui hoje o perito. Hoje, poderíamos estar julgando aqui a vítima e não o réu. Este, sim, hoje estaria morto se a pseudo vítima o continuasse agredindo.
Outra pausa, outro gole d'água. Parecia um pouco nervoso, mas entusiasmou-se com sua defesa e com a reação dos jurados.
Colocou a mão no ombro do acusado, que mantinha a cabeça curvada para o chão, sentado no famoso "banco dos réus". Virou-se para os jurados:
-- Os senhores teriam coragem de condenar um homem idoso como este, cabeça toda branca com o peso da idade e suportando um processo desses durante três anos?
O Promotor, até então em silêncio, interferiu, falando em voz baixa:
-- É, doutor, os canalhas também envelhecem, isso não acontece só com os bonzinhos...
O advogado exaltou-se:
-- Canalha, doutor Promotor? Canalha, por que? Porque se defendeu de uma agressão, contra sua pessoa, sua honra e a da sua esposa?
O Promotor balançava negativamente a cabeça. Comentou baixinho, mas o suficiente para ser ouvido:
--Mentiras, doutor, mentiras. Cuidado que o nariz está começando a crescer...
O advogado pareceu não entender a provocação. O Promotor continuou:
-- Cuidado, doutor, se o senhor continuar mentindo, vai acabar igual àquele personagem das histórias em quadrinhos...
Colocou a mão na cabeça, como se estivesse procurando lembrar do nome do personagem.
--Qual o nome dele mesmo? Não consigo lembrar...
Uma senhora de óculos, cabelos todos brancos, na plateia, gritou:
-- PINÓQUIO...
O Promotor não perdeu a oportunidade:
-- Isso aí, doutor, a senhora da plateia me ajudou. Cuidado que o seu nariz vai crescer igual ao do Pinóquio. Pare de mentir por favor.
O advogado recompôs-se.
Reclamou com o juiz:
-- Excelência, fui insultado na minha honra. Exijo uma retratação do dr. Promotor e que o senhor o advirta das sanções legais por ofender um profissional do Direito.
O juiz, que até ali parecia pouco interessado nos debates entre acusação e defesa, tirou brevemente os olhos dos papéis que assinava (comprovação de presença de estagiários para levar à faculdade). Tocou a campainha do plenário (no Brasil usa-se a campainha e não o martelinho, como nos filmes americanos). Disse, em voz alta e bem clara:
--Dr. Promotor, advirto-o de que o senhor não pode mais chamar o ilustre advogado de defesa de PINÓQUIO...
Os jurados riram baixinho.
O Promotor, esboçando também um leve sorriso (de ironia, é claro), levantou-se, pediu licença ao juiz e deixou o plenário...
Não me perguntem qual foi a decisão dos jurados...
3 comentários:
Excelente narrativa. Bem contada. Com o final em aberto, exigindo reflexão e capacidade dedutiva.
Seja ficção, seja acontecimento real (de seus tempos de magistratura) uma boa história.
Parabéns. Que venham as próximas "Historinhas do juri" IV e assim por diante.
Abraço.
Valeu, Carrano, obrigado pelo comentário. O fato é + ou - menos real. Fantasiei um pouco, inverti alguns papéis, pois acho que todos os personagens ainda estão vivos e poderiam não gostar da história
Imaginei tratar-se de situação real, modificada aqui e ali para camuflar.
Mas conhecendo sua verve, não duvidaria de ser mera ficção embasada na experiência forense, desde o ministério público até a magistratura.
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