sexta-feira, setembro 15, 2017

A HERANÇA...





A HERANÇA...

Calfilho




A HERANÇA...
Calfilho


          Aquela diligência marcada para as 14 horas já se previa complicada, segundo imaginou o juiz da Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca do Rio de Janeiro, então a capital do antigo Estado da Guanabara.

        Tratava-se de um inventário de um conhecido e muito rico empresário, falecido há quase dois anos. Fora casado, tivera duas filhas daquele casamento, mas, depois de vinte e cinco anos de “feliz” matrimônio, desquitou-se da mulher (naquele tempo não havia divórcio) e fora viver com a antiga namorada dos tempos de ginásio. Desse segundo relacionamento tivera mais dois filhos, agora com 15 e 13 anos de idade, respectivamente.

   As duas famílias já discutiam acaloradamente desde o início do processo, cada uma afirmando que os direitos hereditários pertenciam a cada uma delas e que a outra parte deveria ser excluída. Os advogados eram considerados alguns dos melhores da cidade, talvez do país, componentes de dois escritórios tidos como os mais conhecidos no mundo jurídico. O Ministério Público, também, foi obrigado a intervir, por existir interesse de menores no feito. Não houve testamento...

     O juiz estranhou que, desde a abertura do inventário, aberto pela segunda mulher do falecido, não houvesse nenhum imóvel a ser partilhado. Somente algumas ações de pouco valor de empresas de que o inventariado era sócio, nada mais que isso, tendo sido solicitada a abertura de um cofre em um banco da cidade, onde o falecido dizia guardar a maior parte de seus bens. Soube-se depois que o falecido morava, em regime de comodato, num tríplex no Leblon, em frente à praia, de propriedade de um dos sócios de uma das empresas de que fazia parte.

       A requerente da inicial afirmava que teria direito à inventariança e meação, pela condição de estabilidade da relação que mantivera com o empresário, com quem coabitara por mais de quinze anos, tendo, dessa união, resultado dois filhos, devidamente reconhecidos e registrados pelo pai.

   No início do processo, houve impugnação quanto ao deferimento da inventariança à segunda mulher do falecido, inclusive com ataques diretos à mesma vindos dos advogados das filhas do primeiro casamento do mesmo, que alegavam que a segunda mulher era apenas uma entre as várias amantes que o pai teve em vida.

      O juiz manteve o deferimento da inventariança à requerente inicial, mas as filhas do primeiro casamento recorreram ao Tribunal de Justiça, recurso ainda não julgado.

     “— Bem, o problema inicial a ser resolvido vai ser a abertura desse cofre, para sabermos qual o montante da herança a ser partilhada. Enquanto as partes ficam discutindo quem são os herdeiros ou quem é ou não a meeira, pelo menos já definimos o valor do monte”.

     O escrevente entrou em seu gabinete, anunciando:

  -- Excelência, as partes e os advogados já chegaram.

   Ele acabou de despachar o expediente diário e disse:

   -- Manda eles entrarem, por favor.

   Adentraram à sala as filhas do primeiro casamento, os respectivos maridos, a mãe delas (primeira esposa), seus advogados (dois), a inventariante (segunda mulher), seus dois filhos menores, seus advogados, o curador de Órfãos. Todos muito bem vestidos, os homens de terno e gravata, as mulheres com vestidos elegantes, colares e braceletes no pescoço e punhos.

   Dr. Asdrubal (o juiz), ainda sentado, cumprimentou rapidamente os presentes. Disse, com voz grave e severa:

 -- Prestem bem atenção: sei que existem divergências entre os senhores e senhoras. Vamos fazer uma diligência externa, na agência de um banco em Botafogo, por isso solicito calma e educação entre todos para que eu não tenha que intervir e tomar uma decisão mais drástica.

  Um dos advogados quis dar sua opinião, querendo aparecer um pouco para suas clientes:

    -- Desculpe, excelência, a razão está do nosso lado, a outra parte não tem direito algum sobre o que for encontrado no cofre.

    Outro advogado, o “da outra parte”, logo rebateu:

    -- Isso é uma inverdade, nós é que temos os direitos sobre a herança.

     O juiz logo interveio:

    -- Olha, isso tem que ser resolvido nos autos. Não vou admitir discussões estéreis aqui. Nós vamos apenas saber o que o cofre contém, certo?

     Todos concordaram.

   Uma das filhas do primeiro casamento levantou o dedo e indagou:

 -- Excelência, posso fazer uma observação?

   O juiz concordou com a cabeça. Ela continuou:

    -- Deve existir uma joia no cofre, um colar de ouro e brilhantes que meu pai me deu quando eu tinha quatro anos de idade. Isso vai ser dividido entre todo mundo? Foi um presente pessoal dele, que disse que guardaria no cofre para quando eu crescesse e pudesse usar...

  -- Vamos ver, senhorita, vamos apreciar futuramente – retrucou o juiz.

       O marido da “senhorita” interveio:

-- Por favor, excelência, “senhora” e não “senhorita”. Ela é minha esposa...

    O juiz apenas olhou para ele, sem nada dizer.

 Um dos filhos do segundo relacionamento do pai comentou, em voz baixa:

  -- Papai me disse uma vez que comprava dólares e ouro, pois tinha muito medo da situação política do Brasil, que os bancos acabassem falindo... por isso, guardava tudo no cofre...

   Pegaram três taxis em frente ao Tribunal de Justiça, chegaram à agência do Banco Nacional, em Botafogo.

     Um funcionário veio logo atendê-los, avisado que estava da diligência a ser efetuada.

    -- Queiram acompanhar-me, por favor.

     No caminho, o bancário comentou:

    -- Até que enfim, vocês vão abrir esse cofre. Tinha curiosidade em saber o que ele guardava ali. Todo mês ele vinha no banco, abria o cofre e colocava alguma coisa ali dentro...

   Desceram todos ao subsolo da agência bancária. O funcionário pediu as chaves do cofre aos familiares. A ex-esposa do falecido entregou-lhe uma, a “amante” (segunda mulher) entregou-lhe outra.

      Ele abriu o compartimento, retirou o cofre, introduziu as duas chaves e o mesmo foi aberto.

  Todos em cima, olhos arregalados, curiosos para saber o que continha:

   Um volume embrulhado num grosso envelope, amarrado com fita isolante, era o conteúdo do cofre. O juiz pediu ao funcionário que o abrisse.

    As fitas foram cortadas, o envelope foi aberto.

     Dentro, apenas um monte de recortes de jornais e papéis em branco.

    Ah! Também um bilhete, manuscrito:

  “VOCÊS PENSAVAM QUE IRIAM ENCONTRAR O QUÊ, CAMBADA DE BABACAS? VÃO PROCURAR O TESOURO... UM DIA VÃO ACHAR ... AHAHAHAHA”...

    O Dr. Asdrubal não pode conter o riso quando olhou a cara que os “herdeiros” fizeram...

Alguns proferiram várias imprecações, outros xingaram mesmo o falecido...




Um comentário:

Unknown disse...

Foi sábio o falecido. Sem nada ter deixado impediu que as famílias guerreassem até o fim dos tempos.