A HERANÇA...
Calfilho
A
HERANÇA...
Calfilho
Aquela diligência
marcada para as 14 horas já se previa complicada, segundo imaginou o juiz da
Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca do Rio de Janeiro, então a capital do
antigo Estado da Guanabara.
Tratava-se de um
inventário de um conhecido e muito rico empresário, falecido há quase dois
anos. Fora casado, tivera duas filhas daquele casamento, mas, depois de vinte e
cinco anos de “feliz” matrimônio, desquitou-se da mulher (naquele tempo não
havia divórcio) e fora viver com a antiga namorada dos tempos de ginásio. Desse
segundo relacionamento tivera mais dois filhos, agora com 15 e 13 anos de
idade, respectivamente.
As duas famílias já
discutiam acaloradamente desde o início do processo, cada uma afirmando que os
direitos hereditários pertenciam a cada uma delas e que a outra parte deveria
ser excluída. Os advogados eram considerados alguns dos melhores da cidade,
talvez do país, componentes de dois escritórios tidos como os mais conhecidos
no mundo jurídico. O Ministério Público, também, foi obrigado a intervir, por
existir interesse de menores no feito. Não houve testamento...
O juiz estranhou que,
desde a abertura do inventário, aberto pela segunda mulher do falecido, não
houvesse nenhum imóvel a ser partilhado. Somente algumas ações de pouco valor
de empresas de que o inventariado era sócio, nada mais que isso, tendo sido
solicitada a abertura de um cofre em um banco da cidade, onde o falecido dizia
guardar a maior parte de seus bens. Soube-se depois que o falecido morava, em
regime de comodato, num tríplex no Leblon, em frente à praia, de propriedade de
um dos sócios de uma das empresas de que fazia parte.
A requerente da inicial
afirmava que teria direito à inventariança e meação, pela condição de estabilidade
da relação que mantivera com o empresário, com quem coabitara por mais de
quinze anos, tendo, dessa união, resultado dois filhos, devidamente reconhecidos
e registrados pelo pai.
No início do processo,
houve impugnação quanto ao deferimento da inventariança à segunda mulher do falecido,
inclusive com ataques diretos à mesma vindos dos advogados das filhas do primeiro
casamento do mesmo, que alegavam que a segunda mulher era apenas uma entre as
várias amantes que o pai teve em vida.
O juiz manteve o
deferimento da inventariança à requerente inicial, mas as filhas do primeiro
casamento recorreram ao Tribunal de Justiça, recurso ainda não julgado.
“— Bem, o problema inicial a ser resolvido vai ser a abertura desse cofre,
para sabermos qual o montante da herança a ser partilhada. Enquanto as partes
ficam discutindo quem são os herdeiros ou quem é ou não a meeira, pelo menos já
definimos o valor do monte”.
O escrevente entrou em
seu gabinete, anunciando:
-- Excelência, as
partes e os advogados já chegaram.
Ele acabou de despachar
o expediente diário e disse:
-- Manda eles entrarem,
por favor.
Adentraram à sala as
filhas do primeiro casamento, os respectivos maridos, a mãe delas (primeira esposa),
seus advogados (dois), a inventariante (segunda mulher), seus dois filhos
menores, seus advogados, o curador de Órfãos. Todos muito bem vestidos, os
homens de terno e gravata, as mulheres com vestidos elegantes, colares e
braceletes no pescoço e punhos.
Dr. Asdrubal (o juiz),
ainda sentado, cumprimentou rapidamente os presentes. Disse, com voz grave e
severa:
-- Prestem bem atenção:
sei que existem divergências entre os senhores e senhoras. Vamos fazer uma diligência
externa, na agência de um banco em Botafogo, por isso solicito calma e educação
entre todos para que eu não tenha que intervir e tomar uma decisão mais
drástica.
Um dos advogados quis
dar sua opinião, querendo aparecer um pouco para suas clientes:
-- Desculpe,
excelência, a razão está do nosso lado, a outra parte não tem direito algum
sobre o que for encontrado no cofre.
Outro advogado, o “da
outra parte”, logo rebateu:
-- Isso é uma inverdade,
nós é que temos os direitos sobre a herança.
O juiz logo interveio:
-- Olha, isso tem que
ser resolvido nos autos. Não vou admitir discussões estéreis aqui. Nós vamos
apenas saber o que o cofre contém, certo?
Todos concordaram.
Uma das filhas do
primeiro casamento levantou o dedo e indagou:
-- Excelência, posso
fazer uma observação?
O juiz concordou com a
cabeça. Ela continuou:
-- Deve existir uma
joia no cofre, um colar de ouro e brilhantes que meu pai me deu quando eu tinha
quatro anos de idade. Isso vai ser dividido entre todo mundo? Foi um presente
pessoal dele, que disse que guardaria no cofre para quando eu crescesse e pudesse
usar...
-- Vamos ver,
senhorita, vamos apreciar futuramente – retrucou o juiz.
O marido da “senhorita”
interveio:
-- Por favor, excelência,
“senhora” e não “senhorita”. Ela é minha esposa...
O juiz apenas olhou
para ele, sem nada dizer.
Um dos filhos do
segundo relacionamento do pai comentou, em voz baixa:
-- Papai me disse uma
vez que comprava dólares e ouro, pois tinha muito medo da situação política do
Brasil, que os bancos acabassem falindo... por isso, guardava tudo no cofre...
Pegaram três taxis em
frente ao Tribunal de Justiça, chegaram à agência do Banco Nacional, em
Botafogo.
Um funcionário veio
logo atendê-los, avisado que estava da diligência a ser efetuada.
-- Queiram
acompanhar-me, por favor.
No caminho, o bancário
comentou:
-- Até que enfim, vocês
vão abrir esse cofre. Tinha curiosidade em saber o que ele guardava ali. Todo
mês ele vinha no banco, abria o cofre e colocava alguma coisa ali dentro...
Desceram todos ao
subsolo da agência bancária. O funcionário pediu as chaves do cofre aos familiares.
A ex-esposa do falecido entregou-lhe uma, a “amante” (segunda mulher) entregou-lhe
outra.
Ele abriu o compartimento, retirou o cofre, introduziu as duas chaves e
o mesmo foi aberto.
Todos em cima, olhos
arregalados, curiosos para saber o que continha:
Um volume embrulhado
num grosso envelope, amarrado com fita isolante, era o conteúdo do cofre. O
juiz pediu ao funcionário que o abrisse.
As fitas foram
cortadas, o envelope foi aberto.
Dentro, apenas um monte
de recortes de jornais e papéis em branco.
Ah! Também um bilhete,
manuscrito:
“VOCÊS PENSAVAM QUE
IRIAM ENCONTRAR O QUÊ, CAMBADA DE BABACAS? VÃO PROCURAR O TESOURO... UM DIA VÃO
ACHAR ... AHAHAHAHA”...
O Dr. Asdrubal não pode
conter o riso quando olhou a cara que os “herdeiros” fizeram...
Alguns proferiram várias imprecações, outros xingaram mesmo o falecido...
Um comentário:
Foi sábio o falecido. Sem nada ter deixado impediu que as famílias guerreassem até o fim dos tempos.
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