HELENO...
GARRINCHA...
DOIS GÊNIOS... DUAS TRAGÉDIAS...
UM CLUBE...
Calfilho
Hoje, quando se discute nas emissoras de televisão e nos ainda resistentes jornais impressos, a qualidade e a importância da seleção brasileira de futebol, volto a um tema que abordei rapidamente em publicação anterior neste espaço: a identidade de um jogador de futebol com seu clube, seja o de origem ou aquele em que permaneceu mais tempo de sua vida útil como futebolista.
Logo vêm-me à memória dois nomes entre os melhores e verdadeiros craques de bola que o Brasil produziu. E, por coincidência, ambos jogaram no meu Botafogo, com apenas uma geração a separá-los.
Não cheguei a ver Heleno jogar. Isto é, para não dizer que não o vi atuando, vi sim, pela televisão, num domingo de sol inclemente, em sua última partida como jogador. Final de carreira, já um pouco gordo, estreava no América do Rio em sua única partida no Maracanã.
Tinha eu oito anos de idade, já estava praticamente alfabetizado, já começava a ler os jornais de esporte e a me interessar por futebol. Acompanhei, meio à distância, a tragédia da perda da Copa do Mundo pelo Brasil, em pleno Maracanã, em julho de 1950.
Como afirmei em matéria anterior, morava nessa época em um apartamento no início da avenida Amaral Peixoto, em Niterói. Só fui ter contato com a rua propriamente dita quando fui estudar no Grupo Escolar Getúlio Vargas e depois no Liceu Nilo Peçanha, tendo residido também no bairro do Ingá, nos primeiros anos da década de 50. Por isso, meu contato com o futebol acabou acontecendo um pouco mais tarde que os garotos da minha idade. Mesmo assim, com a minha quase ida ao Maracanã acompanhando meu pai que assistiu à fatídica derrota do Brasil para o Uruguai no Maracanã (ele acabou não me levando, com receio da ocorrência de tumultos após a partida, devido às praticamente certas comemorações e excessos pela conquista do ambicionado título), meu interesse pelo futebol aumentou consideravelmente.
O grande time brasileiro da época era o Vasco da Gama, base da seleção de 1950 (Barbosa, Augusto, Danilo, Friaça, Ademir, Jair da Rosa Pinto, Chico, eram jogadores do Vasco). Depois, vinha o poderoso Flamengo. Um pouco abaixo, o Fluminense, só depois o Botafogo.
Mas, chegando ao fim a década de 40, iniciada a de 50, com a realização da Copa do Mundo no Brasil, ainda se falava muito em Heleno de Freitas.
O menino de oito anos lia avidamente as reportagens nos principais jornais cariocas, acompanhava atento as transmissões radiofônicas das partidas realizadas nos diversos estádios da cidade, assistia um ou outro jogo que era permitido transmitir ao vivo pela televisão. Foi assim que ouviu muito falar no grande Heleno de Freitas, que teria sido o maior jogador do Botafogo na década passada. Mas, pouco ficou sabendo, na realidade, de sua importância para o clube e para o futebol brasileiro. Apenas ouvira um comentário aqui, outro ali, e sem muito interesse, assistiu à partida que foi sua despedida do futebol. Jogando pelo América, acabou brigando antes do fim do primeiro tempo, foi expulso e nunca mais jogou profissionalmente.
Esqueci Heleno, comecei a admirar o "Expresso da Vitória" vascaíno, o grande time do Fluminense, campeão carioca de 1951, até mesmo o Flamengo quando comprou o paulista "Dr. Rubis" e foi tricampeão do Rio em 1953/1954 e 1955.
A paixão botafoguense ainda não havia nascido.
Acompanhava o futebol bem de perto, ia a jogos e treinos do meu Canto do Rio, clube que frequentei e onde até fui atleta.
Comecei a ter simpatia pelo Botafogo em 1953. Num domingo, ouvia pelo rádio Oduvaldo Cozzi transmitir um jogo importante do Maracanã (não me lembro qual foi). De repente, de um pequeno estádio do subúrbio (Teixeira de Castro, em Bonsucesso), um locutor chama Cozzi, gritando desvairado ao microfone:
-- Alô, alô, Cozzi, diretamente de Teixeira de Castro. Um fenômeno, uma maravilha o que estamos vendo aqui. Um jogador extraordinário estreando pelo Botafogo. Driblou toda a defesa do time adversário e entrou com bola e tudo. Um a zero Botafogo.
Oduvaldo, o grande narrador brasileiro (o melhor que conheci), talvez entendiado pelo jogo chato do Maracanã, perguntou ao colega:
-- Qual o nome dele, Waldir?
-- Não sei direito, Cozzi, ainda estou aturdido com o que estou vendo. Vou procurar saber e te chamo de volta.
Daqui a alguns minutos, Waldir retorna:
-- Cozzi, Cozzi, pelo amor de Deus, o homem já fez mais dois. Me disseram aqui que o nome dele é Gualicho.
-- Gualicho? -- indagou Cozzi. -- Igual ao cavalo que corre no Hipódromo da Gávea?
-- Sim, sim, deve ser por isso -- retrucou Waldir. -- Deve ser porque ele corre muito, dribla os adversários na corrida, deixa todo mundo para trás.
Esse o primeiro apelido. Esse trecho da transmissão ficou gravado em minha memória até hoje, lembro-me dele quase por completo, em todas as suas palavras.
Passei a acompanhar o Botafogo com um pouco mais de interesse. O clube não era campeão desde 1948, justamente o ano em que Heleno o deixara e não conseguira o título pelo qual brigara desde o final da década de 30. A equipe era mediana, apenas figurante no campeonato carioca.
Assistia agora mais alguns jogos pela televisão, via Garrincha jogar, mas, confesso, não me empolgava muito. Achava que driblava demais, seus dribles eram improdutivos, acabava perdendo a bola ou desperdiçava um centro para uma área sem grandes artilheiros. Mas, o Botafogo era um clube simpático, sua camisa era muito bonita, a estrela solitária era um chamariz com uma força impressionante de sedução.
Até que veio a final do campeonato carioca de 1957 e o Botafogo, com uma atuação extraordinária de seu ataque (Garrincha, Didi, Paulinho Valentim, Edson e Quarentinha), simplesmente arrasou o Fluminense: 6 X 2.
Ali eu definira o clube para o qual torcer.
Continuei acompanhando o futebol de perto, tanto o meu Botafogo, como a seleção brasileira, além de outros clubes do Brasil. Tive o privilégio de acompanhar, primeiro pelo rádio, depois pela televisão, a conquista dos campeonatos mundiais de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. Assisti a dois jogos nos campos da Beaujoire (Nantes) e Velodrome (Marseille) no vice-campeonato de 1998.
Só mais recentemente, já adulto, quando tinha meus trinta e poucos anos, procurei matar minha curiosidade e fui conhecer mais de perto a história do meu clube. E, dos vários livros que li, das pesquisas que fiz, restou-me uma certeza: seus dois maiores jogadores, seus dois gênios foram Heleno de Freitas (na década de 1940) e Manuel Francisco do Santos, o Garrincha (nas décadas de 50 e 60). Talvez o mestre Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, tenha sido aquele que mais tenha representado com amor e dedicação o alvinegro carioca. Mas, os gênios foram aqueles dois (é minha a opinião, discordâncias ocorrerão).
Heleno chegou ao Botafogo em 1940, depois de ter começado no futebol de praia também pelo Botafogo em 1937, descoberta do folclórico Nenem Prancha. No campo, passou pelo Fluminense, de 1936 a 1939, antes pelo Madureira, de 1931 a 1934. Tendo nascido na cidade mineira de São João Nepomuceno, em 1920, veio com a família para o Rio, passando a morar em Copacabana, onde começou a destacar-se no futebol de areia.
No Botafogo, foi o maior ídolo da década de 40. Instruído, formado em Direito, frequentava a alta sociedade e a boemia de Copacabana. Fino, educado, era requisitado pelas mulheres, com quem manteve relacionamentos conturbados. Jovem de classe média, tinha padrão de vida relativamente confortável. Era frequentador do hotel Copacabana Palace, lugar elegante e ponto de encontro das celebridades da década de 40.
Seu relacionamento com o Botafogo foi de amor intenso, paixão violenta e brigas memoráveis. Defendia o clube em campo como se estivesse participando de uma batalha campal, irritava-se com colegas de time não tão habilidosos e que não estavam à altura da grandeza de seu futebol. Centro avante clássico, cabeceava muito bem, vinha buscar a bola no meio de campo e com ela partia, grudada aos pés, em direção ao gol "inimigo". No meio da década de 40 já era considerado o melhor jogador da equipe, "o dono do time". Seu temperamento irascível não permitia que se relacionasse bem com quase ninguém. Era debochado, irônico, sarcástico, ciente do valor do seu futebol e da sua importância para o Botafogo.
Criou várias inimizades célebres, foi apelidado de "Gilda", título de um filme famoso dos anos 40, estrelado por Rita Hayworth, que fazia o papel de uma dançarina temperamental, que explodia por qualquer coisa.
No futebol, uma de suas passagens mais marcantes foi, quando após um jogo contra o Fluminense, no campo das Laranjeiras, foi insultado durante toda a partida pela torcida tricolor, que não parava de provocá-lo, tentando fazer com que perdesse a cabeça. Os gritos de "Gilda" ecoavam pelas arquibancadas, provocando e tentando humilhar o temperamental atleta.
Quando o jogo terminou, cansado, suado, irritado, Heleno vai deixando o campo, aproximando-se da tribuna social do Fluminense. Os torcedores continuam a provocação: "Gilda", "Gilda", "Gilda". Heleno, fora de si, abaixa o calção e exibe a genitália para os torcedores, entre os quais estavam várias senhoras da sociedade carioca.
Apesar de sua paixão pelo Botafogo, nunca conseguiu ser campeão carioca pelo clube. Sua grande ambição era defender o Brasil em uma Copa do Mundo. Infelizmente, também, não pode ver esse seu seu sonho realizado. Com a Segunda Guerra Mundial, foram canceladas as Copas do Mundo que teriam lugar em 1942 e 1946.
Sua relação com o Botafogo foi-se desgastando com o passar do tempo, Heleno cada vez mais frustrado porque não conseguia o ambicionado título de campeão carioca. No início de 1948, ele e o clube decidiram que o melhor para os dois seria sua saída. Isso, depois de muita conversa, muitas idas e vindas, muitas indecisões. Foi vendido para o Boca Juniors, da Argentina, na maior transação da época envolvendo um jogador brasileiro.
Ironia do destino: nesse ano de 1948, o Botafogo sagrou-se campeão carioca, após a saída de Heleno. Voltou ao Brasil em 1949, ano seguinte, mas ele e o Botafogo já não se entendiam mais. Assinou com o Vasco da Gama e ironia maior: foi campeão carioca com o famoso Expresso da Vitória, que seria a base da seleção brasileira de 1950. Mas, não durou muito no Vasco: foi tentar a aventura colombiana, no Atlético Junior de Barranquila, numa liga pirata da Colômbia. Voltando ao Brasil, teve rápida passagem pelo Santos, encerrando a carreira no América do Rio, na sua única partida jogada no Maracanã.
Mas, sua vida desregrada enquanto atleta, o vício no éter e no lança-perfume, bem como a sífilis contraída em uma das várias relações sexuais mantidas durante sua fase áurea, acabaram por levá-lo à pré-demência e sua internação num sanatório para doentes mentais em Barbacena, Minas Gerais, onde faleceu em 1959.
O outro, bem o outro, simplesmente foi o maior jogador de futebol que vi atuar em toda a minha vida. E, olhem que vi muita gente boa, de Pelé a Coutinho, de Dida a Zico, de Nilton Santos a Didi, de Roberto Dinamite a Romário, de Tostão a Ronaldo, de tantos outros entre tantos outros.
O outro, apenas foi Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, o Gualicho do início desta publicação.
Nascido em 1933, treze anos depois de Heleno, no vilarejo de Pau Grande, município de Magé, Estado do Rio de Janeiro, teve infância bem diferente do antecessor. De origem de família humilde, com 15 irmãos, foi empregado da pequena fábrica de tecidos da cidade. Ali deu os primeiros passos no futebol, no Esporte Clube Pau Grande. Tentou jogar profissionalmente no Serrano de Petrópolis e no Fluminense, sendo rejeitado sumariamente devido a um defeito que tinha nas pernas: ambas eram tortas para o mesmo lado.
Arati, então jogador do Botafogo, assistindo um jogo do Pau Grande, ficou entusiasmado com o ponta direita que driblava quem aparecesse por sua frente. Levou-o logo para o alvinegro carioca, onde depois de um treino espetacular, imediatamente assinou contrato com o clube. Estreou em 19 de julho de 1953, no campo do Bonsucesso, contra o clube do mesmo nome e fez três gols na vitória de 6 X 3. Vestiu a camisa alvinegra até 16 de setembro de 1965, por 614 vezes, e, com ela foi campeão carioca de 1957, 1961, 1962, Torneio Rio São/Paulo de 1962 e 1964. Com a amarela (às vezes azul) da seleção brasileira, foi bi-campeão do mundo em 1958 e 1962.
Foi campeão também por outros clubes por onde jogou depois que saiu do Botafogo. Mas, aí, já não interessa mais.
Enquanto Heleno gostava de frequentar ambientes sofisticados, Garrincha preferia a calma de uma cidade do interior, onde pudesse caçar seus passarinhos ou pescar na beira de um rio.
De semelhança entre os dois, além do amor ao Botafogo, estava a vida pouco regrada que levavam para um atleta de futebol. Enquanto Heleno perdia-se nos devaneios que o éter lhe causava, Garrincha já bebia cachaça muito antes de pensar em jogar futebol profissionalmente. O gosto pelo álcool, que transformou-se em vício, acabou por levá-lo à morte em 20 de janeiro de 1983, com 49 anos de idade, ou seja, com dez anos mais de vida que Heleno.
Já li e ouvi muita gente dizer que "existem coisas que só acontecem ao Botafogo". Nunca acreditei muito nisso, acho que não existem frases feitas para nada neste mundo.
Mas, que é uma grande coincidência, isso lá é...
Logo vêm-me à memória dois nomes entre os melhores e verdadeiros craques de bola que o Brasil produziu. E, por coincidência, ambos jogaram no meu Botafogo, com apenas uma geração a separá-los.
Não cheguei a ver Heleno jogar. Isto é, para não dizer que não o vi atuando, vi sim, pela televisão, num domingo de sol inclemente, em sua última partida como jogador. Final de carreira, já um pouco gordo, estreava no América do Rio em sua única partida no Maracanã.
Tinha eu oito anos de idade, já estava praticamente alfabetizado, já começava a ler os jornais de esporte e a me interessar por futebol. Acompanhei, meio à distância, a tragédia da perda da Copa do Mundo pelo Brasil, em pleno Maracanã, em julho de 1950.
Como afirmei em matéria anterior, morava nessa época em um apartamento no início da avenida Amaral Peixoto, em Niterói. Só fui ter contato com a rua propriamente dita quando fui estudar no Grupo Escolar Getúlio Vargas e depois no Liceu Nilo Peçanha, tendo residido também no bairro do Ingá, nos primeiros anos da década de 50. Por isso, meu contato com o futebol acabou acontecendo um pouco mais tarde que os garotos da minha idade. Mesmo assim, com a minha quase ida ao Maracanã acompanhando meu pai que assistiu à fatídica derrota do Brasil para o Uruguai no Maracanã (ele acabou não me levando, com receio da ocorrência de tumultos após a partida, devido às praticamente certas comemorações e excessos pela conquista do ambicionado título), meu interesse pelo futebol aumentou consideravelmente.
O grande time brasileiro da época era o Vasco da Gama, base da seleção de 1950 (Barbosa, Augusto, Danilo, Friaça, Ademir, Jair da Rosa Pinto, Chico, eram jogadores do Vasco). Depois, vinha o poderoso Flamengo. Um pouco abaixo, o Fluminense, só depois o Botafogo.
Mas, chegando ao fim a década de 40, iniciada a de 50, com a realização da Copa do Mundo no Brasil, ainda se falava muito em Heleno de Freitas.
O menino de oito anos lia avidamente as reportagens nos principais jornais cariocas, acompanhava atento as transmissões radiofônicas das partidas realizadas nos diversos estádios da cidade, assistia um ou outro jogo que era permitido transmitir ao vivo pela televisão. Foi assim que ouviu muito falar no grande Heleno de Freitas, que teria sido o maior jogador do Botafogo na década passada. Mas, pouco ficou sabendo, na realidade, de sua importância para o clube e para o futebol brasileiro. Apenas ouvira um comentário aqui, outro ali, e sem muito interesse, assistiu à partida que foi sua despedida do futebol. Jogando pelo América, acabou brigando antes do fim do primeiro tempo, foi expulso e nunca mais jogou profissionalmente.
Esqueci Heleno, comecei a admirar o "Expresso da Vitória" vascaíno, o grande time do Fluminense, campeão carioca de 1951, até mesmo o Flamengo quando comprou o paulista "Dr. Rubis" e foi tricampeão do Rio em 1953/1954 e 1955.
A paixão botafoguense ainda não havia nascido.
Acompanhava o futebol bem de perto, ia a jogos e treinos do meu Canto do Rio, clube que frequentei e onde até fui atleta.
Comecei a ter simpatia pelo Botafogo em 1953. Num domingo, ouvia pelo rádio Oduvaldo Cozzi transmitir um jogo importante do Maracanã (não me lembro qual foi). De repente, de um pequeno estádio do subúrbio (Teixeira de Castro, em Bonsucesso), um locutor chama Cozzi, gritando desvairado ao microfone:
-- Alô, alô, Cozzi, diretamente de Teixeira de Castro. Um fenômeno, uma maravilha o que estamos vendo aqui. Um jogador extraordinário estreando pelo Botafogo. Driblou toda a defesa do time adversário e entrou com bola e tudo. Um a zero Botafogo.
Oduvaldo, o grande narrador brasileiro (o melhor que conheci), talvez entendiado pelo jogo chato do Maracanã, perguntou ao colega:
-- Qual o nome dele, Waldir?
-- Não sei direito, Cozzi, ainda estou aturdido com o que estou vendo. Vou procurar saber e te chamo de volta.
Daqui a alguns minutos, Waldir retorna:
-- Cozzi, Cozzi, pelo amor de Deus, o homem já fez mais dois. Me disseram aqui que o nome dele é Gualicho.
-- Gualicho? -- indagou Cozzi. -- Igual ao cavalo que corre no Hipódromo da Gávea?
-- Sim, sim, deve ser por isso -- retrucou Waldir. -- Deve ser porque ele corre muito, dribla os adversários na corrida, deixa todo mundo para trás.
Esse o primeiro apelido. Esse trecho da transmissão ficou gravado em minha memória até hoje, lembro-me dele quase por completo, em todas as suas palavras.
Passei a acompanhar o Botafogo com um pouco mais de interesse. O clube não era campeão desde 1948, justamente o ano em que Heleno o deixara e não conseguira o título pelo qual brigara desde o final da década de 30. A equipe era mediana, apenas figurante no campeonato carioca.
Assistia agora mais alguns jogos pela televisão, via Garrincha jogar, mas, confesso, não me empolgava muito. Achava que driblava demais, seus dribles eram improdutivos, acabava perdendo a bola ou desperdiçava um centro para uma área sem grandes artilheiros. Mas, o Botafogo era um clube simpático, sua camisa era muito bonita, a estrela solitária era um chamariz com uma força impressionante de sedução.
Até que veio a final do campeonato carioca de 1957 e o Botafogo, com uma atuação extraordinária de seu ataque (Garrincha, Didi, Paulinho Valentim, Edson e Quarentinha), simplesmente arrasou o Fluminense: 6 X 2.
Ali eu definira o clube para o qual torcer.
Continuei acompanhando o futebol de perto, tanto o meu Botafogo, como a seleção brasileira, além de outros clubes do Brasil. Tive o privilégio de acompanhar, primeiro pelo rádio, depois pela televisão, a conquista dos campeonatos mundiais de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. Assisti a dois jogos nos campos da Beaujoire (Nantes) e Velodrome (Marseille) no vice-campeonato de 1998.
Só mais recentemente, já adulto, quando tinha meus trinta e poucos anos, procurei matar minha curiosidade e fui conhecer mais de perto a história do meu clube. E, dos vários livros que li, das pesquisas que fiz, restou-me uma certeza: seus dois maiores jogadores, seus dois gênios foram Heleno de Freitas (na década de 1940) e Manuel Francisco do Santos, o Garrincha (nas décadas de 50 e 60). Talvez o mestre Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, tenha sido aquele que mais tenha representado com amor e dedicação o alvinegro carioca. Mas, os gênios foram aqueles dois (é minha a opinião, discordâncias ocorrerão).
Heleno chegou ao Botafogo em 1940, depois de ter começado no futebol de praia também pelo Botafogo em 1937, descoberta do folclórico Nenem Prancha. No campo, passou pelo Fluminense, de 1936 a 1939, antes pelo Madureira, de 1931 a 1934. Tendo nascido na cidade mineira de São João Nepomuceno, em 1920, veio com a família para o Rio, passando a morar em Copacabana, onde começou a destacar-se no futebol de areia.
No Botafogo, foi o maior ídolo da década de 40. Instruído, formado em Direito, frequentava a alta sociedade e a boemia de Copacabana. Fino, educado, era requisitado pelas mulheres, com quem manteve relacionamentos conturbados. Jovem de classe média, tinha padrão de vida relativamente confortável. Era frequentador do hotel Copacabana Palace, lugar elegante e ponto de encontro das celebridades da década de 40.
Seu relacionamento com o Botafogo foi de amor intenso, paixão violenta e brigas memoráveis. Defendia o clube em campo como se estivesse participando de uma batalha campal, irritava-se com colegas de time não tão habilidosos e que não estavam à altura da grandeza de seu futebol. Centro avante clássico, cabeceava muito bem, vinha buscar a bola no meio de campo e com ela partia, grudada aos pés, em direção ao gol "inimigo". No meio da década de 40 já era considerado o melhor jogador da equipe, "o dono do time". Seu temperamento irascível não permitia que se relacionasse bem com quase ninguém. Era debochado, irônico, sarcástico, ciente do valor do seu futebol e da sua importância para o Botafogo.
Criou várias inimizades célebres, foi apelidado de "Gilda", título de um filme famoso dos anos 40, estrelado por Rita Hayworth, que fazia o papel de uma dançarina temperamental, que explodia por qualquer coisa.
No futebol, uma de suas passagens mais marcantes foi, quando após um jogo contra o Fluminense, no campo das Laranjeiras, foi insultado durante toda a partida pela torcida tricolor, que não parava de provocá-lo, tentando fazer com que perdesse a cabeça. Os gritos de "Gilda" ecoavam pelas arquibancadas, provocando e tentando humilhar o temperamental atleta.
Quando o jogo terminou, cansado, suado, irritado, Heleno vai deixando o campo, aproximando-se da tribuna social do Fluminense. Os torcedores continuam a provocação: "Gilda", "Gilda", "Gilda". Heleno, fora de si, abaixa o calção e exibe a genitália para os torcedores, entre os quais estavam várias senhoras da sociedade carioca.
Apesar de sua paixão pelo Botafogo, nunca conseguiu ser campeão carioca pelo clube. Sua grande ambição era defender o Brasil em uma Copa do Mundo. Infelizmente, também, não pode ver esse seu seu sonho realizado. Com a Segunda Guerra Mundial, foram canceladas as Copas do Mundo que teriam lugar em 1942 e 1946.
Sua relação com o Botafogo foi-se desgastando com o passar do tempo, Heleno cada vez mais frustrado porque não conseguia o ambicionado título de campeão carioca. No início de 1948, ele e o clube decidiram que o melhor para os dois seria sua saída. Isso, depois de muita conversa, muitas idas e vindas, muitas indecisões. Foi vendido para o Boca Juniors, da Argentina, na maior transação da época envolvendo um jogador brasileiro.
Ironia do destino: nesse ano de 1948, o Botafogo sagrou-se campeão carioca, após a saída de Heleno. Voltou ao Brasil em 1949, ano seguinte, mas ele e o Botafogo já não se entendiam mais. Assinou com o Vasco da Gama e ironia maior: foi campeão carioca com o famoso Expresso da Vitória, que seria a base da seleção brasileira de 1950. Mas, não durou muito no Vasco: foi tentar a aventura colombiana, no Atlético Junior de Barranquila, numa liga pirata da Colômbia. Voltando ao Brasil, teve rápida passagem pelo Santos, encerrando a carreira no América do Rio, na sua única partida jogada no Maracanã.
Mas, sua vida desregrada enquanto atleta, o vício no éter e no lança-perfume, bem como a sífilis contraída em uma das várias relações sexuais mantidas durante sua fase áurea, acabaram por levá-lo à pré-demência e sua internação num sanatório para doentes mentais em Barbacena, Minas Gerais, onde faleceu em 1959.
O outro, bem o outro, simplesmente foi o maior jogador de futebol que vi atuar em toda a minha vida. E, olhem que vi muita gente boa, de Pelé a Coutinho, de Dida a Zico, de Nilton Santos a Didi, de Roberto Dinamite a Romário, de Tostão a Ronaldo, de tantos outros entre tantos outros.
O outro, apenas foi Manuel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, o Gualicho do início desta publicação.
Nascido em 1933, treze anos depois de Heleno, no vilarejo de Pau Grande, município de Magé, Estado do Rio de Janeiro, teve infância bem diferente do antecessor. De origem de família humilde, com 15 irmãos, foi empregado da pequena fábrica de tecidos da cidade. Ali deu os primeiros passos no futebol, no Esporte Clube Pau Grande. Tentou jogar profissionalmente no Serrano de Petrópolis e no Fluminense, sendo rejeitado sumariamente devido a um defeito que tinha nas pernas: ambas eram tortas para o mesmo lado.
Arati, então jogador do Botafogo, assistindo um jogo do Pau Grande, ficou entusiasmado com o ponta direita que driblava quem aparecesse por sua frente. Levou-o logo para o alvinegro carioca, onde depois de um treino espetacular, imediatamente assinou contrato com o clube. Estreou em 19 de julho de 1953, no campo do Bonsucesso, contra o clube do mesmo nome e fez três gols na vitória de 6 X 3. Vestiu a camisa alvinegra até 16 de setembro de 1965, por 614 vezes, e, com ela foi campeão carioca de 1957, 1961, 1962, Torneio Rio São/Paulo de 1962 e 1964. Com a amarela (às vezes azul) da seleção brasileira, foi bi-campeão do mundo em 1958 e 1962.
Foi campeão também por outros clubes por onde jogou depois que saiu do Botafogo. Mas, aí, já não interessa mais.
Enquanto Heleno gostava de frequentar ambientes sofisticados, Garrincha preferia a calma de uma cidade do interior, onde pudesse caçar seus passarinhos ou pescar na beira de um rio.
De semelhança entre os dois, além do amor ao Botafogo, estava a vida pouco regrada que levavam para um atleta de futebol. Enquanto Heleno perdia-se nos devaneios que o éter lhe causava, Garrincha já bebia cachaça muito antes de pensar em jogar futebol profissionalmente. O gosto pelo álcool, que transformou-se em vício, acabou por levá-lo à morte em 20 de janeiro de 1983, com 49 anos de idade, ou seja, com dez anos mais de vida que Heleno.
Já li e ouvi muita gente dizer que "existem coisas que só acontecem ao Botafogo". Nunca acreditei muito nisso, acho que não existem frases feitas para nada neste mundo.
Mas, que é uma grande coincidência, isso lá é...